“Precisamos resgatar o espírito da Lei de Responsabilidade Fiscal”

Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Com a decisão do ministro da Fazenda Fernando Haddad de antecipar para março a entrega da proposta do governo para uma nova regra fiscal, o debate se aquece sobre qual o arranjo ideal para o substituto do teto de gastos. Além da análise dos pesquisadores do FGV IBRE - o tema será destaque da Conjuntura Econômica de março, e tem sido foco de debates como em recente webinar FGV IBRE / Valor Econômico - o Blog também foi ouvir especialistas que já apresentaram propostas para a mudança do arcabouço fiscal.

Entre eles está Felipe Salto, ex-secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo, primeiro diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, criada em 2016. Desde o debate sobre a criação do teto de gastos, Salto tem contribuído à Conjuntura com análises, como artigo publicado com José Roberto Afonso em julho do ano de aprovação do teto (Partindo Rumo a um regime fiscal mais responsável, pag .18). Nesta conversa, ele contou sobre a minuta que apresentou ao ministro Fernando Haddad em fevereiro.

A proposta de regra fiscal apresentada ao ministro Haddad e sua equipe difere da que ofereceu ao vice-presidente Alckmin em novembro passado?

No final do ano passado elaboramos junto com Josué Pellegrini, Eduardo Carneiro, e um grupo de especialistas (do qual fez parte José Roberto Afonso) pensamos em uma proposta e entregamos para o vice-presidente Alckmin. Agora retomei esse texto e, junto com Pellegrini, fizemos alguns ajustes. Mas a essência é a mesma. É uma minuta de PEC a título de colaboração para o debate. O que propomos? Basicamente, a PEC cria um limite tendencial para a dívida pública, entendendo que o teto de gastos não tem que ficar na Constituição. O que você precisa, como a PEC da Transição já autorizou, é ter uma lei complementar que vai definir quanto o gasto pode crescer, pensar num incremento real acima da inflação, e ter um cálculo de resultado primário também compatível com os objetivos  de política. E aí a pergunta que se coloca é: quais são os objetivos da política fiscal? Acho que temos que ter uma dívida pública que seja compatível com as condições de crescimento econômico que queremos ter - o que também depende da taxa de juros. Se tivermos uma dívida que não estabiliza por um período longo e depois começa a subir, o juro não vai diminuir permanentemente e não teremos crescimento.

Então, prevemos na PEC que, ao chegar em 2026, a dívida bruta só poderá ter crescido 4 pontos do PIB em relação a 2023. A gente já sabe que somente neste ano a dívida crescerá ao menos 4 pontos, não importa quem esteja no ministério da Fazenda, pois o juro real da economia já está em 7% e o crescimento do PIB, em 1% ou menos. A questão é que ela cresça o mínimo possível, para que entre 2023 a 2026, período que se pode chamar de transição, se estanque a sangria. E, a partir de 2027, se reduza a relação dívida/PIB até 2036, ano em que o atual teto terminaria, convergindo para 75% do PIB. Mas aí você pode questionar: 75% é maior do que fechou em 2022, com 73,5%. Sim, mas ainda vamos atingir um pico, provavelmente de 82% a 83%. Se depois de atingir esse pico conseguirmos reduzir sistematicamente é um bom cenário, pois dá previsibilidade, indica solvência e responsabilidade fiscal permanente.

Mas como conseguir isso? estamos colocando a obrigação de que na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA) o governo tenha que explicitar não só a trajetória da dívida que ele pretende de acordo com esses princípios gerais da Constituição, da PEC, mas também qual o gasto, a receita, como vão crescer, qual o superávit primário requerido, ou déficit primário para atingir aquela trajetória, e no caso de mudança da trajetória eventual, tem que ter justificativa e ir ao Congresso explicar as razões. Mais do que isso. A Emenda 109, da PEC Emergencial, previu duas coisas importantes: o princípio da sustentabilidade da dívida, que é o que estamos considerando em nossa minuta, e uma série de medidas de ajuste obrigatórias, previstas no artigo 164-a, para o caso dos estados. Nossa proposta é estender a aplicação dessas medidas para a União, para que se tiver descumprindo a trajetória de dívida ela também possa lançar mão de mecanismos de ajuste como controle de gasto, de despesa com pessoal como frear temporariamente reajustes salariais e a promoção de concursos.

Também prevemos a institucionalização da Instituição Fiscal Independente (IFI), como órgão responsável por fazer o acompanhamento de todas essas informações e checar, por exemplo, se o primário que o governo está prometendo é compatível com a trajetória de dívida apresentada, ou se o cenário de crescimento é irrealista. Trata-se de um empoderamento dessa instituição que foi criada em 2016, no mesmo período em que o teto foi criado, e que acho que poderia, de maneira moderna,a avançada, funcionar como um ombudsman do novo arcabouço fiscal.

Qual a referência para se estipular como meta que a dívida bruta brasileira chegue a  75% do PIB em 2036?

A referência é o nível médio de economias similares à brasileira. Quando olhamos dados do FMI, há projeções que levam a dívida dos países emergentes a um determinado patamar compatível com esses 75% no conceito do Banco Central. Atualmente, a dívida brasileira está bem mais alta, 24% acima dessa média, e prevemos essa convergência. É uma meta forte, levando em conta que foi algo que não conseguimos realizar nos últimos 30 anos.

