Rigidez no formato de transferências e falta de planejamento regional impedem maior eficiência dos recursos à saúde pública, afirma especialista

Andre Medici, especialista em economia da saúde

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Sempre que convidado a contribuir com análises para matérias da Conjuntura Econômica, o economista André Medici, especialista em saúde, é generoso em tempo e disposição para traçar um abrangente quadro do setor no Brasil. Na edição de fevereiro da Conjuntura (leia aqui), o tema foi saúde pública no âmbito dos municípios. Tal como o médico sanitarista Gonzalo Vecina, Medici defende o estímulo ao planejamento regional de políticas de saúde, integrando municípios e estados, bem como maior flexibilidade no uso das transferências, “considerando as peculiaridades e necessidades específicas de cada região”. Leia aqui a íntegra da entrevista de Medici:

Como classifica a evolução do papel dos municípios brasileiros na prestação de serviços de saúde?

No Brasil, a competência para legislar e prestar serviços de saúde, desde a Constituição de 1988, é concorrente entre a União, dos estados e municípios. Sendo a saúde um tema onde a prestação não pode se dar em abstrato, necessitando de uma localidade física, cabe aos municípios, entidades que formam juntamente com os Estados, de acordo com o texto constitucional, legislar sobre todos os assuntos de interesse local. A expressão constitucional "competência comum" deve ser compreendida como a capacidade e o direito que têm a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios de legislar e praticar todos os atos administrativos necessários ao cuidado da saúde, não havendo a supremacia jurídica de um sobre o outro.

No entanto, o Brasil conta atualmente com 5.570 municípios, e não se pode deixar de visualizar a sua heterogeneidade no tocante à dimensão populacional (temos municípios com menos de mil habitantes até São Paulo, com mais de 10 milhões), capacidade de arrecadação e autonomia fiscal e financeira, e capacidade administrativa para a provisão de serviços de saúde em todos os níveis de complexidade.

Intuitivamente, há uma divisão de papéis, onde caberia aos municípios concentrar-se na atenção básica, enquanto estados e governo federal tratariam mais de temas de atenção de média e alta complexidade. Mas a realidade não é assim, dado que os maiores municípios têm ações em todos os níveis de complexidade, enquanto os menores nem o feijão com arroz da atenção básica têm capacidade de produzir. Portanto, a chave é um planejamento que permita aos governos gerar as reais dimensões de escala administrativa, financeira e técnica para a prestação de serviços de saúde.

A discussão sobre os temas de regionalização e o conceito de região (ou redes) de saúde estariam na base para essa resolução. Muitos estados, como São Paulo, já operam seus sistemas nessas bases de regionalização, integrando políticas e ações de saúde dos três níveis de governo para uma atenção planejada a uma população adstrita e de determinada dimensão. Nesse particular, grandes municípios, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, podem até mesmo ter várias regiões de saúde, enquanto outras regiões são formadas por um conjunto de municípios. Dentro de cada Região de Saúde há uma hierarquia entre instituições de saúde, segundo suas funções e grau de complexidade, das mais complexas como hospitais terciários até as menos complexas como postos de saúde, que permitem trabalhar ao longo de clínicas de cuidado que permitem a referência e contrarreferência dos pacientes segundo a complexidade das ações de saúde que necessitam. Em tese, este seria o melhor funcionamento. Na prática, isto não acontece. Não existem regiões ou redes de saúde em todos os estados, nem todos os municípios estão arrolados a uma rede de saúde.

Em saúde, apesar do discurso da igualdade e equivalência entre os poderes, observamos que a autonomia dos municípios é relativa e frágil, uma vez que, por exemplo, os municípios não possuem representatividade no poder Legislativo e não podem propor emendas constitucionais. A autonomia e status dos municípios podem, sem dúvida, ser retiradas de uma hora para outra através de Emenda Constitucional.

Ao mesmo tempo, as implicações da pretensa igualdade entre os poderes na área de saúde são claras. Quanto maior número de tomadores de decisão no poder executivo (5570 prefeitos, 27 governadores e governo federal), mais difícil é o consenso sobre qualquer assunto, como pôde ser recentemente observado durante a pandemia do COVID-19, onde muitas decisões de 27 governadores foram ignoradas ou descumpridas em todo ou parcialmente por uma parcela substancial dos prefeitos. Em períodos pré-Constituição Federal de 1988, os estados teriam a última palavra no que tange ao cumprimento dos dispositivos de combate à pandemia, por exemplo.

