“É crucial equilibrar o compromisso de previsibilidade orçamentária na saúde com flexibilidade e eficiência na gestão”

André Medici, especialista em economia da saúde

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Entre economistas, a volta dos mínimos constitucionais para saúde e educação – vinculados à receita, e não mais corrigidos pelo o IPCA como ocorreu até o ano passado –, traz o alerta sobre a ampliação de gastos que implica para 2024, seja pela possibilidade real de se garantir uma alocação eficiente desses recursos, seja pelo atual quadro fiscal, que demanda contenção para se cumprir a meta de resultado primário. Como avalia essa questão no campo da saúde?

A resposta depende de como são alocados os recursos no orçamento – se estão baseados em prioridades ou se estão montados em função de questões casuísticas ou relacionadas a interesses de grupos que não representam as prioridades nacionais. Sabemos que a maioria dos economistas prefere liberdade na alocação dos recursos orçamentários, e a fixação de percentuais de receita para gastos em saúde, quando os gastos são excessivos ou alocados de forma ineficiente, pode criar problemas. Mas em contextos em que as prioridades não são claras, em que existem riscos elevados de corrupção ou defesa de interesses particulares, muitas vezes contraditórios às prioridades públicas nacionais, fixar mínimos orçamentários em relação às receitas é uma forma de proteger as populações desprovidas de políticas públicas com o acesso a serviços que são essenciais e prioritários, mas que na prática estão em segundo plano na execução das políticas de governo, na estrutura do orçamento e no gasto público.

Ao longo da história, vários economistas e gestores públicos defenderam a atribuição de prioridades do orçamento público a políticas sociais, como a educação e a saúde. Por exemplo, John Maynard Keynes defendeu gastos substanciais em programas sociais durante crises econômicas como forma de capacitar a nação para novos períodos de prosperidade. Vários prêmios Nobel de Economia, como Amartya Sen, Josef Stiglitz, Paul Krugman, e outros economistas de renome como Jeffrey Sachs e minha amiga Nancy Birdsall defenderam a priorização de investimentos e gastos em saúde como componentes essenciais do desenvolvimento humano, como forma de promover o crescimento econômico, aumentar a produtividade, reduzir a desigualdade, alcançar objetivos de desenvolvimento sustentável e reduzir a pobreza.

É importante notar que, embora estes economistas possam apoiar a atribuição de montantes fixos às políticas sociais, os detalhes específicos e as recomendações políticas podem variar nas suas opiniões sobre a intervenção governamental. Além disso, as perspectivas econômicas são diversas e nem todos os economistas podem concordar sobre a melhor abordagem à alocação do orçamento para as políticas sociais.

A ideia de criar um percentual fixo de recursos do orçamento para a saúde pode ser considerada importante em países onde os gastos são reduzidos frente às necessidades e o processo orçamentário é fragilizado pela inclusão de prioridades de interesses particulares de membros dos três poderes e pela corrupção. Estabelecer um percentual fixo da receita fiscal para a saúde pode garantir a complementação das necessidades de investimento e gasto no setor, independentemente das mudanças nas prioridades políticas. Isso pode proteger os recursos destinados à saúde de cortes arbitrários ou desvios para outros fins, bem como para minimizar práticas corruptas, reduzindo a margem de manobra para desvios de recursos do orçamento.

Por outro lado, dedicar uma porcentagem da receita para o orçamento da saúde permite aos gestores de saúde contar com uma fonte estável de financiamento para facilitar o planejamento a longo prazo, permitindo investimentos em infraestrutura, treinamento de profissionais de saúde e programas preventivos.

No entanto, é importante observar que a eficácia dessa abordagem depende da implementação adequada dos recursos, transparência na gestão financeira e monitoramento eficaz para garantir que os recursos alocados sejam realmente utilizados de maneira eficiente e para beneficiar a população. Além disso, políticas de saúde eficazes devem ser complementadas por esforços para combater a corrupção e fortalecer as instituições responsáveis pela gestão financeira do setor, que no caso do Brasil, tem sido fruto de inúmeros desvios de recursos ao longo das últimas duas décadas.

É crucial entender que a simples fixação de um percentual não garante, por si só, uma alocação eficiente dos recursos. Isso somente ocorre se esse dinheiro for direcionado para áreas de maior necessidade e impacto, maximizando, também, a eficiência técnica, ou seja, o alcance dos resultados com os recursos disponíveis.

