“Do jeito que está acontecendo, o Brasil acabará virando um caso negativo de autonomia do Banco Central”, diz Manoel Pires, do CPFO

Manoel Pires, coordenador do CPFO

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Qual sua avaliação das turbulências dos últimos dias, que resultaram em alta volatilidade cambial?

Existem duas questões. A primeira é que, por razões externas, o desempenho das moedas latino-americanas piorou muito nas últimas semanas. A segunda é que o câmbio acusou a incerteza que existe com relação à política econômica futura, uma questão doméstica. As razões externas não podem ser resolvidas pelo governo, mas as questões domésticas, sim. É bom ressaltar que a situação da economia real no país é muito boa: inflação corrente controlada, o crescimento econômico do período pós pandemia também é bem maior e a taxa de desemprego caiu para quase metade do que era. A pobreza caiu bastante.

Agora, atravessamos uma transição no Banco Central que é muito conturbada, por várias razões, e uma série de manifestações dúbias com relação ao compromisso do governo com relação ao conjunto de regras fiscais do Brasil. No caso do Banco Central, existe dúvida se a próxima gestão continuará focando na meta de inflação. Eu não concordo com essa visão, pois não vejo nenhum elemento concreto de leniência dos novos membros do COPOM com o tema. Acredito que funcionará de forma análoga, mas é assim que as coisas são e essas dúvidas devem ser dirimidas. Desde a mudança da meta fiscal de 2025, ninguém defendeu o cumprimento do arcabouço fiscal de forma explícita. Se o governo não se compromete com esses assuntos de maneira clara, surge uma incerteza muito grande sobre a política econômica e a situação gera essa grande depreciação da taxa de câmbio que poderia elevar a inflação e a taxa de juros.
A situação criada foi tão excêntrica que bastou o governo começar a tratar dos problemas de forma mais objetiva que o mercado reagiu positivamente. O governo marcou uma reunião para discutir orçamento, anunciou algumas medidas, reafirmou seu compromisso fiscal e o stress financeiro passou. Veja, o governo não precisou fazer nada efetivamente, mas mostrou serviço e isso parece ter sido suficiente para a crise parecer ter ficado para trás, assim espero.

Considera que o anúncio de corte de gastos para 2025 (R$ 25,9 bilhões) é crível – no sentido de ser factível somente com pente-fino em benefícios sociais, e de ser um montante suficiente para se cumprir a meta?

É importante que o governo mostre seu compromisso político com as regras fiscais que ele próprio definiu para o país. Atualmente, existem vários problemas. O primeiro é que a meta de resultado primário deste ano é difícil de ser cumprida sem medidas adicionais, inclusive um eventual contingenciamento que não foi feito. O segundo é que ele precisará apresentar um PLOA para 2025 com medidas de receita para cumprir a meta fiscal do próximo ano, e medidas de despesa para cumprir o seu limite orçamentário que crescerá 2,5% acima da inflação.

É difícil saber se isso se o que foi anunciado será suficiente, pois é difícil saber ao certo quanto é possível economizar com essas medidas administrativas. Mas, sem dúvida, é um passo na direção correta. A despesa com previdência está crescendo bastante e precisa ser mais bem controlada. Além disso, a despesa no primeiro semestre cresceu muito. Muitas decisões adotadas pelo governo foram no sentido de antecipar despesas, algumas muito legítimas como a ajuda ao Rio Grande do Sul, mas outras poderiam ter outro comportamento, como no caso dos precatórios de 2024. O fato é que o crescimento da despesa deste ano tem sugerido que pode haver dificuldade para controlar a despesa primária, o que afeta o cumprimento da regra do arcabouço.

É possível, para o presidente Lula, equilibrar críticas ao Banco Central e aos juros e defender o arcabouço e o cumprimento de metas fiscais ao mesmo tempo, ou se o fizer resultará no mesmo cenário que vimos esta semana?

O presidente tem um argumento que, a meu ver, deveria ser analisado. Ele mostra desconforto com o fato de não ter indicado o presidente do BC e, dado o acirramento político da eleição e o comportamento do atual presidente do BC que participa de eventos de opositores políticos, há uma grande desconfiança que não vai ser desfeita. Ele não se sente à vontade com isso e gostaria de ter a equipe econômica da confiança dele. Isso é absolutamente legítimo.
Essa não é uma questão partidária ou meramente pessoal. O ex-presidente Bolsonaro, por inúmeras vezes, reclamou de uma equipe do BNDES porque alguns membros participaram de gestões petistas e o imbróglio só se resolveu quando trocou de equipe. Só que, quando ocorre no BC, a repercussão é muito maior porque afeta juros e câmbio. Mas não é difícil usar essa situação para imaginar que também poderá acontecer o mesmo problema em outros governos.
Acredito que para o futuro poderia ser discutido uma mudança na lei de autonomia do BC dando possibilidade ao presidente da República indicar o presidente do BC nos primeiros seis meses após a sua posse. O indicado, se aprovado pelo Senado Federal, teria mandato fixo e metas objetivas como acontece agora. Não acredito que essa alteração limitaria a autonomia técnica do BC, pois ela não é vinculada à indicação, mas sim ao mandato com duração fixa e objetivos bem claros para estabelecer a atuação do COPOM.
Agora, é evidente que o excesso de críticas alimenta um cenário em que se especula sobre coisas muito negativas porque isso cria risco. Do jeito que está acontecendo, o Brasil vai acabar virando um caso negativo de autonomia do Banco Central, apesar de toda a evidência favorável. Aliás, o Brasil mesmo possui uma evidência favorável desde o início do Plano Real, quando a autonomia era informal.

Considera que estamos caminhando de acordo à sua defesa de um ajuste “nem tão rápido que seja impossível, nem tão lento que ninguém acredite”, como mencionado na Carta do IBRE de junho ? 

Acho que o ajuste fiscal deveria contemplar medidas de receita e despesa e ser distribuído no tempo. O equilíbrio entre medidas de ajuste de receitas e despesas é uma questão de justiça social. Se cortar muito o gasto vai ter impacto sobre políticas públicas importantes, mas não é possível simplesmente mandar uma conta para a sociedade pagar em termos de um grande aumento de carga tributária. Não é politicamente razoável.

A distribuição do ajuste no tempo é uma questão macroeconômica. Se ajustar tudo no curto prazo, a economia vai sentir. Mas ao apresentar algumas medidas estruturantes, é possível melhorar as expectativas e reduzir a taxa de juros, porque o horizonte fiscal de longo prazo melhora. Desde 2015, quando o ajuste fiscal entrou na agenda, há dificuldade de se fazer algo assim por questões, a meu ver, políticas.

O governo agora está tentando equilibrar a agenda, apresentando algumas medidas de ajuste pela despesa. O ideal é que consiga amadurecer também algumas medidas estruturantes que melhorem a perspectiva de viabilização do arcabouço fiscal a médio prazo. Há muita ansiedade sobre isso, mas são decisões difíceis porque impactam a popularidade do presidente. Acredito que o timing do governo é o prazo de apresentação do PLOA 2025, no final de agosto.

 


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