Inovações no setor de energias renováveis tendem a reduzir papel do gás natural na transição energética, aponta relatório

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Até poucos meses atrás, o pacto mundial para limitar o aumento da temperatura da Terra a 1,5°C em relação aos níveis pré-industriais até 2050 e mitigar os efeitos do aquecimento global se via duramente desafiado. A escalada de preços dos energéticos - grande parte motivada pela redução de investimentos na produção de combustíveis fósseis, e pelo aumento de preço dos insumos para a produção de bens relacionados ao desenvolvimento de energias renováveis - levou especialistas e governos a buscar uma revisão de planos para a transição energética rumo ao carbono zero. 

Desde a guerra na Ucrânia, entretanto, esse cenário sofreu um giro. A pressão inflacionária dos combustíveis e o desarranjo em parte das cadeias de insumos industriais permanecem, mas a ameaça à segurança energética dos países dependentes das exportações russas fez a balança pender novamente em favor das energias renováveis, realimentando a ideia de aceleração, e não ralentamento, dessa transição. A mais recente medida nessa direção foi anunciada pela Comissão Europeia dia 18 de maio. O projeto RepowerUE, que envolve investimentos de 300 bilhões de euros até 2030 para tornar a União Europeia independente do petróleo e gás russos, prevê uma pequena parte desses desembolsos para o setor de petróleo (2 bi de euros), e outros 10 bilhões de euros para estruturas de exploração de gás natural – as quais poderão, posteriormente, ser usadas no transporte de gases que não emitem carbono, como hidrogênio e amônia gerados por fontes verdes. O foco, defendeu Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, é impulsionar a energia verde. Ainda que a estratégia anunciada passe por um aumento da queima de carvão nos próximos anos, é celebrada por muitos especialistas. Em webinar promovido pelo Centro de Estudos em Regulação da Infraestrutura (FGV Ceri) no mesmo dia do anúncio, Ricardo Gorini, sênior programme officer do programa REmap, da Agência Internacional de Energia Renovável (Irena, na sigla em inglês), lembrou que os compromissos anunciados pelos países na Conferência do Clima em Glasgow, em dezembro de 2021, ainda são insuficientes para se atingir a meta de descarbonização. “Não que esse avanço não esteja acontecendo. No campo da geração elétrica, por exemplo, temos visto um aumento significativo da capacidade instalada. Mas ainda não é o suficiente. Precisamos acelerar”, diz. Qualquer sinal de dinamização desse processo, portanto, é bem-vindo. 

No World Energy Transitions Outlook 2022, publicado em março, a Irena apresenta uma lista de indicadores de performance com metas até 2030 para engatar o mundo na trilha para o carbono zero em 2050. “Os pontos de atenção são o aumento da eletrificação abastecida com renováveis, aumento do uso de energias renováveis para o consumo final; acelerar investimentos em eficiência energética; viabilizar cadeias adicionais como a do hidrogênio, bem como tecnologias de redução de emissões e captura”, enumera. Para fazê-lo de forma sustentável, ressalta, é preciso que o planejamento parta de uma visão sistêmica, que reconheça a intersecção da agenda climática com “segurança energética, a capacidade dos consumidores de absorver os ônus e bônus da mudança, e a competitividade econômica, especialmente do setor industrial”, enumera. O que, na maior parte dos casos, demanda ajustes institucionais. “Tome-se o caso é da eficiência energética. O potencial de ganho entre pequenas e médias empresas, por exemplo, é grande, mas demanda uma capilaridade, investimentos, que não são fáceis de se alcançar.”

Trajetória das emissões de CO2 com base nos compromissos anunciados na COP e o cenário previsto no WETO 1,5 °C


Fonte: Irena - WETO  1,5°; o gráfico representa apenas emissões de CO2, não incluindo demais gases do efeito estufa.

 

As metas globais que se devem conquistar até 2030 para neutralizar as emissões de carbono até 2050


Fonte: Irena - WETO 1,5ºC.

