Em Foco

Desigualdade e fome

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Temos aqui no IBRE, o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV IBRE), reuniões semanais internas com os pesquisadores da casa e, muitas vezes, convidados. Os temas apresentados são os mais variados, sempre com um viés econômico, que é a praia do IBRE. São apresentações, muitas vezes complexas para simples mortais, como eu, mesmo sendo jornalista econômico há mais de 40 anos. Mas levam a uma reflexão, especialmente nesse momento, que já dura um ano e seis meses, de incerteza sobre o futuro próximo.

Reconhecidos por cravar, quase sempre, as previsões sobre a atividade econômica, em especial, sobre o Produto Interno Bruto (PIB), a pandemia trouxe enormes desafios para os pesquisadores do IBRE para uma avaliação do que está ocorrendo em nossa economia. E, ainda mais, para o que está por vir. E aumentou os questionamentos sobre a eficácia de se medir a atividade econômica nos moldes tradicionais, num mundo que mudou drasticamente com novas tecnologias e, agora, com a pandemia, que, entre os vários estragos, deixou milhões de desempregados e sem renda, especialmente nos países mais pobres e em desenvolvimento.

Estudo feito por Marcos Hecksher, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em uma dessas apresentações internas, mostrou que, ainda em 2019, antes da pandemia, entre 64 países analisados, o Brasil tinha o menor nível de ocupação, com 55,8% de sua população em idade de trabalhar ocupada. Um ano depois, esse percentual baixou para 48,8%, levando o país a ter o nível mais baixo de ocupação entre os países analisados. Sem trabalho e renda, aumenta a desigualdade, a pobreza e a fome.

Pesquisa de junho último feita por Marcelo Neri, diretor do FGV Social, e equipe, intitulado “Bem-estar trabalhista, felicidade e pandemia”, mostra os efeitos da pandemia sobre as pessoas. O levantamento destaca quatro pontos principais:

O topo da desigualdade 

A pandemia acrescentou mais três décimos no Índice Gini trabalhista, elevando-o para 0,674 no primeiro trimestre deste ano, recorde da série histórica do levantamento feito pela FGV Social, o que é um grande salto na desigualdade.

O Índice de Gini, também conhecido como Coeficiente de Gini, é um instrumento matemático utilizado para medir a desigualdade social de um país, estado ou município. Quanto menor for esse índice, menor é a desigualdade social.

Pobres perderam mais

 A média das rendas individuais do trabalho na população incluindo os sem trabalho caiu 10,89% na pandemia. Já a queda de renda da metade mais pobre da população foi de 20,81%, queda quase duas vezes maior que a da média.

Prosperidade

No primeiro trimestre de 2020, a renda média do trabalho alcançou o maior ponto da série, chegando a R$ 1.122 mensais. Em menos de um ano, no primeiro trimestre de 2021, caiu 11,3%, para R$ 995, o nível mais baixo da série histórica.

Bem-Estar Social

O FGV Social calcula um indicador de bem-estar social de uma nação. Pelo trabalho, o bem-estar trabalhista, como denominam, estava no primeiro trimestre de 2020 igual ao do início da série história, em 2012. No ano seguinte à pandemia, caiu 19,4%, o pior da série.

O estudo completo do FGV Social pode ser acessado aqui.

Hoje, desigualdade e pobreza, escancarados desde o começo do ano passado, são os principais desafios a serem enfrentados pelo mundo, como mencionou o ex-gerente geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kenneth Rogoff, atual professor da Universidade de Harvard, como mencionado no Em Foco de 11 de junho último.

Se nos países mais pobres e em desenvolvimento o aumento da desigualdade e da pobreza, com a consequente ampliação do contingente de pessoas que ingressaram na legião dos que já passavam fome foi devastadora com a pandemia, as nações ricas também sofrem com esse mal, ainda que em níveis bem mais suaves.

Olivier De Schutter, relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU), disse que o compromisso das autoridades da União Europeia (UE) de tirar 20 milhões de pessoas da pobreza em 2020 foi “amplamente esquecido”, embora a região tivesse apresentado nos últimos anos um crescimento econômico estável, o que sinaliza que os benefícios dessa expansão econômica não foram distribuídos de forma uniforme.

Mas se a pandemia piorou essa situação, afetando o bolso de milhões de pessoas que perderam seus empregos, para um punhado de gente ocorreu o contrário: a riqueza dos maiores bilionários do mundo aumentou em cerca de US$ 5 trilhões em 2021, segundo a revista norte-americana Forbes. Na lista dos bilionários, mais 600 pessoas foram incluídas. Se formos contar apenas o período da pandemia, a partir de março do ano passado, a cada 17 horas um novo bilionário surgiu no planeta.

No Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, o 1% mais rico detinha 28,3% da renda total do país, segundo Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU de 2019. Isso quer dizer que quase um terço da renda do país estava nas mãos dos mais ricos. Já os 10% mais ricos, concentravam 42% da renda total. O que deve ter aumentado durante a pandemia.