Levando em consideração o histórico de descrédito que o teto de gastos possui, e a avaliação de um viés fiscalmente expansionista do atual governo (leia mais aqui), considera que uma regra que preveja uma mudança para a curva da dívida no prazo previsto conseguirá conquistar a credibilidade do mercado e ancorar expectativas?

A regra é o que é possível. Pode-se prometer uma mudança a partir do fim deste ano, mas não é possível fazer isso. Seria preciso produzir um superávit primário tão grande que ou se aumentaria a carga tributária em 3 pontos e 3,5 pontos do PIB, o que derrubaria a atividade econômica, ou seria preciso fazer um corte de gastos que representaria uma reforma constitucional completa. É impossível. O que estamos tentando fazer é aquilo que é possível, e ao mesmo tempo preconiza um controle importante do gasto. Pois, nessa trajetória resultante de nossas simulações, a despesa cresceria por 50% da média do crescimento real do PIB dos últimos 5 anos, mais a inflação. Então você teria um incremento real, que não é muito grande, além da inflação. Isso é uma dinâmica bastante razoável.

Daria para ser mais duro? Não há disposição para isso: seja do Congresso, da sociedade, de ninguém. Então é melhor se ter uma regra exequível - que ainda represente algum crescimento da dívida durante um tempo, mas tendendo à estabilidade -, do que prometer de novo, como em 2016, uma regra impraticável, que encanta o mercado, mas depois se mostra impraticável. É o tiro que sai pela culatra. Outra coisa: se uma regra subótima for aprovada - não a melhor de todas, mas o second best - isso já irá produzir efeito sobre o custo da dívida. Os juros terão espaço para diminuir, e talvez se consiga ter uma trajetória até mais benigna do que a prometida inicialmente.

Como sua proposta foi recebida, e o que ouviu do ministro e sua equipe?

O ministro Haddad foi muito receptivo, mostrou-se muito aberto ao diálogo, bem como sua equipe - Guilherme Melo, Gabriel Galípolo. Há muita convergência em relação às sugestões apresentadas. Percebi que há intenção de manter algum controle de gasto, mas com alguma flexibilidade, diferentemente do que acontecia no teto. O próprio secretário Melo se mostrou muito antenado com a literatura de regras fiscais, citando tópicos importantes como a questão da flexibilidade, da regra ser relativamente simples na medida do possível, de ter a vinculação de alguma maneira com o preceito de sustentabilidade da dívida. Saí da audiência muito bem impressionado. Acho que o ministério da Fazenda está na direção correta.

Vejo que é um aprendizado. Tivemos durante um período a meta de resultado primário - passou pelo governo FHC, pelos primeiros mandatos do presidente Lula -, que deu um bom resultado em redução da dívida como proporção do PIB. mas era uma regra muito pró-cíclica. É preciso não repetir esse erro. Sobre o teto de gastos, temos falado bastante sobre seus problemas.  Agora, o que precisamos é resgatar o espírito da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que era muito mais incrementalista do que regras como o teto, que parece muito drástica. É melhor ter um programa de recuperação fiscal. Ir devagar para chegar mais rápido, pois quando se quer dar um passo maior do que a perna, acaba-se retrocedendo, como aconteceu com o teto. Colocou-se um objetivo impossível, e agora voltamos à estaca zero, temos que reconstruir o arcabouço fiscal para poder avançar.

Agora teremos que esperar a divulgação da nova proposta de regra para avaliá-la. Mas, a princípio, estou bem impressionado.

Das várias análises e contribuições que já surgiram para o debate, o que acha que deveria ser descartado?

Há dois riscos extremos. Um que foi o do teto de gastos, de se ter uma regra muito rígida que depois não será cumprida. O outro é de ter uma regra muito frouxa. É preciso encontrar o caminho do meio e resgatar o que a própria Constituição preconizava, ao prever nos artigos 48 e 52 uma limitação para a dívida. Claro que numa lógica da época, de limites numéricos, fixos, como aconteceu nos países europeus. Mas o FMI mostra em seus papers sobre a segunda geração de regras fiscais que o ideal é ter uma combinação de mecanismos que deem a flexibilidade necessária para os gestores da política fiscal conduzirem o ajuste,  dirigirem a política fiscal de maneira fiscalmente responsável de modo intertemporal. Não dá para se ter um ano de muito ajuste, depois não ter mais ajuste.

Até por isso que, em nossa sugestão, prevemos a criação de um fundo de estabilização fiscal. Vamos supor que para 2024 o governo consiga um resultado abaixo da trajetória da dívida que foi explicitada na LDO e na LOA, conforme nossa proposta prevê. Se isso acontece, o excedente de arrecadação em relação ao primário calculado como necessário para atingir aquele nível de dívida é guardado no fundo de reserva. Em situações futuras em que o PIB cresça abaixo de 1%, ou quando tenha recessão, esses recursos podem ser usados para investimentos pré-selecionados e avaliados como viáveis e rentáveis. 

Quais resistências políticas considera que a votação do novo arcabouço pode suscitar?

Em primeiro lugar, acho que o governo Lula começou bem, no sentido de que conseguiu que fossem eleitos seus candidatos para presidir Câmara e Senado. Isso é um ponto a favor. Ainda que não garanta o alinhamento para aprovar tudo o que o governo quiser durante os quatro anos de mandato, neste início existe um crédito importante em seu favor. A regra fiscal é diferente de uma reforma tributária, que mobiliza corações e mentes em várias trincheiras, porque ela vai gerar restrição ao longo do tempo. Lembremos que o teto de gastos foi aprovado no governo Temer, que era um governo com baixa popularidade.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Subir