É verdade que o empoderamento dos municípios na saúde, com o recebimento de recursos federais através de transferências do fundo nacional de saúde, contribuiu para melhorar o acesso local a serviços básicos, mas ao mesmo tempo aumentou a inequidade nesse acesso, dado que nem todos os municípios receberam a melhor combinação das transferências com seus recursos próprios ou tiveram a melhor capacidade técnica e administrativa para implementar as políticas de saúde. Como corolário, existem áreas de excelência na cobertura de saúde e enormes vazios assistenciais.

Durante a pandemia essa desigualdade assistencial ficou patente. Um estudo realizado pelo IEA da USP em São Paulo demonstrou que a expansão dos casos de Covid-19 não ocorreu de forma homogênea e uniforme em São Paulo, por exemplo. Nos pequenos municípios, com até 20 mil habitantes, o aumento médio dos casos da covid-19 foi de 503% no segundo semestre de 2020, mostrando que estes lugares iniciam o ano de 2021 com as maiores taxas de contaminação do País. Se considerarmos apenas a situação dos municípios menores ainda, com até cinco mil habitantes, a situação é mais dramática, com aumento de 850%. A análise da difusão pelo território de doenças transmissíveis, como a covid-19 deve ser entendida através da hierarquia das cidades da capacidade resolutiva de suas rede de serviços em bloquear a transmissão a través de medidas de comunicação social, detecção de casos e medidas de saúde pública.

A pandemia de expôs a necessidade de fortalecer a saúde pública e a importância do SUS, mas também apresentou as mazelas dessa estrutura que, com baixos investimentos e escassos profissionais, fragiliza desproporcionalmente as cidades pequenas, que, ao serem afetadas, apresentaram os efeitos da pandemia com maior impacto sanitário. Portanto, um ordenamento territorial da saúde, através de uma política mais ampla de regionalização e redes hierarquizadas de saúde, é a única forma de transmitir, mas equidade e eficiência a prestação de serviços, que se torna mais grave em situações emergências como a da pandemia.

Quais os desafios da coordenação de políticas nas três esferas de governo?

O aprimoramento das regras de financiamento do SUS, particularmente nos estados e municípios, é um dos grandes desafios no Brasil. As atuais regras de repasse de recursos federais aos estados e municípios, além de rígidas, são uniformes numa realidade onde Estados e Municípios têm necessidades diferenciadas. Na atual normatização dos repasses de recursos, estados e municípios devem se organizar para atender normas padronizadas e definidas pelo ente transferidor, tendo como uma de suas vedações a não-autorização de quaisquer remanejamentos de valores entre os blocos temáticos. As eventuais sobras recursos devem ser mantidas em aplicação financeira de resgate automático até a sua data de utilização.

Um exemplo claro foi o que ocorreu nas transferências de recursos aos estados e municípios para enfrentar a pandemia. A repercussão dos efeitos da ausência de discricionariedade é um fator relevante, quando foram disponibilizados quase R$ 10 bilhões para este fim. Como a integralidade dos recursos foi alocada no bloco de custeio, as possibilidades de gasto com as adaptações para o atendimento de necessidades de investimento ficaram reduzidas. Para exemplificar, os governos subnacionais poderiam adquirir equipamento de proteção individual, como luvas, máscaras, mas não foi permitido investimento na ampliação de leitos hospitalares, respiradores, monitores cardíaco, eletrocardiógrafos, e outros equipamentos, limitando as ações dos municípios em áreas de maior urgência para o atendimento de casos graves.

Desde novembro de 2023 o governo federal assinou progressiva legislação de aumento de repasses aos estados e municípios para compensar perdas de arrecadação com a reforma fiscal. No entanto, ainda não estão definidas as regras, no caso da saúde, de como os recursos atualmente repassados de forma negociada poderão ser revistos para dar maior autonomia.

O repasse de recursos, tanto para custeio e investimento dos estados, deveria estar associado a projetos de investimento de cada esfera, mas dentro de um processo de coordenação de redes de saúde ou regiões de saúde que demonstrem investimento conjuntamente planejados nestas esferas. Atualmente, estados e municípios recebem suas transferências em “silos” e não discutem projetos coordenados de investimento e custeio de suas ações de saúde. Com a rigidez do formato das transferências e a falta de uma coordenação prévia no planejamento das ações, acaba ocorrendo baixa eficiência, baixo retorno dos recursos transferidos e, muitas vezes, devolução de recursos. Adiciona-se a tudo isso o processo esquizofrênico de desviar cada vez mais recursos para emendas parlamentares, que acabam fazendo investimentos “fora da caixa”, muitas vezes de resultados duvidosos, já que estão mais alinhados com os interesses políticos dos parlamentares do que com as reais necessidades de suas regiões.