Concentração de renda
(nas mãos de 1% da população)


Fonte: Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH). ONU – 2019.

Um estudo divulgado pela Oxfam Brasil no início de 2020, antes da eclosão da pandemia, já mostrava que a concentração de renda no mundo estava acelerando: os 2.153 bilionários do mundo, listados no levantamento, tinham mais riqueza que 60% da população mundial, sinalizando que a desigualdade global estava em níveis recordes, com o número de bilionários dobrando na última década.

O trabalho da Oxfam mostrou que um dos combustíveis que move essa concentração de renda e a riqueza dos países, é a utilização de mão-de-obra extremamente barata, em alguns casos se igualando a uma escravidão, onde as mais afetadas são as mulheres e meninas. A elite mais rica do mundo está acumulando grandes fortunas às custas, principalmente, de mulheres e meninas pobres que passam boa parte de suas vidas em trabalhos domésticos e de cuidados, alerta o trabalho.

“Milhões delas passam boa parte de suas vidas fazendo trabalho doméstico e de cuidado, sem remuneração e sem acesso a serviços públicos que possam ajudá-las nessas tarefas tão importantes”, afirmou Katia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil, quando do lançamento do estudo.

Nessa linha, Laisa Rachter, pesquisadora do FGV IBRE, fez um estudo com dados da PNAD Contínua de 2019, mostrando que as mulheres gastavam o dobro do tempo que os homens em afazeres domésticos: em média 11 horas para 21 horas por semana, respectivamente, equivalente a quase 68 dias a mais por ano, considerando uma jornada de oito horas por dia.

“Este é um padrão que se perpetua por gerações, que aparece ainda na infância e se intensifica na adolescência. Até os 10 anos, essas diferenças são modestas, com meninas gastando em torno de 1 hora a mais que os meninos nos afazeres domésticos (5,5 horas contra 4,5 horas). Mas essas diferenças crescem bastante à medida que as crianças chegam à adolescência. Aos 14 anos, essa diferença sobe para 3,6 horas semanais e aos 18 anos chega a 6,5 horas semanais”, escreveu Laisa em artigo publicado no jornal Valor Econômico em 18 de maio último.

Média de horas trabalhadas
(meninas e meninos)


Fonte: PNAD Contínua 2019. A linha indica a média de horas trabalhadas por meninas entre 5 a 18 anos. A tracejada, a média de horas trabalhadas pelos meninos entre 5 a 18 anos.

A desigualdade e pobreza serão, sem sombra de dúvida, os grandes desafios a serem enfrentados pelas nações, já que o fosso tem se alargado de forma preocupante. E a fome, um dos flagelos da humanidade, estende seus tentáculos por todos os cantos. Aqui no Brasil, depois de ficarmos fora do mapa da fome em 2014 com o alcance do programa Bolsa Família – estudo do Ipea, baseado em dados de 2001 a 2017, mostrou que, no decorrer de 15 anos, o programa reduziu a pobreza em 15% e a extrema pobreza em 25% -, voltamos a ingressar nas estatísticas. A pandemia, a medíocre produtividade do país e baixo crescimento, a inflação que volta a mostrar sua cara puxando para cima os preços dos alimentos e afetando as classes de renda mais baixas, principalmente, são alguns dos vários ingredientes que alimentam esses números sombrios. O Mapa da Fome da ONU considera que um país é incluído no levantamento quando a subalimentação atinge 5% ou mais da população.

Insegurança alimentar no Brasil
(% da população)


Fonte: IBGE.

 

O mapa da fome no Brasil
(percentagem de lares com insegurança alimentar)


Fonte: Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) – 2020.

Estudo da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), mostra que 164 milhões de pessoas estavam na linha da pobreza em 2012, número que saltou para 209 milhões no ano passado, numa projeção que levou em conta os efeitos dos programas de transferência de renda. Ou seja: sem eles, o quadro seria ainda mais dramático. E o contingente dos que estavam na extrema pobreza passou de 47 milhões para 78 milhões no mesmo período. De 2015 para cá, tanto a pobreza quanto a extrema pobreza na região não pararam de crescer. Leia mais.

É um desafio enorme. Como resolvê-lo, e se há interesse político para isso, são as questões que continuam no ar.

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Até ontem, 303.349 brasileiros haviam morrido, só neste ano, pela pandemia do coronavírus. Nessa triste contabilidade, Carlos Langoni, diretor do Centro de Economia Mundial (FGV CEM) e ex-presidente do Banco Central, depois de lutar bravamente contra o vírus desde novembro do ano passado, sucumbiu à doença no último domingo (13). Deixa contribuições inestimáveis no campo econômico, entre elas seus estudos sobre o papel da educação no desenvolvimento de um país.

Mortes no Brasil
(Covid-19)


Fonte: Consórcio de Veículos de Imprensa brasileira.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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