“Precisamos criar capacidade de identificar a próxima crise sanitária”

Gonzalo Vecina Neto, professor da USP, ex-diretor-presidente da Anvisa

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Presença frequente nos noticiários desde o início da pandemia, onde busca decodificar os caminhos da ciência para vencer a Covid-19, o médico Gonzalo Vecina Neto conversou com a Conjuntura Econômica para a edição de julho. O fundador e primeiro diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) se disse preocupado com a herança da Covid-19 para a saúde pública, e defendeu apoio governamental para que a pesquisa e a indústria nacional de biotecnologia evoluam. Leia, a seguir, alguns trechos dessa conversa.

Passado o momento mais crítico no combate à pandemia, como considera que o debate sobre o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) se dará?

Essa é uma pergunta que tira o sono da gente. Metade dos recursos do SUS vem do governo federal, então, não vejo saída. Não tenho dúvida de que o atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, é melhor que Pazuello. Mas ele não tem uma visão de saúde pública. Está nitidamente se equilibrando numa navalha terrível. Não pode falar contra a hidroxicloroquina, não pode se pronunciar sobre uso de máscara. É uma situação extremamente delicada. Acho que está se saindo bem, mas não sei quanto tempo ele dura, nem quanto ele poderá corrigir das deficiências que precisam ser corrigidas.

Agregue a tudo isso o fato de que ainda estamos sob a égide, e vamos ver até onde isso vai durar, do teto de gastos. Hoje, países como os Estados Unidos estão desenhando planos de salvação nacional onde o Estado é o grande indutor. Enquanto isso, estamos jogando este jogo com um tabuleiro de quatro anos atrás, quando não tinha pandemia, tampouco paralisação econômica. Os remédios continuam sendo os mesmos: é taxa de juros, equilíbrio das contas, e desconfio que os remédios que deveríamos ministrar agora são diferentes. Então, estou muito preocupado.

Antes da pandemia, havia uma ampla discussão sobre formas de aprimorar a eficiência do SUS. Se fôssemos retomá-la agora, quais pontos o senhor priorizaria?

Primeiro, sem dúvida nenhuma, está o fortalecimento da atenção primária. Já temos uma boa atenção primária, mas teríamos que fortalecer a cobertura da estratégia de saúde da família. Em segundo lugar, precisamos insistir em alcançar algum tipo de ferramenta que permita uma informatização mais uniforme do SUS. Isso implica escolher ferramentas que permitissem maior interoperabilidade entre unidades, e até uma integração dos sistemas público e privado.

A terceira questão, que não frequenta muito essas listas, é a construção de regiões e saúde. Em seu estabelecimento, o SUS acabou tendo um desvio muito municipalista, que por sua vez tira oportunidade de se desenhar melhor o atendimento à saúde. Temos que montar um modelo de gestão de acesso a serviços que tenha base demográfica regional. Pensar em manchas populacionais, e não político-administrativas como as municipais e/ou estaduais. Para isso, é preciso discutir um modelo de governança entre estados e municípios. E é o governo federal que tem essa capacidade indutiva, por ser o maior financiador do sistema. Dessa forma, ninguém entraria em um serviço de média e alta complexidade sem ser através da demanda da atenção primária, sempre através de protocolos, e da gestão regional dessa base de serviços.

Nesse debate ainda tem outro componente, que não faz parte necessariamente do arranjo do SUS, que é a reforma administrativa. Mas uma reforma que está muito longe do que hoje se debate no governo.

Quais elementos de uma reforma administrativa trariam mais impacto ao setor de saúde?

Continuo achando que as diferentes parcerias entre o setor público e privado – não quero usar o termo PPP, pois este está sendo usado na legislação com outro sentido – são um bom caminho. Criando um espaço de encontro entre a capacidade de gerenciar do setor privado e a capacidade de oferecer serviços do setor público, poderia conseguir resolver esse problema. E o que temos que ter como mediadores? Contratos que a administração pública tenha capacidade de gerenciar, para garantir a eficiência na utilização dos recursos, por um lado, e a não existência de dolo, de corrupção, do outro lado. Para mim, estes são os dois desafios que precisamos vencer: a ineficiência e a corrupção, para utilizar de forma mais extensiva a atuação conjunta entre setor público e privado.

A pandemia levantou polêmica da autonomia dos países na produção de produtos médicos e insumos farmacêuticos. Como o senhor avalia essa questão no Brasil?

