“Uma regra que não seja efetivamente limitadora da expansão fiscal será tão durável quanto inócua”

Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

A Conjuntura Econômica de março, que será divulgada na semana que vem, reunirá a análise de especialistas no campo fiscal sobre o que esperar da nova regra que substituirá o teto de gastos. Aqui no Blog, antecipamos algumas dessas conversas, como a que tivemos com Felipe Salto, ex-secretário da Fazenda de São Paulo (leia aqui) e, agora, com Marcos Mendes, servidor de carreira da Consultoria Legislativa do Senado, pesquisador associado do Insper.

Qual lição o teto de gastos deixou e deve ser considerada na elaboração da nova regra?

Há dois motivos para se instituir uma regra fiscal. O primeiro é lidar com a inconsistência temporal, ou seja, impedir que o governo de plantão tome medidas fiscais que distribuam benefícios no curto prazo, potencializando sua reeleição, às custas de perdas futuras sob a forma de mais inflação, mais despesa com juros e, no limite, uma crise fiscal por endividamento excessivo.

A segunda razão é coordenar as expectativas em um mundo de informação imperfeita. Uma regra simples e clara permite à imprensa e ao mercado observar o comportamento do governo. Caso seja detectada uma tentativa de burlar o teto, haverá forte debate, e o governo pagará o custo político pela tentativa. Caso se perceba que a regra é capaz de controlar o endividamento público e que o governo a está obedecendo, haverá queda no prêmio de risco da dívida pública, ajudando o país a operar com juros reais mais baixos. Há ganhos de previsibilidade, estabilidade e de custo de capital das empresas.

O teto instituído pela Emenda Constitucional 95/16 é uma regra bastante simples e fácil de entender. Assim que adotada, adquiriu credibilidade e ajudou na queda dos juros. Sempre que se tentou mudá-la, houve um amplo debate sobre o “furo” no teto, e o governo pagou o preço político. Em alguns casos o governo recuou, como na tentativa de implantar um plano de investimento em infraestrutura (“Plano Marshall Brasileiro”) fora do teto, ou colocar programas sociais também fora do teto. Em outros, houve mudanças que ampliaram o teto e diminuíram a credibilidade do instrumento.

Não haveria problemas se as mudanças tivessem sido feitas “na margem”, mantendo a essência da regra. Por exemplo, a introdução de uma taxa de crescimento real da despesa inferior ao crescimento potencial do PIB, de modo a garantir a gradual redução da relação dívida/PIB, ou a antecipação da data (inicialmente prevista para 2026) em que estava prevista a revisão da indexação do teto.

Todavia, as mudanças foram de outra natureza: expansões imediatas do tamanho do teto, em valores elevados, feitas de forma ad hoc, sempre por pressões políticas circunstanciais. Isso demonstra que as forças políticas decidiram se livrar do instrumento que evita a inconsistência temporal, preferindo gastar mais hoje a despeito dos custos futuros que isso gera. A previsibilidade saiu pela janela.

A nova regra fiscal, para ser crível e cumprir o seu papel, não poderá ser algo muito diferente do teto de gastos: um limite claro e impositivo ao crescimento da despesa primária. Podem-se discutir os parâmetros, o ritmo de crescimento da despesa, a conexão da regra com metas de médio prazo. Mas a essência, para funcionar, garantindo a superação do problema de inconsistência temporal e coordenando expectativas, será a fixação de um claro limite para os gastos.

Isso porque o problema fiscal brasileiro desde os anos 1980 é o forte crescimento da despesa pública. Não há como fazer ajuste significativo e permanente pelo lado da receita, pois nossa carga tributária já é muito alta e distorciva. Ajustes pelo lado da receita serão insustentáveis e terão grande custo em termos de perda de crescimento econômico.

Uma regra que se assemelhe a uma declaração de boas intenções não será convincente e, portanto, será ineficaz, pois o histórico brasileiro é de forte incentivo político a gerar desequilíbrio fiscal.

Como garantir que a nova regra não sofra mudanças no meio do caminho que ameacem sua credibilidade, como aconteceu com o teto, e considerando que o governo atual já demonstrou tendência fiscal expansionista?

Ficarei muito surpreso se o governo atual apresentar uma regra que efetivamente controle a despesa e sinalize a estabilização ou redução da relação dívida/PIB no futuro. Isso porque a mentalidade dominante entre os economistas que gerem a política econômica é de que crescimento do gasto e do déficit público não é problema, mas solução. Eles acreditam em um modelo em que a expansão fiscal induz crescimento de longo prazo, o que confronta as evidências factuais das últimas décadas, em que vimos a expansão fiscal gerar inflação, juro alto e baixo crescimento.

Provavelmente a regra será algo para “inglês ver” e, como já sinalizado na imprensa por “fontes” do Ministério da Fazenda, focada em aumentar receitas para cobrir o crescimento da despesa. Aumento este que já foi contratado tanto com a PEC da transição quanto com o anúncio de aumentos de despesas: o crescimento real permanente do salário mínimo, a ressurreição do PAC, o retorno dos subsídios creditícios do BNDES, entre outros.

Nesse sentido, uma regra que não seja efetivamente limitadora da expansão fiscal não enfrentará problema de durabilidade, como ocorreu com o teto atual. Será tão durável quanto inócua.

