Ajuste pela receita: “No curto prazo, não seria diferente em outro governo”

Claudio Amitrano, diretor da Dimac-Ipea 

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Diretoria de estudos e políticas macroeconômicas

Desde o final do ano passado, muitos analistas apontam à necessidade de revisão da meta de resultado primário. Considera que essa expectativa também trata da viabilidade do arcabouço fiscal?

Tenho uma avaliação relativamente positiva em relação ao novo arcabouço fiscal, o Regime Fiscal Sustentável. Se você pega o que a literatura internacional, ela sugere maior êxito aos países que organizam as suas regras fiscais a partir de determinadas características. Quais são elas? A primeira é a adoção de regras relativamente simples. Nesse caso, o teto de gastos tem vantagem sobre o novo arcabouço, que é uma regra um pouco mais complexa. A literatura também sugere que as regras fiscais precisam ser flexíveis. Não significa dizer que pode qualquer coisa, mas que, diante de choques exógenos, a regra precisa ser desenhada de forma que seja capaz de lidar com questões extraordinárias. Desse ponto de vista, o novo arcabouço fiscal vai melhor do que o antigo, que era uma regra muito rígida. Tivemos vários choques exógenos durante o governo Bolsonaro que levaram a mudar a regra, pela falta de flexibilidade suficiente para acolher esses eventos. Quando se faz isso, fica uma suspeição sobre o quão crível é o desejo do governo de manter a regra, já que ela terá que mudar a depender do tamanho do choque. O mercado financeiro, por exemplo, conferiu o compromisso ao ex-ministro Paulo Guedes, já que a questão fiscal foi sempre importante para ele, esperando que isso se manteria no contexto em que Guedes era ministro da Economia. Isso significa, entretanto, que o mercado atribuía uma credibilidade provavelmente mais pelas pessoas que estavam conduzindo do que propriamente pela regra, que foi furada várias vezes. Acho que o novo arcabouço, do ponto de vista de seu desenho técnico, é mais feliz desse ponto de vista.

Outra coisa que a literatura internacional também sugere é que é desejável que regras fiscais tenham um componente contracíclico. Isso significa dizer que, nos momentos de baixo nível de atividade econômica, o governo possa gastar mais para fazer face à queda de gasto privado e vice-versa, ou seja, nos momentos de alta do nível de atividade, o governo possa retrair seu gasto porque os empresários e as famílias já estão gastando suficiente, e não seria necessário um estímulo fiscal adicional. Nesse quesito – que tem relação com a questão da flexibilidade –, o novo arcabouço também é mais feliz que o teto, porque este não tinha nenhum componente contracíclico. Alguns podem dizer que era neutro nos ciclos, não influenciava nem para cima, nem para baixo. De qualquer maneira, ele não estava habilitado para lidar com problemas de retração do nível de atividade econômica em que, para alguns economistas, a ação contracíclica do governo, desde que bem desenhada, comedida, é bem-vinda. Haja vista, por exemplo, o que aconteceu seja na crise financeira de 2008/09, seja na pandemia de Covid-19, quando a contração na economia levou os governos mundo afora a gastar mais, e isso de fato mitigou os impactos deletérios desses choques exógenos sobre o nível de atividade. Então, quanto a isso, acho que o novo arcabouço é melhor.

Tem outro aspecto interessante do novo arcabouço em relação ao anterior que também lhe confere um desenho técnico um pouco mais apurado, relacionado à dupla regra de gasto e de resultado fiscal. Esse elemento me parece extremamente importante porque, ainda que não enderece explicitamente a questão da dívida pública, uma regra de gasto que pode ir até um certo limite de crescimento da despesa (limite inferior de 0,6%, limite superior de 2,5% - mesmo que a aplicação do limite de 70% em relação ao crescimento real da receita primária resulte em valor maior) dá um limite para a expansão do gasto público no longo prazo. Se a regra for cumprida, a tendência deveria ser de que a participação dos gastos públicos na arrecadação convergisse para um patamar estável, o que é muito importante.

Associado a isso você tem uma regra de resultado fiscal que é um elemento fundamental para o equilíbrio, para a estabilização da dívida pública em um determinado patamar. Economistas gostam muito de falar da chamada restrição orçamentária intertemporal do governo, que diz que o crescimento da dívida é condicionado por um conjunto de fatores. O primeiro fator é o tamanho da própria dívida, que já está lá. O segundo fator é a taxa de juros que vai remunerar os títulos públicos. Quanto maior a taxa de juros, maior é a taxa de crescimento da dívida pública. No mesmo sentido, tem o resultado fiscal. Quanto maior for o superávit, menor será a tendência da dívida pública no longo prazo em relação ao PIB; quanto maior for o déficit, maior será a dívida pública em relação ao PIB. Por fim, tem a própria taxa de crescimento da economia: quanto maior a taxa de crescimento da economia tudo mais constante, menor será a relação dívida/PIB, e vice-versa.

