Em Foco

Pingado com pão na chapa

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Antes da pandemia, a cada mês, mês e meio, ia para São Paulo para alguma reunião. Algumas vezes, viajava com o Armando Castelar, pesquisador associado aqui do FGV IBRE. Em Congonhas, sempre parávamos em uma padaria (padoca, como falamos, já que sou paulista), e pedíamos um pingado e um pão na chapa com manteiga Aviação antes de pegarmos um táxi e enfrentarmos o congestionamento até nosso destino.

O prazer em comer aquele pão francês, quentinho, crocante, recheado de manteiga derretida, com um pingado, sentado na mesa, com um ótimo papo com o Armando, ainda me traz boas lembranças. Não lembro direito quanto pagava, mas não devia passar de R$ 4 a R$ 5, se muito.

Há quase três anos não me sento mais em uma daquelas mesas. Deixamos de viajar, com as reuniões se tornando virtuais, e o preço das passagens aéreas nas nuvens. Um dia desses estava lendo uma matéria que saiu no jornal O Globo. Uma pesquisa feita pela empresa Horus, Inteligência de Mercado, com base em consulta em 35 milhões de notas fiscais no país, mostrou que o singelo pingado com pão na chapa pode variar de R$ 8 a R$ 15. Quanto mais sofisticado o lugar, mais caro fica. Quanto será que desembolsaria na padoca de Congonhas, hoje? Seguramente, o dobro do que pagava. A inflação está girando na casa dos 12% se for feita a comparação dos últimos 12 meses. Em 2019, a inflação estava na casa dos 4,3% ao ano, uma leve alta em relação a 2018, quando fechou em 3,75%.

Nos últimos 12 meses, o pão francês subiu 13%, o leite quase 24%, o café 68% e o ovo perto de 18%. A guerra na Ucrânia fez os preços do trigo subirem cerca de 30%, já que a Rússia é a maior exportadora mundial do produto, e a Ucrânia é a quarta. Os dois países respondem por 30% das exportações mundiais de trigo. No caso do café, houve redução da oferta mundial. Com o dólar se valorizando, a exportação do produto brasileiro ficou mais atrativa, fazendo os preços internos dispararem.

No leite, houve seca em algumas regiões produtoras, alta nos preços da energia e combustíveis, impactando os custos dos produtores, que repassaram aos consumidores. Para ovo, a alta nos preços do milho, da soja e dos combustíveis é apontada como responsável pelo aumento.

A questão do pingado e do pão na chapa é um pequeno exemplo da disseminação da inflação pela economia, o que levou o governo a pedir, recentemente, aos supermercados que “segurem os preços nos próximos dois a três meses”. E, depois, fotografar placas com preços de combustíveis nos postos de gasolina. O primeiro turno das eleições para a Presidência será dia 2 de outubro.

O salário-mínimo já não é suficiente para comprar uma cesta básica. Em maio, o valor da cesta básica divulgada pela Fundação Procon de São Paulo subiu 1,36%, para R$ 1.226,12, superando em R$ 14,12 o piso salarial do país, de R$ 1.212. De janeiro a maio, o valor da cesta básica subiu 12,69%. Nos últimos 12 meses, a alta foi de 18,07%. Em janeiro, quando o mínimo foi reajustado em 10,2%, dava para comprar a cesta básica e sobrava R$ 112,02. Em cinco meses, essa “sobra” foi comida pela inflação. Os dados da Fundação Procon São Paulo são parte de um convênio com o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Com a renda corroída, a fome e a insegurança alimentar aumentaram significativamente.

A fome aumenta: 33 milhões de brasileiros estão passando fome, enquanto mais da metade da população têm algum tipo de insegurança alimentar.

Insegurança alimentar e Auxílio Brasil: falta reconhecer que necessidade é maior nas famílias mais pobres.