Fixar um percentual da receita para a saúde pode enfrentar desafios de implementação, caso não haja mecanismos eficazes de gestão, transparência e responsabilização. Por exemplo, não podemos fixar recursos para a saúde com metas abertas de resultado, como já se defendeu em governos anteriores. Percentuais fixos devem ser casados com metas rígidas e resultados esperados. Mas uma abordagem mais flexível pode ser necessária para garantir que os recursos sejam alocados de maneira ágil e eficaz, ou seja, uma vez atingidas as metas quantitativas com os recursos fixos alocados, os recursos restantes poderiam ser canalizados para outras prioridades alocativas ou serem utilizados em metas repactuadas com os gestores públicos.

Em resumo, enquanto a fixação de percentuais pode ser um passo importante para assegurar uma alocação consistente de recursos para a saúde, a eficiência alocativa somente será obtida através da implementação adequada, da capacidade de adaptação a mudanças e de mecanismos robustos de monitoramento e avaliação. O objetivo é garantir que os recursos sejam utilizados da maneira mais eficiente possível para melhorar a saúde da população. Os principais desafios nessa tarefa estariam associados a; (i) criação de rigidez orçamentária limitando a capacidade de que o país responda rapidamente a mudanças nas necessidades de gasto (como ocorreu, por exemplo, durante a pandemia de Covid-19), e ; (ii) no longo prazo, as necessidades de saúde podem variar, devendo-se levar em consideração mudanças demográficas, avanços tecnológicos ou outros temas que exigem flexibilidade futura na alocação orçamentária.

Portanto, no caso do Brasil, determinar um percentual fixo de gastos em saúde é essencial para atingir as metas de universalização com qualidade do SUS.  Ela pode ser fiscalmente apropriada no caso brasileiro, mas é crucial equilibrar esse compromisso com a previsibilidade orçamentária e com a necessidade de flexibilidade e eficiência na gestão de recursos. Além disso, é necessário que se leve em conta: (a) a necessidade de salvaguardas para que não se cumpram esses percentuais em casos de força maior que exijam gastos extraordinários do orçamento e (b) a necessidade de que esses percentuais sejam revisados periodicamente em função das necessidades, prioridades e metas estabelecidas para a saúde no Brasil. 

Qual a melhor calibragem em se tratando de um país que tem universalização de saúde e está envelhecendo?

A determinação da quantidade de recursos orçamentários destinados à saúde no Brasil (ou em qualquer país) é um processo complexo e requer consideração de diversos fatores. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabelece que uma parcela mínima da receita de impostos deve ser destinada à saúde, conforme previsto na Emenda Constitucional 29 (EC 29), posteriormente, pela Emenda Constitucional 86, a Emenda Constitucional 95 e as Leis complementares 200 e 201. Recentemente, publiquei uma panorâmica sobre este processo no meu blog Monitor de Saúde (leia aqui

No entanto, se observarmos, a fixação de percentuais para a saúde no orçamento, na prática, nunca foi seguida à risca, dado que a realidade (política, inclusive) é que acaba moldando o que de fato se gasta em saúde. Creio que alguns pontos importantes devem ser considerados na formulação de uma metodologia para calcular a quantidade de recursos orçamentários destinados à saúde a cada ano no Brasil

(i) O percentual mínimo constitucional obrigatório destinado à saúde deveria ser revisado periodicamente para garantir que reflita adequadamente as necessidades do sistema de saúde e as demandas da população, incluindo àquelas derivadas do envelhecimento. Deve também estar associada de forma rígida a metas de resultado com os recursos aplicados, para que se possa avaliar a cada instante a eficiência alocativa dos recursos. No entanto, deve-se observar a totalidade dos recursos gastos em todas as esferas de governo, sendo os recursos federais orçados depois de conhecer a disponibilidade ou previsão de recursos gastos pelas demais esferas de governo – estados e municípios. Sendo um país federativo e sendo a saúde uma política de responsabilidade das três esferas de governo, os recursos federais devem sempre ser planificados como sendo de caráter complementar, buscando corrigir equidades inter e intrarregionais.