O ministro Haddad escolheu para este ano o déficit zero (com intervalo de tolerância de 0,25% do PIB). Se a regra se cumprir, isso significa que a questão da dívida pública, mesmo que indiretamente, vai sendo tangenciada, tocada pela regra fiscal, ainda que não se coloque uma meta para a dívida. Pessoalmente, acho que o governo fez muito bem em não fazê-lo, porque o governo não controla os fatores condicionantes da dívida, pelo menos não todos os fatores. É muito complicado os governos estabelecerem metas para variáveis sobre as quais eles têm muito pouco controle, e a dívida é um caso.

Então, o arcabouço acerta sob esse ponto de vista. Gosto de ditados populares, e nesse caso diria que, com o arcabouço, dá-se uma no cravo e outra na ferradura.  Ele cria uma regra para o limite máximo de crescimento da despesa do gasto público, e ao mesmo tempo organiza as despesas de tal forma que ela precisa atender a um determinado resultado fiscal que será definido pelo governo a cada ano. Acho que isso amarra, ajuda. E tem outro aspecto que acho relativamente bem desenhado, que é o de que o não cumprimento da regra implica uma redução no ano subsequente. Isso cria um incentivo para que o governo tente adequar suas despesas, para que não tenha que fazer uma política fiscal muito dura, muito contracionista no ano subsequente.

Analistas identificam que o cumprimento da meta de primário pode ser comprometido por um ajuste pelo lado das receitas onde há elementos de arrecadação incerta e outros não-recorrentes e, pelo lado do gasto, uma tendência expansionista. Qual sua avaliação?

Pode ser que eu esteja errado, mas a reflexão que tenho consolidada é a de que essa questão de ter a receita como canal de ajuste de curto prazo não seria diferente em outro governo, tendo em vista os compromissos previamente assumidos. Também haveria aumento de gasto público, sobretudo em função das transferências de renda, o Bolsa Família. O arcabouço fiscal colocou o peso no ajuste na receita porque, na virada de 2022 para 2023, o governo eleito teve um conjunto grande de desafios que demandavam gastos públicos adicionais, para tocar um conjunto de atividades que haviam parado, desorganizadas da ação pública, e isso exige recurso.

Veja, mesmo que se faça um plano de avaliação e reestruturação de políticas, isso não acontece no curto prazo. Especialmente no Brasil, que tem um Estado complexo e relativamente grande. Acho também que isso não significará um grande choque fiscal, não vejo dessa forma. Então, o desafio inicial, tendo em vista o aumento de despesas sabidamente contratadas, deveria vir pelo lado da receita. O que não quer dizer que o governo não pudesse fazer nada pelo lado da despesa também. A impressão que tenho é que o governo começou agora a fazer bloqueio de gastos (R$ 2,9 bilhões em despesas discricionárias, anunciado em 22/3), está numa discussão de ação pelo lado da despesa, porque acho que é sincero o compromisso do ministro Haddad em cumprir a meta.

Mas, como disse, ele sabe que o canal de curto prazo era o da receita. No passado, tivemos uma arrecadação ruim, que tem a ver com fatores estruturais. O peso do setor agropecuário foi grande, que paga menos imposto que a indústria e os serviços. Tem um conceito em economia que eu gosto muito que é o de elasticidade PIB da arrecadação, ou seja, quanto a arrecadação varia quando o PIB varia. Normalmente, essa sensibilidade da arrecadação para a variação do PIB é da ordem de 1. Então, se o PIB cresce 2%, a arrecadação deveria crescer 2%.  É assim para a maior parte do mundo, e varia em momentos de recessão ou expansão da atividade. No ano passado, esse resultado foi surpreendente, porque o PIB brasileiro cresceu, e arrecadação, não. Então, uma parte da explicação reside no fato de que boa parte do crescimento foi comandado pelo setor agropecuário, que paga pouco imposto relativamente. Além disso tem a questão dos subsídios, desonerações difundidas em governo anteriores que incidiram em 2023. E aí começamos a ter uma mudança de perspectiva.