Um país como o nosso, de 210 milhões de habitantes, não é como o Uruguai, que não pode produzir o que quiser. Temos mercado, e se soubermos fazer as coisas direito, também temos ao menos o Mercosul. Ou seja, haveria capacidade de produzir um monte de coisa se houvesse o mínimo de política pública para estimular a produção local. Mas também é preciso muita inteligência para fazer algo assim. E, historicamente, somos um desastre nesse sentido.

Mas hoje, por exemplo, há vários projetos de vacina contra a Covid-19 – a Butanvac, outros em desenvolvimento na Fiocruz, em Minas Gerais, no Paraná. Mas nem todos conseguiram recursos necessários para seu desenvolvimento.

Não acredito que com o atual governo haja possibilidade de se fazer nada. O que acho que está sendo noticiado pode ser uma agenda futura. O sistema de produção de qualquer coisa, seja uma invenção, seja de empreendedorismo, se beneficia de uma articulação entre a capacidade indutiva do Estado, a capacidade de produção de conhecimento das universidades e instituições de pesquisa, e a capacidade empreendedora do setor privado de transformar pesquisa e desenvolvimento em inovação. Este governo não tem capacidade de mostrar o que ele poderia induzir; ele praticamente fechou a capacidade de pesquisa das universidades brasileiras – hoje temos 10% das bolsas de pesquisa de mestrado e doutorado ativas. Não tem produção intelectual no mundo que resista à não-existência da produção de mestres e doutores.

Então, agora não tem solução. Mas existe como pensar uma política que permita que o Brasil se beneficie do fato de que há, sim, capacidade científico-tecnológica para desenvolver produtos na área de biotecnologia. Uma parte das indústrias de capital nacional estão desenvolvendo produtos de biotecnologia em território brasileiro. O que elas precisam é que haja um mínimo de garantia de que vai ter mercado. Veja o caso da insulina. O Brasil representa 3% do mercado mundial de insulina. Como eu entro competitivamente em um mercado no qual os quatro ou cinco principais atores têm em média de 10% a 15% do mercado mundial? Se um deles entrar aqui, a capacidade de produzir um movimento econômico destrutivo é muito grande. Então, é preciso um mínimo de proteção de Estado. Não quero aqui voltar à discussão do nacional-desenvolvimentismo dos anos 50, não estou falando de fazer um artificialismo desse porte. O que estou falando é defender o mercado brasileiro de multinacional que tem 15% do mercado mundial numa briga em que estou tentando resguardar 3%.

Em conversa com a Conjuntura Econômica no ano passado, o diretor-presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii) Jorge Guimarães afirmou que tinha dificuldade em conseguir contratos de parceria entre universidades e farmacêuticas. Considerava que estas, apesar de capitalizadas, preferiam se acomodar no mercado de genéricos, investindo pouco em inovação. O senhor concorda?

Veja, temos empresas brasileiras investindo em biossimilares, que é um primeiro passo para aprender a produzir produtos biológicos. Assim que aprender a fazer cópia, o caminho fica aberto. Butantan e Fiocruz atuam nessa área da biotecnologia, mas sofrem de um pecado original: serem indústrias estatais. O escape que criaram para se proteger da incompetência do Estado brasileiro são as fundações de apoio. Então, a Fiotec e a Fundação Butantan impulsionam a possibilidade de funcionamento das duas instituições, e elas estão tirando proveito disso. Mesmo assim, é preciso financiamento. O Butantan já deixou de produzir uma série de vacinas por falta de investimento, e porque a commodity é mais barata. O problema disso é que um dia o produtor, que acabou gerando um monopólio, pode decidir não fazer mais, e aí ficaremos sem vacina de hepatite, de difteria... Acordar para essa realidade talvez nos faça desenhar políticas públicas indutivas.

Hoje vários cientistas apontam que é preciso preparar o sistema de saúde para a próxima pandemia. Como fazê-lo?

O que tenho dito em nossa conversa é que, sem Estado, não existe sociedade. Essa é uma frase complexa, pois tem muita gente que acha que menos Estado é mais sociedade. Nem menos nem mais Estado significa mais sociedade, pois sociedade precisa da gestão do Estado para existir. Com o governo que temos hoje, não enxergo nada. Mas realmente precisamos criar capacidade de identificar a próxima crise sanitária, e o Estado brasileiro, inclusive o SUS, não têm hoje essa capacidade. Não temos um centro de controle de doenças como os países mais desenvolvidos têm, e precisamos de uma instituição que seja capaz de trabalhar com saúde populacional, sequenciamento genético e formação de epidemiologistas genômicos. Assim é possível identificar a próxima crise sanitária e tomar decisões a tempo.

Veja a íntegra desta entrevista na Conjuntura Econômica de julho

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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