“Temos sido procurados por várias empresas, que reconheceram nossa capacidade na pandemia”

Mauricio Zuma, diretor do Bio-Manguinhos/ Fiocruz

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Como avalia o impacto da pandemia na atividade de Bio-Manguinhos/Fiocruz?

A Covid-19 ampliou nossa visibilidade. Temos sido procurados por várias empresas, que reconhecem nossa capacidade instalada para produzir insumos, inclusive em escala mundial. Nosso objetivo primeiro sempre será o SUS, mas também estão abrindo possibilidades para colaborar com exportações para o país.

Agora o governo tem abordado o desafio de reindustrialização, e hoje nos sentimos preparados para dar resposta a essa demanda do governo na área de vacinas, biofármacos, diagnósticos, e estamos entrando na área de terapias avançadas. Tivemos reuniões com empresas estrangeiras desse segmento, e vamos participar de testes clínicos e da implementação dessas terapias no Brasil.

Quais são essas terapias avançadas?

Hoje trabalhamos em duas frentes. Estamos negociando programas na área de câncer (leucemia) e HIV, e outra na área de doenças raras – ambas com instituições americanas, uma universidade e outra organização sem fins lucrativos. E como chegamos aí? Graças ao fato de que os insumos para esses tratamentos são produzidos em plataforma de vetor viral, que foi justamente a que implementamos para produzir a vacina da Covid-19, em parceria com a AstraZeneca e a Universidade de Oxford.

Como está o projeto junto à OMS de criação de um hub latino-americano de vacinas com base no mecanismo de RNA mensageiro?

Já fizemos prova de conceito de nossa vacina, e tivemos resultados excelentes. Estamos finalizando os ensaios laboratoriais para começar os estudos clínicos. Em paralelo, estamos importando equipamentos que nos permitirão fazer essa produção em escala industrial – hoje nossa capacidade é apenas para escala laboratorial. Nosso compromisso com a OMS, com a Organização Pan-Americana de Saúde, é de, isso tudo dando certo, aumentar o acesso a vacinas na região e também transferir a tecnologia de produção a outros países que tenham capacidade de fabricação – que são poucos. A empresa argentina Sinergium, que tem trabalhado em parceria conosco e já produziu IFA (insumo farmacêutico ativo) para a vacina da Covid-19 é uma delas. A Sinergium nos acompanha na iniciativa com a África do Sul – que, diferentemente da nossa, é de reprodução de uma vacina já existente. Até para ver quem chega primeiro, e quem irá compartilhar a tecnologia, focada na produção para ampliar o acesso à vacina em países de média e baixa renda.

Como evolui o projeto de construção do novo Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde (Cibs), com investimento estimado em R$ 5 bilhões?

Estamos trabalhando com o grupo vencedor da licitação (GRT Partners), sob o mesmo conceito (built to suit, em que  Bio-Manguinhos define os aspectos técnicos e o investidor financia, contrata e realiza a obra. O pagamento é feito na forma de aluguel, em 15 anos a contar do início de operação da fábrica, e no final desse período o patrimônio se reverte para Bio-Manguinhos). A GRT agora está finalizando o arranjo de investidores – entre os quais estão o BNDES, IFC e o fundo árabe Mudabala –, e a expectativa é de que nos próximos dois meses se inicie a construção. O prazo máximo é de 48 meses para conclusão total das obras, mas devemos receber as primeiras instalações produtivas em 24 meses, para iniciar as validações e certificações, e garantir que no prazo de quatro anos comece de fato as operações na fábrica. Com o Cibs, quadruplicaremos a capacidade de produção que temos hoje – podendo ser até mais, dependendo do mix a ser produzido. Será o maior complexo de processamento final para vacinas e biofármacos da América Latina, e certamente com perspectivas de atender outros países.

Como essas iniciativas de Bio-Manguinhos podem contribuir para o adensamento da cadeia produtiva da saúde no Brasil?

Na medida em que vamos introduzindo novas plataformas tecnológicas, isso também vai pressionando a cadeia de suprimentos e abrindo oportunidades. Dou um exemplo. Essa plataforma de vetor viral que mencionei opera uma tecnologia chamada single use, em que no lugar de você fabricar o produto diretamente dentro da máquina, usam-se bolsas e conexões descartáveis, o que dá mais segurança na produção, por serem produtos estéreis. Essas bolsas e conexões hoje são importadas da Europa, mas poderiam ser produzidas aqui, com empresas locais ou atraindo estrangeiras, que poderiam fabricar aqui e vender para a região.

Quais os desafios para se atrair uma multinacional ao Brasil que não mire só o mercado interno e exporte daqui?

O país precisa ser visto como amistoso para esse arranjo. Para isso, além do expressivo mercado doméstico, é preciso uma série de elementos como confiança nos contratos, na política de impostos, no ambiente tecnológico. Tenho conversado com muitas empresas internacionais que avaliam a possibilidade de implantar uma operação no país. Existe interesse. Se o país colocar em marcha uma política de reindustrialização que se conecte a essas demandas, acho que podemos atraí-las.


Laboratório do Bio-Manguinhos: plataforma de fabricação de vacina contra a Covid-19 abriu duas novas
frentes de atuação para o Instituto, em terapias avançadas para câncer e em doenças raras.

Quais os problemas estruturais brasileiros que mais afetam a competitividade da indústria de saúde no Brasil e que deveriam ser priorizados pelo governo?

Considero que os mesmos que afetam as demais indústrias. Precisamos de uma reforma tributária que dê mais racionalidade ao sistema e permita uma oxigenação da atividade econômica. Se hoje muitas empresas avaliam que é mais fácil comprar fora que produzir no país, parte se deve à questão tributária. Também precisamos focar a educação em nível técnico e superior. Em nossa área, é difícil encontrar um profissional pronto ao se formar, mas é fundamental que ele tenha um bom conhecimento básico.

E precisamos identificar, em saúde, o que é estratégico para o país, e o que desenvolveremos em parcerias, pois não conseguiremos, nem devemos, pensar em fazer tudo. Dessa forma, colocaremos o objetivo de reindustrialização a favor da atração das indústrias que precisamos, que nos permita reduzir custos e – como foi o caso com a vacina contra a Covid-19 – avançar em outras tecnologias com mais rapidez.

A íntegra desta entrevista estará disponível a partir de amanhã na Conjuntura Econômica de fevereiro, com acesso gratuito, aqui no Blog.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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