(ii) Considerando que os gastos em saúde no Brasil são curtos para o alcance das metas de universalização com qualidade, a alocação de recursos para a saúde deve considerar o crescimento econômico do país e a taxa de inflação. Se a cada ano for determinado um percentual da receita de impostos para a saúde, esse deve ser ajustado anualmente com base nessas variáveis para manter o poder de compra e atender às crescentes demandas do sistema de saúde. Ou seja, deve-se evitar decréscimos na alocação real orçamentária até que os gastos alcancem o montante necessário para o cumprimento de metas estabelecidas de universalização com qualidade. Digo metas estabelecidas e não metas abstratas, como costumam fazer os políticos e os desavisados.

(iii) Avaliações regulares das necessidades de saúde da população e do sistema de saúde são cruciais para determinar a alocação adequada de recursos. Isso pode incluir análises epidemiológicas, demandas por serviços de saúde e prioridades identificadas em políticas de saúde.

(iv) Além de considerar a quantidade de recursos, é importante avaliar a eficiência na utilização desses recursos e os resultados obtidos. O Brasil criou um sistema de avaliação de progresso do SUS (IDSUS) que só foi realizado uma só vez (2012) e pecou pelo excesso de indicadores e falta de exercício de priorização. Além do mais, gerou uma insatisfação dos governos estaduais e municipais que saíram mal na foto e acabou sendo desativado pelo governo federal que, politicamente, quer estar de bem com todos, independentemente de seus resultados. Creio que a experiência de ter uma avaliação mensal de indicadores de desempenho de saúde que pudesse apontar falhas na execução das prioridades orçamentárias em tempo real seria uma excelente ferramenta para acompanhamento e determinação da alocação adequada de recursos.

(v) Envolver a sociedade civil no processo de determinação do orçamento para a saúde pode ajudar a garantir que as necessidades da comunidade sejam adequadamente representadas. Os Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde podem funcionar como câmara de eco no conhecimento e disseminação, junto as autoridades, das necessidades. Mas é necessário que haja uma certa dose de realismo nesse processo. Uma vez, junto com Riccardo Rietti – economista que trabalhou no BID comigo – fizemos um exercício em municípios do estado do Pará sobre orçamento participativo com responsabilidade fiscal em projetos que o BID estava implementando no Estado. Os resultados foram interessantes, porque, inicialmente, quando se consulta a comunidade de um município a respeito de quais são as suas prioridades (orçamento participativo puro), poderia sair uma lista de prioridades pouco realista. Aí se fazia um segundo exercício, que era calcular quanto custa cada uma dessas prioridades e o impacto no orçamento e no aumento da carga de impostos que as pessoas teriam que pagar por seus desejos. A partir daí, faz-se novamente o exercício de priorização, e as prioridades voltam totalmente diferentes, ou seja, muito mais próximas do que se poderia chamar de expectativas racionais. Uma coisa é o desejo e a outra é a disposição a pagar. As duas devem sempre ser consideradas em qualquer processo de consulta e participação da sociedade na determinação de prioridades orçamentárias.

(vi) Manter uma certa flexibilidade no orçamento permite ao sistema de saúde responder a emergências e novas demandas sem comprometer a estabilidade financeira. Com isso deve-se levar em conta que percentuais de gasto em saúde em relação a receita devem ser fixos ma non troppo, para que se possa garantir resposta rápida a condições e prioridades inesperadas.

(vii) Garantir transparência na alocação e uso dos recursos, juntamente com mecanismos de prestação de contas (accountability), é fundamental. O governo não deve enganar a população ou mantê-la anestesiada através de fake news, mas deve ter todas as evidências necessárias para comunicar a população os resultados dos recursos gastos em saúde.

Portanto, a melhor forma de calcular a quantidade de recursos orçamentários destinados à saúde no Brasil envolve uma abordagem multifacetada, considerando a legislação existente, o crescimento econômico, as necessidades de saúde da população e mecanismos eficientes de gestão e avaliação. Essa abordagem deve ser dinâmica, ajustando-se às mudanças nas condições econômicas e de saúde ao longo do tempo.

Como avalia as diretrizes de obras do Novo PAC para o setor saúde? Há convergência com as demandas que considera mais prementes?