Ainda que para o Brasil o desafio de descarbonização esteja concentrado na redução do desmatamento, posto que sua matriz energética já é predominantemente limpa, os especialistas alertam para a necessidade de o país planejar adequadamente a expansão do setor de renováveis. “O país tem vocação para esse setor e pode se posicionar globalmente, com uma agenda de desenvolvimento socioeconômico não só no segmento de geração como também no de biomassa”, diz. Ele ressalta que o Brasil é a locomotiva nas projeções de investimento em energia renovável na América Latina até 2050, totalizando US$ 2,4 trilhões, o que ampliaria a capacidade instalada na região de 253 GW para 1.959 GW.

Elbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), destacou no webinar que, em seu setor, o interesse por investimento continua alto.  “De 2020 para 2021, registramos 3,8 GW de instalação, e fecharemos 2022 com 5,5 GW. É mais que o dobro do que a indústria estava acostumada a fazer”, compara. Mas o que falta para que esse processo se acelere? “A agenda é de uma reforma institucional que dê segurança ao investidor. Na toada em que estamos, perderemos credibilidade. Temos que aproveitar que o investidor está aqui e acredita no Brasil, a despeito de tudo”, diz. Para Elbia, essa reforma passaria por uma consolidação do planejamento, reunindo a representação de diversos ministérios e segmentos, da Economia ao Meio Ambiente, passando pela indústria e, claro, a energia. “Com o potencial que o Brasil tem em renováveis, e com a possibilidade de transformar a energia em algo tradable - como com o hidrogênio verde e as commodities agrícolas - o país se tornar uma potência nessa área”, diz.

O que também passa, aponta Joisa Dutra, diretor do FGV Ceri, por não retroceder em decisões sobre o futuro da matriz energética, citando o processo de desestatização da Eletrobras, que tem entre suas condições a implementação de um conjunto de usinas termelétricas a gás natural longe dos centros de carga, com a justificativa de ancorar a construção de redes adicionais. “Não se trata de negar o papel do gás natural no processo de transição energética, mas de definir  sob quais condições ele provê a flexibilidade que precisamos, quanto é eficiente do ponto de vista econômico, e quando traz benefícios sociais e ambientais”, afirma. Em nível global, Gorini destaca que os processos de redução do custo de geração das renováveis associado a avanços no campo de gerenciamento de demanda, digitalização e redução do custo de formas de armazenamento, como baterias, têm levado a uma revisão do papel do gás no processo de transição. “Temos visto a criação de novas oportunidades, inclusive mais competitivas, que levam a essa redução do papel do gás”, diz.

“Mesmo que o setor elétrico brasileiro ainda demande o apoio das termelétricas no processo de inclusão de mais renováveis na matriz, certamente não é na quantidade nem da forma como está sendo feito. Contratar termelétricas com grau de inflexibilidade de 70% é colocá-las na base da matriz e deslocar recursos já existentes, como das hidrelétricas, e outras que poderiam entrar a preços mais competitivos”, afirma. “É verdade que o sistema ficará mais complexo, dada a diversificação esperada, e precisaremos de mais requisitos sistêmicos sob várias formas, não só termelétricas. Mas vemos a progressão da viabilidade econômica das baterias, além da própria natureza da matriz elétrica, o que reforça a tese de que esse não é o caminho. Com essa decisão, o Congresso fez política energética, sendo que esse papel é do poder concedente, e não do Legislativo.” Como afirmou em entrevista à revista Conjuntura Econômica no final de 2021, o desafio brasileiro está em gerar abundância, não escassez. O que não torna, entretanto, a tarefa mais fácil. “Temos que pensar as oportunidades em torno do hidrogênio verde (que, como mostra a Conjuntura Econômica de maio, é um dos vetores escolhidos pelo governo do Ceará para dinamizar a economia do estado), como também na produção eólica offshore”, cita. No caso desta última, Élbia lembra que o marco legal para essa exploração foi publicado em janeiro, mas ainda depende de regulamentação que defina a cessão de uso do mar, que é bem da União. “Já tivemos workshop no Ministério de Energia com investidores para discutir esses critérios de cessão, para depois pensarmos em modelagem dos leilões. Esperamos que essas regras sejam definidas em dois meses, no máximo”, diz. “Hoje já temos 138 GW de projetos de eólica offshore em licenciamento no Ibama, o que demonstra o quanto o setor privado está disposto a investir. Cabe criar condições para atrair esse investimento”, conclui.

Renováveis ganham espaço na matriz mundial


Fonte: Irena - WETO  1,5°C.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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