“Política de conteúdo local precisa ser usada com critério”

Lia Valls, pesquisadora associada do FGV IBRE

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Conforme mostra o Icomex, divulgado esta semana, apesar do superávit comercial recorde registrado em 2023, em alguns mercados, como União Europeia  e América do Sul  excluindo Argentina, esse resultado foi menor do que no ano anterior. Algo na adenda da política comercial brasileira pode colaborar para mitigar essa queda, em especial considerando que as projeções, tanto de mercado quanto oficiais, são de que em 2024 o superávit comercial brasileiro será menor do que no ano passado?

No curto prazo, é difícil. Em geral, aumentar a exportação para outras economias também dependem a perspectiva de crescimento destas, e não há no radar projeções maravilhosas para países aqui da região, como Peru e Colômbia. No caso da Argentina, as exportações de soja contribuíram para o superávit de 2023, mas as condições climáticas que levaram a esse aumento demanda não se repetirão, e o país está diante de uma crise importante. Comércio intrarregional está estreitamente relacionado com fluxos de investimentos, que no caso da região é baixo. Além disso, cada vez amis concorremos dentro desses países com manufaturas chinesas, posto que a China tem acordos de livre comércio com vários, como Chile, Peru e Colômbia, o que nos faz perder mercado.

No caso da Europa, o principal ponto a se observar são as medidas relativas ao Carbon Border Adjutment Mechanism (Cbam) e o Deforestaion Act (que visa impor uma tributação sobre importação de produtos intensivos em carbono, como produtos siderúrgicos, importados de países com metas ambientais menos ambiciosas que a da região).  Essas medidas    entrar em vigor em 2026, e a fórmula como se tem calculado essas taxações a serem aplicadas não levam em conta, por exemplo, que o Brasil possui uma matriz mais limpa de produção.  A base dessas contas tende a tomar a matriz dos europeus, e isso o Brasil precisa questionar.

No Boletim Macro de janeiro, seu destaque é para a agenda da reunião do G20 que o Brasil irá sediar este ano. Os temas prioritários escolhidos pelo governo federal para o encontro estão o combate à fome, pobreza e desigualdade; combate às mudanças climáticas e reforma da governança global. Qual papel se pode esperar do Brasil nesses temas?

O G20 é um grande fórum de debates que mobiliza também a sociedade civil, em grupos que debatem temas diversos. Ainda que tenha menos poder que o G7, é mais importante devido ao peso dos países que reúne, incluindo por exemplo China e Rússia, e cerca de 86% do PIB mundial e 73% do comércio mundial em 2022/23.

No campo geopolítico, tudo indica que haverá um panorama ainda complexa diante do desenvolvimento dos conflitos Israel x Hamas e Rússia x Ucrânia. Não há muita esperança de que a situação se amaine nos próximos meses. Tudo isso incrementado pelas eleições nos Estados Unidos (com Donald Trump consolidando seu nome como candidato do Partido Republicano). Ainda que o presidente Lula já tenha expressado alguns posicionamentos a respeito desses conflitos, nossa capacidade de influência é pequena. Nesse campo, seria importante o Brasil preservar uma posição aberta e se concentrar mais para a agenda interna, da América do Sul, que tem muitos desafios.

Dentro da região sul-americana, o governo agora falou que este ano se voltará para a integração sul-americana (leia mais sobre uma das iniciativas, o Rotas de Integração, na entrevista da ministra de Planejamento e Orçamento Simone Tebet na Conjuntura Econômica de janeiro). Há um entusiasmo na volta à questão dos traçados de investimento em infraestrutura na região, com algumas facilidades e financiamentos para a exportação, seguro, serviços, que são importantes para a integração regional. Se conseguirmos avançar nesse tema de integração física da região, que está desde o final anos 1990 na pauta, mesmo que seja em pequenos trechos, será importante para a agenda de comércio exterior.

A questão da governança global está relacionada à reforma da ONU, que também é complexa. Mas há uma frente para a qual o Brasil pode, sim, colaborar, que é a da transição energética. Observa-se um aumento do número de medidas que países estão tomando unilateralmente para resolver seus problemas nessa área, a começar pelas europeias, como mencionado. Isso poderia entrar, por exemplo, na agenda da reforma da OMC, onde o meio ambiente ainda não entra explicitamente como tema, mas que diante dessa proliferação de medidas deveria ser pensado. Tem ainda a questão dos subsídios, que também precisariam ser minimamente regulados. É uma política que todas as grandes economias estão operando – via financiamento, regras de conteúdo local – sobre as quais não irão retroceder. O Inflation Reduction Act (IRA) americano é um exemplo. São bilhões de dólares tendo por trás uma briga por liderança tecnológica que trazem implicações na área de comércio e financiamento. É pouco provável que se volte às regras anteriores, pelo menos no médio prazo. Então, o que seria essa reforma? Talvez algo como se faz na agricultura, que está dentro da OMC mas conta com uma série de exceções, por exemplo, permitindo subsídio para itens voltados à transição energética. Não se chegaria a uma liberalização do comércio agrícola como o Brasil gostaria, mas se buscaria um grau de flexibilidade.

Já houve uma época em que a OMC tinha uma lista de subsídios permitidos na área de indústria, como para mitigar desequilíbrios regionais. Pode ser que esse debate avance no G20. Não adianta querer restaurar a OMC como ela era, mas pode-se chegar a algum equilíbrio partindo dessa conjuntura. O que incluiria a área da disciplina dos bancos multilaterais, questão dos juros, que também fazem parte dessa temática.

Na questão da desigualdade e da pobreza, há espaço sobre a criação de fundos de cooperação, também no âmbito do sistema geral de preferências (SGP), de dar acesso mais fácil a países em desenvolvimento. Os países do G20 não seriam os beneficiários dessa concessão, mas é uma agenda que o Brasil pode defender. Mas é difícil imaginar como reduzir a desigualdade através das regras e relações entre países, pois isso implica uma nova forma de se relacionar.

Qual sua impressão inicial sobre a nova política industrial lançada esta semana pelo governo federal? Há quem aponte contradições entre uma agenda de facilitação de comércio e outras iniciativas estimulando medidas de conteúdo local...

Por enquanto, está muito genérica. No caso do conteúdo local, por exemplo, depende de quanto e onde se aplica. Hoje as principais economias estão se valendo dessa medida. Resta saber se será aplicada de forma criteriosa. Só vale aplicar conteúdo local em segmentos onde há evidências de que podemos produzir de forma competitiva. Caso contrário, não faz sentido algum. Há cerca de dez anos, em um trabalho para o Cebri junto com os pesquisadores Mauricio Canedo e Katarina Pereira da Costa, analisamos o Plano Brasil Maior, lançado no governo da presidente Dilma Rousseff em 2011, posteriormente ampliado, que tinha como objetivo o adensamento produtivo e tecnológico das cadeias produtivas. Nesse trabalho, um dos setores analisados foi o complexo da saúde. Havia percentuais estipulados de conteúdo local para diversos itens, entre eles  para mamógrafos, o que atenderia a uma política de saúde de garantir acesso a mamografias nos municípios brasileiros. Até então, o Brasil não fabricava esse aparelho, o que se mostrou uma contradição. Ou seja, não se pode pensar o conteúdo local como uma medida generalista.

A diferença do Brasil com os países desenvolvidos é que no caso destes últimos a questão da dissociação das cadeias globais tem motivações geopolíticas. No nosso caso, não temos esse problema. Ao contrário, gostaríamos de participar de algumas cadeias, e para isso não se pode ter exigência ampla de conteúdo local.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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