Em 2024, já começamos com mudança de perspectiva. A arrecadação reagiu mais do que o esperado nos dois primeiros meses do ano. Alguns podem dizer é temporário, que daqui alguns meses voltaremos para o mesmo padrão. É uma possibilidade, mas não me parece, porque este ano o crescimento vai estar mais centrado em indústria e serviços do que agropecuária, e essa relação entre PIB e arrecadação tende a caminhar na direção de uma normalidade.

Acho que neste momento o governo está avaliando em trabalhar alguma contenção de gasto tendo em vista como a economia está reagindo, buscando segmentos de menor impacto, uma vez que os gastos privados estão reagindo. Lógico que haverá queixa de alguns setores, mas a tendência é buscar cortes onde não haja impacto significativo –  ainda que sejam relevantes por outros motivos. Com os gastos privados reagindo, o mercado de trabalho melhor, e os investimentos se recuperando, podemos ter um bom ano.

O novo arcabouço prevê um piso para os investimentos públicos, mas estes ainda podem sofrer contingenciamento. Considera que esse será um risco?

Do meu ponto de vista, o regime fiscal sustentável acerta em ter um mecanismo de preservação do investimento. Lógico que outros colegas, com outras perspectivas teóricas, talvez sejam mais céticos com relação a isso. Pessoalmente, acho que é muito bom ter uma salvaguarda para o investimento público, o que não quer dizer que necessariamente essa seja a melhor, mas ter alguma é muito importante. Investimento público, assim com o gasto social com o Bolsa Família, têm aquilo que economistas chamam de multiplicadores fiscais elevados, ou seja, acima da unidade.

Um multiplicador fiscal nada mais é do que o impacto que o gasto público tem sobre o PIB. Quando esse impacto é igual a 1 significa, por exemplo, que o governo gastou R$ 1 milhão e conseguiu aumentar o PIB em R$ 1 milhão. Na média observada na maior parte das economias  - isso também vale para o Brasil -,  esses multiplicadores fiscais ficam em torno de 1. O tipo de gasto pode influenciar nesse resultado, promovendo um impacto maior ou menor sobre o PIB.  Quando o multiplicador fiscal é menor que a unidade, na verdade o governo está gastando sem influenciar na economia, então é preciso olhar com cautela para esse tipo de gasto.

No caso do investimento e do gasto social, o multiplicador é de 3 no geral. Então, é um tipo de gasto que precisa realmente ser preservado, em detrimento de outros que são de pior qualidade, pelo menos do ponto de vista do impacto positivo que podem ter sobre o PIB. Acho que o governo acerta nesse ponto de vista. O PAC que está aí e todas as estratégias de investimento que estão postas pelo governo são as melhores? Confesso que não tenho subsídios para dar uma resposta categórica. Uma das proposições nossas no Ipea é avaliar o impacto desses gastos sob diversos aspectos, macroeconômicos, setoriais, sociais. Acho que tem uma boa chance de ser positivo para o crescimento econômico, mas, voltando aos ditados populares, o diabo mora nos detalhes, e temos que olhá-los saber se isso vai funcionar.

Vale lembrar que, em determinados segmentos, o investimento público pode ter uma enorme conexão com o investimento privado, pode ser um elemento sem o qual a iniciativa privada não vai, seja porque não tem demanda, ou segurança para investir. Nesses casos, é preciso que o investimento público, se bem desenhado, cumpra esse papel de estimular o investimento privado, de ser complementar na medida do possível. Ou mesmo em contextos onde a iniciativa privada, por razões variadas e muito justas, provavelmente não aceita fazer investimento, mas são áreas que o governo considera importantes para a população. Também é fundamental pensar na alocação dos recursos de forma eficaz, com avaliações adequadas. No Ipea, temos contato com a Secretaria de Avaliação de Políticas Públicas – a ministra Simone Tebet fez muito bem em criar essa secretaria, para colocar a importância que a avaliação tem no centro do debate público e do dentro do próprio governo. O Ipea está comemorando 60 anos com a convicção dessa importância, porque às vezes uma política, ainda que bem intencionada, pode não cumprir os seus objetivos, não tem o impacto desejado, então é preciso revisá-la. Nos últimos 30 anos, a burocracia brasileira se qualificou enormemente, e é preciso aproveitar esse quadro de qualidade para avaliar, dialogar e aconselhar políticos e a sociedade para a necessidade de reformular algumas políticas.

Leia também: “Não podemos falar de multiplicador de gastos sem tratar do equilíbrio geral da economia”.

Inscreva-se no webinar Caminhos para uma Transição Energética Segura.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Subir