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Crônica de uma morte anunciada

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Vou pegar emprestada uma das obras-primas de Gabriel García Márquez para começar este texto. Quase todos sabiam que zerar o déficit primário este ano, como vinha se desdobrando o ministro Fernando Haddad, era uma missão quase impossível. Era, como no livro de García Márquez “Crônica de uma morte anunciada”, de 1981, um ano antes de ele ganhar o Nobel de literatura, onde, desde a primeira linha da história, já se sabe que Santiago Nasar será assassinado. Todo mundo sabe, mas ninguém faz nada para avisar a vítima, impedir a morte, mesmo sabendo por toda a parte do pequeno vilarejo fictício da Colômbia, que o assassinato iria ocorrer muito em breve.

Foi o que aconteceu com o quadro fiscal. Depois de muitas idas e vindas, o governo anunciou, através do Ministério do Planejamento e Orçamento, que a meta de superávit primário para o ano que vem e 2026 passam agora para zero e 0,25% do PIB, o que deixou o mercado em polvorosa, já que reforça a desconfiança sobre a capacidade do governo na busca da consolidação fiscal e estabilidade da dívida.

Em conversa com este Blog, em matéria feita pela editora Solange Monteiro, Bráulio Borges, pesquisador do Centro de Política Fiscal e Orçamento do FGV IBRE, lembra que simulações de médio e longo prazo, feitas pelo próprio governo, apontavam para a necessidade de se ter um superávit primário de, pelo menos, 1% do PIB para estabilizar e, eventualmente, encaminhar a dívida pública em direção a uma queda. Prometer iniciar uma tênue consolidação fiscal só a partir de 2026 não deixa de ser uma péssima sinalização, arranha a credibilidade fiscal e pode ter impactos negativos na política fiscal por vários canais.

Relembre: Mudança de meta levanta dúvidas sobre compromisso do governo com consolidação fiscal, afirmam pesquisadores do FGV IBRE.

E já há sinalizações de que as coisas podem ficar ainda mais complicadas. Além das incertezas internacionais, como o aumento da tensão no Oriente Médio, houve uma mudança relevante nas perspectivas de corte de juros nos Estados Unidos, o que afeta diretamente a economia global e, especialmente, os países emergentes. Como lembra a edição de abril do Boletim Macro FGV IBRE, em sua página de abertura escrita por Silvia Matos, coordenadora do Boletim, e Armando Castelar, pesquisador associado do FGV IBRE, “conforme destacado em edições anteriores, os dados de atividade e inflação não corroboraram a visão muito otimista do mercado com relação à política monetária americana. De fato, os números de inflação referentes ao mês de março voltaram a ficar acima das expectativas pelo terceiro mês consecutivo, com destaque para a elevada inflação de serviços, indicando um processo inflacionário mais persistente. Mesmo esperando uma desaceleração da inflação à frente, como a atividade está resiliente e salários ainda pressionados, o Fed deve esperar ainda mais o início do processo de flexibilização da taxa de juros”.

E essas incertezas internacionais, agora engordadas com mais esse ingrediente da incerteza fiscal, levaram o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, a abrir mão do compromisso de promover um novo corte na taxa básica de juros de 0,5 ponto na próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), em maio. As apostas são de que o corte ficará em 0,25 ponto.

Outra notícia ruim: o Fundo Monetário Internacional (FMI) acredita que o novo arcabouço fiscal, que já começa a fazer água, não tem a capacidade de estabilizar a dívida no horizonte estimado pelo governo. O FMI projeta um aumento da dívida bruta do Brasil para este ano de 86,7% do PIB (84,7% em 2023), com elevação nos anos seguintes. Para o diretor de Finanças Públicas do FMI, Vitor Gaspar, em matéria do jornal Valor Econômico, “colocar o Brasil numa trajetória descendente de dívida requer um esforço fiscal mais ambicioso e contínuo”. Mas sempre é bom dar um desconto nas previsões do FMI.

Em entrevista à revista Conjuntura Econômica de abril, Guilherme Mello, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, além de defender um pacto entre os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – como forma de resolver os problemas estruturais do país, o que também vem sendo defendido pelo ministro Fernando Haddad, diz que descuidamos de aspectos da política fiscal por muito tempo, e isso cobra um preço”, com um sistema tributário antiquado e desigual, que captura receitas do Estado, penalizando os menos favorecidos.

No meio dessa encrenca toda, o FGV IBRE lançou o Centro de Política Fiscal e Orçamento Público, que tem como objetivo desenvolver estudos e pesquisas que auxiliem na formulação de políticas públicas que vão de encontro a sustentabilidade fiscal.

Manoel Pires, coordenador do Centro, defende que, após a decisão de revisar para baixo as metas fiscais de 2025 e 2026, o governo altere sua estratégia para reequilibrar as contas públicas, já que há necessidade de um amplo debate sobre o vertiginoso crescimento das despesas obrigatórias. Em entrevista ao repórter Alvaro Gribel, do Estadão, Pires diz que “ninguém consegue colocar o dedo na ferida do controle das despesas. A dúvida que fica é que talvez nem o ajuste fiscal lento aconteça”.

Para o coordenador do Centro, é necessário abrir um espaço político para debater essas despesas. Sem isso, “o próximo passo será alterar o limite de gastos do arcabouço fiscal, hoje com teto de 2,5% ao ano acima da inflação”.

Como tenho escrito neste espaço, fazer previsões sobre a economia tem se tornado uma árdua tarefa. Além da incerteza mundial, da questão fiscal, que agora traz mais dúvidas sobre sua sustentabilidade, a cada dado de alta frequência que é divulgado, quem se debruça sobre os rumos da atividade econômica cruza com uma interminável série de variáveis, algumas difíceis de avaliar, para procurar entender o que acontece na complexa economia brasileira, cheia de desigualdades.

Veja: Economia melhora, mas incertezas permanecem.

 

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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