O novo PAC destinará cerca de R$ 30,5 bilhões ao setor saúde entre 2024 e 2028, divididos em cinco pilares: Atenção Primária, Atenção Especializada, Preparação para Emergências em Saúde, Complexo Industrial da Saúde e Telessaúde. Nada contra, mas gostaria que o governo divulgasse qual o diagnóstico que foi realizado pelo Ministério da Saúde para a definição destas prioridades. Foi considerada a capacidade instalada pelo setor privado e filantrópico existente nas regiões onde os investimentos serão feitos? Que tipo de parcerias público e privadas poderiam ser pensadas na linha destes investimentos? Como se organizariam os temas de gestão dos investimentos do PAC, uma vez terminados? Sob a égide de novos modelos gerenciais, como o VBHC (saúde baseada em valor, na sigla em inglês) ou PPPs, ou sob a velha carcaça dos serviços públicos estatutários?

Da forma como a imprensa – e o próprio governo – tem divulgado o novo PAC de saúde, parece uma iniciativa somente voltada para ou capturada pelo setor público, mas o maior prestador de serviços hospitalares no país corresponde à soma dos setores privado e filantrópico. Os próprios estados estão trabalhando em modelos de organizações sociais de forma mais avançada, mas isso não parece estar refletido nas propostas.

Os principais investimentos do PAC na saúde concentram-se em três grandes áreas: Atenção Especializada (45% dos recursos), Complexo Industrial da Saúde (29% dos recursos) e Atenção Primária de Saúde (24% dos recursos). Menos de 2% dos recursos se dedicaram às duas outras áreas, de preparação para emergências e telessaúde.

Considerando que quase metade (45%) dos recursos do PAC para saúde serão alocados em atenção especializada, deve-se ter algum cuidado no diagnóstico que está por trás dos investimentos. Embora algumas das prioridades definidas na atenção de urgência e no atendimento oncológico sejam relevantes, o programa menciona a construção de muitas unidades hospitalares novas, mas não menciona o que seria feito com a imensa quantidade de hospitais de pequeno e médio porte do SUS que são disfuncionais, bem como do mau estado de muitos hospitais públicos, como os hospitais federais que se encontram na cidade do Rio de Janeiro. Os hospitais pequenos apresentam, em média, taxas de ocupação inferiores a 25% e a maioria de suas internações poderiam ser solucionadas por atividades ambulatoriais para reduzir custo e ineficiência. Valeria a pena fechá-los e transformá-los em unidades básicas de saúde com referência para centros hospitalares de maior porte e resolutividade? Quantos recursos se economizaria com isso? Também não se mencionam temas de extrema relevância como os investimentos em falta na capacidade diagnóstica para a identificação precoce do câncer. A maioria dos casos de câncer no Brasil ainda são identificados (quando são) em pacientes em estágio avançado da doença, onde o tratamento, além de paliativo, é demasiado caro.

A segunda grande linha de investimentos se encontra no chamado Complexo Industrial de Saúde (29% dos recursos), os quais seriam aplicados, em grande medida, em unidades estatais como a Fiocruz e da Hemobrás, para dinamizar as cadeias produtivas de imunobiológicos, fármacos e equipamentos, implantando e modernizando laboratórios e instituições estratégicas para a indústria nacional da Saúde. Houve alguma análise de como se poderia realizar parcerias com o setor privado ou com investidores internacionais?

 A terceira grande linha do PAC em saúde se encontra na atenção primária, com louváveis investimentos construção de unidades básicas de saúde nas regiões mais desprovidas de serviços (especialmente Norte e Nordeste). Menciona-se investimentos em temas de saúde mental, onde é urgente a capacitação de agentes comunitários de saúde e maior envolvimento da comunidade nas iniciativas de tratamento e recuperação de pacientes.

Investimentos nas áreas de gestão e tecnologia parecem insuficientes, bem como na preparação pandêmica. A telessaúde, os registros eletrônicos e o uso de bigdata e analytics poderão aumentar o acesso a muitos pacientes do SUS nas áreas de atenção primária e em consultas a distância para o seguimento a pacientes. O uso da inteligência artificial nos processos de gestão poderá revolucionar a gestão do SUS, colocando-o mais ágil, eficiente e barato.

O que se conhece até agora do novo PAC em saúde não me parece suficiente para saber se os resultados propostos serão alcançados e se os investimentos a serem feitos, ainda que importantes, serão os mais custo-efetivos. Faltam dados, informações e planos a respeito para que se possa ter os detalhes necessários.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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