Hidrogênio verde: Chile está entre líderes no desenvolvimento, mas não está claro quem serão os compradores, diz especialista

Raúl Ferro, diretor do Latin America Energy Summit

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Na América Latina, Brasil e Chile são reconhecidos por seu potencial de produção de energia renovável a preços competitivos, o que poderia atrair projetos de hidrogênio verde. No Brasil, um dos pontos de preocupação é a lentidão no processo legislativo para regular a exploração dessa atividade e de outras relacionadas, como a de eólicas offshore (leia mais aqui). Como tem sido essa evolução no Chile?

De fato, o Chile está mais avançado em termos de agenda de desenvolvimento de hidrogênio verde, inclusive com fundos para financiar start ups. Mas há também problemas fundamentais. Um deles é que não está claro quem são os offtakers de vários projetos. Há poucas exceções, como o projeto da HIF Global em Punta Arenas, voltado à produção de combustíveis carbono neutro (tem investimento de US$ 78milhões, com capacidade de produção de 130 mil litros/ano de gasolina e gás liquefeitoleia mais).  O projeto – que a HIF reproduziu também no Texas (EUA) e na Austrália –, conta com sócios como Porsche, Exxon e Siemens, e há interessados na Alemanha em comprar a produção futura desses combustíveis. Outra é de Enaex e Engie, para produção de amônia que a Enaex pretende usar em sua fábrica no Chile (onde produz nitrato de amônio, usado nos processos de desmonte da indústria de mineração). Mas, como disse, são poucos os que já contam com compradores claros.

Isso pode ser considerado reflexo da concorrência dos grandes programas de transição energética de Estados Unidos e Europa, apoiados em importante nível de subsídios?

É fato que vemos projetos mais avançados em outros países, mas as pesquisas entre interessados continuam. Empresas japonesas, por exemplo, estão entra as que têm visitado o país para verificar seu potencial  como provedor de hidrogênio verde para a indústria pesada. No caso do Chile, há outras questões importantes. A primeira é a distância em relação a esses mercados de consumo, o que implica uma pegada de carbono no transporte, a considerar. Outro é que, apesar do abundante potencial em energia renovável – solar no norte e eólicas no sul – o processo de eletrólise demanda muita água doce, insumo que o Chile não tem em abundância, o que implica que todo projeto demanda uma planta de dessalinização. Até onde entendo, hoje há poucos projetos que já conquistaram um ponto de rentabilidade que os torne financiáveis. Também nesse caso, o da HIF é uma das exceções, com uma estimativa de ROI (retorno sobre o investimento) próxima de 15%. Outra questão, ainda sobre a mesa, é quanto à infraestrutura logística. Na região de Magallanes, que concentra um maior número de projetos, há um princípio de acordo para otimização da infraestrutura portuária da Enap para que seja compartilhada.

Pessoalmente, vejo o Brasil com mais vantagens na produção de hidrogênio de baixo carbono – o que inclui o hidrogênio azul, que usa gás natural –, pois conta com grandes indústrias locais potencialmente consumidores, como no setor de aço, cimento, fertilizantes, que é insumo importante ao agronegócio do país, que demanda muita importação. Levando em conta todas as instalações de gás que o país já possui, o potencial do pré-sal, me parece uma trilha interessante, ainda que tudo dependa dos custos. Informe recente aponta, por exemplo, que nos últimos dois anos os investimentos em hidrogênio de baixo carbono já somaram US$ 300 bilhões; a McKinsey, por sua vez, indica que, até 2030, a oferta de hidrogênio esperada ainda é dominada pelo hidrogênio azul, com 70% do total.

Como avalia os desafios do Chile – que pretende ser neutro em carbono até 2050, e ainda possui um terço de sua geração a carvão – na transição energética?

Um deles, sem dúvida, é a expansão da transmissão. No norte, muitas empresas que investiram na geração fotovoltaica tiveram problemas, pois não conseguiram cumprir seus contratos por falta de capacidade de transmissão. Não à toa, hoje o principal tema no país é armazenamento. Todos os projetos recentes de geração renovável envolvem baterias, para ganhar maior poder de arbitragem no despacho. Não é algo que garanta 24 horas de cobertura, mas é uma opção, e foco de aprimoramento tecnológico. Resta saber, entretanto, como esse mercado se estruturará quando todos esses projetos estiverem operativos.

Outra questão importante tem relação com a importância do gás como respaldo para o avanço das renováveis. Esse é um tema para o qual os defensores da matriz renovável torcem o nariz, mas é fundamental para a segurança energética, além de ser o atual substituto para o carvão. Nesse caso, o Chile tem a vantagem de contar com a produção de Vaca Muerta, na Argentina, que tem um dos custos mais baixos do mundo, e os projetos de ampliação de gasodutos estão em marcha. Uma das características interessantes de Vaca Muerta é que, tal como nas reservas de shale gas nos EUA, conta com muito líquido associado. Ou seja, há GLP sem ter de passar pelo processo de refino de petróleo.

Pelo lado da demanda, há um esforço no país de estimular o desenvolvimento das renováveis como fator de industrialização. A região de Magallanes é fundamentalmente petrolífera, mas com produção baixa, atualmente com pouca atividade econômica excluindo a logística, relacionada às empresas de navegação que passam pelo Estreito.  No caso do hidrogênio verde, não é uma indústria que demanda muita mão de obra, mas esse tipo de especialização é positivo.

No campos da logística e mobilidade, observam-se as primeiras iniciativas. Ainda há pouca infraestrutura para o transporte de carga, mas a principal distribuidora de combustível, a Copec, já começou um trabalho de instalação de carregadores nas principais estradas. Hoje já se pode ir ao Sul do país com um carro elétrico. No campo da mobilidade urbana, há algumas iniciativas, como alguns pontos de carregamento em estacionamentos de supermercados, mas ainda não está claro como será o modelo de negócios. Também tem surgido projetos imobiliários que contam, por exemplo, com pontos de carregamento em estacionamento de visitas – que podem ser usados pelos moradores que tenham carro elétrico, ou ser comercializado para vizinhos. Mas é algo que ainda depende de regulação.

O Latin America Energy Summit de 2024 será agora em abril, dias 13 e 14, em Santiago. Quais temas prometem concentrar os debates?

Não há um só tema, mas podemos resumir que todos tratam das dores da transição energética. Não no mau sentido, pois são dores de crescimento, e abarcam muitos tópicos, como tecnologias usando inteligência artificial que tragam eficiência para a transmissão sem colocar o sistema em risco. O tema do armazenamento, e os desenvolvimentos de infraestrutura também se destacam – em especial os relacionados ao avanço da produção de gás em Vaca Muerta. Estamos diante de um momento importante, em que o modelo de negócios do setor está sofrendo mudanças significativas, em que essa busca por eficiência também ganha destaque. Hoje vemos um aumento importante dos consumidores livres – no Chile, representa mais da metade do total , e as distribuidoras ficaram com muita energia comprada. Há o desafio de financiamento para novos projetos de energia renovável, pois o risco é alto em função da capacidade de distribuição. São desafios que as empresas hoje buscam equacionar.

 

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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