Quais boas práticas deveriam guiar o debate em torno da saúde nas próximas eleições municipais?

Primeiramente, é necessário estimular a elaboração de planos de saúde regionais, envolvendo a participação ativa de gestores municipais e estaduais, antes de discutir os planos individuais de cada estado ou município. Integrar os planos locais em uma abordagem regional, considerando as necessidades específicas de cada área é essencial.

Em segundo lugar, haveria a necessidade de fortalecer os processos de transparência e prestação de contas dos recursos transferidos, criando mecanismos transparentes de divulgação dos critérios e valores das transferências para auxiliar o papel de órgãos como os tribunais de contas federal e dos estados, disponibilizando informações detalhadas sobre a destinação dos recursos e os resultados alcançados.

É necessário fortalecer as redes de atenção à saúde e fomentar sua criação sustentável promovendo a integração entre os diversos níveis de atenção. Deve-se valorizar o trabalho em rede, com ênfase na comunicação entre os diferentes pontos de atenção. A promoção da regionalização de forma gradual e sustentável, é tarefa precípua dos Estados, considerando as especificidades locais e respeitando as capacidades de gestão.

Deve-se incentivar a integração de sistemas de informação em saúde nos diferentes níveis de atenção e entre os entes federativos, e facilitar o compartilhamento de dados para uma gestão mais eficiente e integrada.

É necessário, também, incentivar a participação ativa de conselhos de saúde, representantes da sociedade civil e profissionais de saúde na definição de critérios e prioridades dado que cada realidade é mais diversificada do que pensa o governo federal de seu Olimpo em Brasília. A realização de audiências públicas para discutir orçamentos e planos de aplicação dos recursos deveria ser um processo mais frequente e menos protocolar, nesse aspecto.

Vincular a transferência de recursos a metas regionais de saúde, incentivando o alcance de indicadores de desempenho é outro passo importante. Deve-se considerar, nesse caso, a efetividade das redes de atenção à saúde na distribuição de recursos. A Implementação de indicadores de avaliação de desempenho regionais para mensurar a efetividade do uso dos recursos é crucial, dado que, no Brasil, acaba não havendo nenhuma responsabilização sobre a ineficiência na aplicação dos recursos, o que faz com que ela se repita a cada ano. Estabelecer metas e resultados esperados, vinculando o repasse de recursos ao alcance dessas metas seria crucial.

Promover a descentralização dos recursos, mas garantindo capacidade técnica e gerencial nos níveis estaduais e municipais também me parece essencial. Deve-se oferecer capacitação constante aos gestores locais para melhorar a eficiência na aplicação dos recursos. Investir em capacitação e educação permanente para profissionais de saúde envolvidos nas redes regionais é uma missão fundamental das redes de saúde, que tem que ser gerenciadas com base em conhecimentos, técnicas e evidências.

Devem-se aumentar, ao nível das redes, os incentivos para fortalecer a atenção primária como ponto central na organização das redes de saúde e valorizar estratégias de prevenção e promoção da saúde. Para tal, o desenvolvimento e implementação de protocolos e linhas de cuidado regionais, garantiriam a padronização da gestão, a qualidade nos serviços de saúde e a integração dos cuidados de forma articulada e eficiente.

Permitir certa flexibilidade nos repasses, considerando as peculiaridades e necessidades específicas de cada região é essencial. Realizar revisões periódicas nos critérios de distribuição, adaptando-os às mudanças epidemiológicas e demográficas é a melhor forma de flexibilizar, inicialmente, esse processo. Mas ainda que a finalidade das transferências deva ser o mais flexível possível, é necessário estabelecer padrões e protocolos para os processos de prestação de contas, facilitando a análise e auditoria. Utilizar sistemas integrados de informação para agilizar os procedimentos e reduzir a burocracia é essencial.

Devem-se criar programas de incentivo à inovação em saúde e qualificação dos profissionais para estimular a implementação de boas práticas e modelos eficientes de gestão. É necessário também facilitar a troca de experiências bem-sucedidas entre Estados e Municípios e estimular a colaboração e cooperação entre diferentes esferas de governo, rompendo a atual situação de decisões tomadas em silos.  Manter canais de diálogo abertos entre os entes federativos para ajustes e melhorias constantes é a chave para reduzir disparidades e se beneficiar das sinergias entre experiências bem-sucedidas.

Por outro lado, o combate à corrupção e a criação de controle e fiscalização para prevenir desvios e práticas corruptas é fundamental para estabelecer canais de denúncia e auditorias independentes.

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