Dizem que o Brasil tem memória curta. Os mais velhos devem se lembrar dos “fiscais do Sarney”. No primeiro ano de governo, a inflação chegou a 235%. Quando Sarney passou a faixa para Fernando Collor de Mello, a inflação era de 1.973% ao ano. Como diz a música de Paulinho da Viola, naquela época dinheiro na mão era vendaval. O que mais se ouvia ao entrar em um supermercado era o barulho das maquininhas de remarcar preços, utilizadas várias vezes ao dia. Para tentar conter a desenfreada alta de preços, foram feitos quatro planos econômicos. Preços foram congelados, os salários aumentados, a moeda mudou de nome. Não adiantou nada, como bem sabe quem conviveu naquela época. A inflação só começou a ser domada com a implantação do Plano Real, em 1994, no governo de Itamar Franco, que tinha como ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, que se elegeu presidente (foi reeleito para um segundo mandato), ficando no poder de 1995 a 2003.

É bom lembrar que a questão inflacionária é mundial. A pandemia, que deixou a demanda reprimida, desestruturou toda cadeia produtiva e logística e, agora, a guerra na Ucrânia, tem alimentado a subida generalizada de preços no mundo.

O governo tem atirado para todos os lados para tentar domar esse dragão. A maior investida tem sido sobre os preços dos combustíveis. A gasolina é o segundo item de maior peso no orçamento familiar, com 6,9%, seguido da tarifa de energia elétrica, com 4%. Em 2021, ambos foram responsáveis por 50% da inflação de 10% no acumulado do IPCA para o ano.

Primeiro, houve a determinação de um teto para o ICMS sobre os combustíveis. Depois, o projeto de autorização para a venda de excedente de petróleo e gás, antecipando uma receita bruta incerta, desvinculando esses valores que iriam para a saúde e educação. E, mais recentemente, uma blitz sobre a Petrobrás, que reajustou os preços do diesel e da gasolina no dia 16/6, enfurecendo o governo. O presidente da estatal pediu demissão na segunda-feira, dia 20/6, ante as fortes críticas recebida do governo e do presidente da Câmara Arthur Lira.

Analistas têm alertado que focar na redução do preço da gasolina é uma medida fora do contexto socioeconômico brasileiro, “em que o carro próprio ainda é um bem de luxo, e o uso de um automóvel como fonte de renda pode contar com outras alternativas de combustível de acordo com o preço de cada região do país”, diz André Braz, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor do FGV IBRE.

Veja: Conter o preço da gasolina a todo custo pode comprometer o crescimento do país no longo prazo.

No II Seminário de Análise Conjuntural, pesquisadores do FGV IBRE já alertavam sobre essa questão. Silvia Matos, pesquisadora e coordenadora do Boletim Macro FGV IBRE, defende que “no momento de inflação muito elevada em alimentos, as famílias mais vulneráveis necessitam de mais ajuda. A fila do Auxílio Brasil já está em mais de 3 milhões. O ideal seria zerar essa fila e ampliar o auxílio para o gás”. Na terça, dia 21/6, o governo anunciou a ampliação do vale gás e a concessão de um voucher de R$ 400,00 para os caminhoneiros. Na quinta, 23, o valor do voucher subiu para R$ 1.000,00 e o  Auxílio Brasil passaria para R$ 600,00.

Mas a eleição está na porta, num cenário em que as previsões do Boletim Macro FGV IBRE apontam para uma forte desaceleração da economia brasileira no segundo semestre. O Monitor do PIB FGV IBRE mostrou que a economia brasileira cresceu 0,3% em abril em relação a março. “A despeito do crescimento da agropecuária e da indústria, o setor de serviços, que mais contribui para o PIB, parou de contribuir da mesma forma que vinha fazendo, devido a retração do comércio e transportes”. O que pode sinalizar uma desaceleração da atividade econômica, como já vem sendo prevista por vários analistas.

Monitor do PIB: segundo trimestre começa com desaceleração, mas em ritmo mais lento.

 A aprovação de desonerações tributárias para conter principalmente os preços dos combustíveis elevou não apenas os riscos fiscais, como também deteriorou as expectativas inflacionárias para o ano que vem e impactou as ações da Petrobrás. Crescem os riscos de uma recessão mundial. E mundo afora os juros vão continuar subindo.

Caminhamos para uma recessão? A pergunta que já começa a ganhar força entre economistas e analistas é se o mundo caminha para uma recessão

É uma encrenca enorme.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Subir