De que forma o primeiro pacote fiscal anunciado pelo governo, focado no lado das receitas converge para o espírito da reforma proposta?

O pacote inicialmente apresentado foi um esforço para reduzir o déficit de mais de R$ 200 bilhões programado para o ano, principalmente em decorrência da PEC da Transição, solicitada pelo próprio governo. Com um adicional de R$ 70 bilhões seria possível atender às principais necessidades de recomposição orçamentária. Preferiram o sapato largo, e o Congresso gostou, pois sobra mais espaço para emendas.

Uma vez feito o estrago de um déficit tão grande, o Ministério da Fazenda buscou minimizar o prejuízo. Ao fazê-lo, apresentou um pacote que tem três fragilidades. A primeira, é que a maioria das medidas é tópica e só diminui o déficit em 2023, com o problema retornando em 2024. A segunda, é que focou do lado da receita. Como eu já falei antes, o problema fiscal do país está do lado da despesa, principalmente a despesa obrigatória e indexada. A terceira fragilidade é que não foram levadas em conta despesas que já são obrigação do Tesouro e que não foram incluídas no orçamento, como o pagamento dos benefícios da Lei Paulo Gustavo, o piso salarial da enfermagem e os benefícios ao setor de eventos (PERSE).

Depois da apresentação do pacote, o Governo apresentou medidas adicionais com impacto anualizado de R$ 25 bilhões e que, em 2023, já descontando o que estava previsto no orçamento e no espaço criado pela PEC da transição, ainda representa R$ 6 bilhões em aumento de gastos.

Tudo somado, mesmo que as otimistas expectativas de receitas contidas no pacote se materializem, o déficit primário de 2023 deverá ficar entre 1,4% e 1,6% do PIB. E de 2024 em diante, se nada for feito, o déficit irá para a casa dos 1,9%.

Como precisamos de um superávit primário de 2% para estabilizar a dívida, déficits na casa de 1,4% ou 1,9% do PIB são resultados muito ruins.

Dificilmente a regra fiscal a ser anunciada dará conta de induzir um ajuste fiscal tão grande. Isso só se faz com reformas que estão fora do cardápio do atual governo.

Quais pontos considera de maior resistência para a aprovação da proposta – levando em conta que ela se insere em um contexto de pesada agenda legislativa, com outros temas importantes como a reforma tributária?

A aprovação ou reprovação não é o principal problema. Antes de tudo é preciso ter uma regra consistente e convincente. Se vier uma regra ruim, aprová-la ou reprová-la pode ter algum impacto no cacife político do governo, mas será indiferente em termos econômicos no médio e longo prazo.
Existe a possibilidade de, em se apresentando uma regra não crível, o Congresso tome a tarefa em suas mãos e proponha algo mais próximo de garantir credibilidade fiscal.

Qual o papel que o Ministério do Planejamento pode ter nesse caminho de melhora das contas públicas para maior convergência dos resultados às metas?

O Ministério do Planejamento controla a elaboração da proposta orçamentária, assim como sua execução. É fundamental que zele pelas boas práticas e não compactue com propostas de contabilidade criativa que tenderão a surgir à medida que as ambições de gastos esbarrem mais e mais nas limitações fiscais.

Além disso, o Ministério do Planejamento tem uma função essencial, mas que só terá efeito no médio prazo, que é a avaliação e proposição de reformas nas políticas públicas hoje existentes. Dar maior racionalidade e eficácia aos programas públicos, questionando sua existência e descontinuando ou reformando aqueles que não passam no teste de qualidade é uma função essencial que foi abandonada no Brasil.

Mesmo com a promessa do governo de antecipar a apresentação da proposta de nova regra, considera viável o avanço desse debate no Congresso, levando em conta os impactos que a reforma tributária e outras políticas ainda não definidas podem alterar o ponto de partida dessa discussão?

A apresentação da nova regra fiscal se tornou essencial frente à grande instabilidade causada pelas declarações do Presidente da República e da Presidente do PT contrários à estabilidade fiscal e monetária. Essas declarações têm apoio disseminado em todo o governo e no PT. Criaram uma grande interrogação sobre o que será do déficit, da dívida pública e da inflação daqui dois anos, caso continuemos na mesma toada.

A regra fiscal está sendo vista como uma espécie de compromisso de separar a prática da retórica. Por isso, ela ganhou prioridade na lista de votação. Ademais, é algo tecnicamente muito mais simples que uma reforma tributária, que exigirá muitos debates e esclarecimentos, a exemplo do que ocorreu com a reforma da previdência.

Por isso, considero natural que a votação da regra fiscal entre na pauta de votação antes da reforma tributária.  Como disse, a relevância da sua aprovação, rejeição ou substituição por uma proposta gestada no Congresso depende da qualidade do texto que for aprovado. Há o grande risco de ser aprovado algo irrelevante como desculpa para repetir o mantra que tem sido recitado nos últimos dias: “já ‘resolvemos’ o problema fiscal, agora o Banco Central tem que baixar juros”.

Leia também: Em webinar, Manoel Pires e Braulio Borges analisam o que esperar do ajuste fiscal.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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