Pesquisadores do FGV IBRE avaliam trâmite da PEC dos benefícios sociais. “Desmoraliza a ideia de regra fiscal”, diz Fabio Giambiagi

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

A tramitação da PEC aprovada na semana passada no Senado que prevê aumento e criação de benefícios sociais em caráter temporário é tomada com preocupação pelos pesquisadores associados do FGV IBRE ouvidos pelo Blog da Conjuntura Econômica. Com custo previsto de R$ 41,2 bilhões, a PEC apelidada de Kamikaze inclui aumento de R$ 200 no benefício do Auxílio Brasil, auxílio-gasolina para taxistas de R$ 200 mensais, ampliação do vale-gás para famílias de baixa renda e uma bolsa-caminhoneiro de R$ 1 mil mensais. Todos com validade até fim de dezembro. O relator da PEC na Câmara, deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), ainda cogitava nesta segunda incluir um benefício para motoristas de aplicativo similar ao previsto a taxistas, com o que os custos superariam os R$ 50 bilhões.

“Estamos vivendo um ciclo eleitoral combinado com efeitos da crise, da inflação aqui e no restante do mundo, o que cobra do governo alguma solução para conter o aumento da pobreza”, diz Manoel Pires, lembrando que a pressão de preço dos combustíveis tem impacto em praticamente toda a cadeia produtiva, disseminando-se mais rapidamente. Mas alerta que a falta de uma avaliação adequada do custo-benefício de determinadas medidas pode sair mais cara no longo prazo. Primeiramente, como apontou no Boletim Macro IBRE  de junho, por esse aumento de gasto estar apoiada numa premissa enganadora de melhora estrutural dos indicadores fiscais, influenciada pela inflação – e que mais adiante será rebatida pelo efeito da taxa real de juros sobre a despesa com juros e a dívida pública.

Um cuidado que deverá ser tomado também adiante, como apontou a Carta do IBRE  publicada na Conjuntura Econômica de junho, citando cálculos de Braulio Borges de que a arrecadação do setor extrativo adiante deverá ser superior à observada na década passada. Mas que é finita, “e já tem sido cobiçada pelo governo, que apresentou projeto ao Congresso para antecipar sua parte em recursos do petróleo”, lembra Pires.

Fabio Giambiagi aponta que um dos graves problemas que essa PEC traz para o futuro é a dificuldade de se cumprir o caráter temporário em medidas como o Auxílio Brasil. “Não conheço ninguém que acredite nessa possibilidade. Se tomarmos como base 19 milhões de famílias ganhando R$ 200 a mais por mês, significa um gasto adicional de R$ 46 bilhões por ano, ou R$ 460 bilhões em dez anos. Ou seja, de uma só vez, o governo poderá desfazer metade do impacto da reforma da Previdência, que custou 20 anos amadurecer. É duro”, diz. Pires concorda com o diagnóstico de Giambiagi, lembrando que com essa medida o governo Bolsonaro terá mantido o benefício aos mais pobres em um nível mais alto que o Bolsa Família por praticamente três anos, dificultando a qualquer presidente que assuma o país em 2023 reduzir esse valor. “Não é justo cobrar de outro governante que corte muita coisa do benefício, depois de tanto tempo valorizado. Até porque inflação ano que vem tende a se manter um pouco mais alta, ainda que menor do que este ano”, diz. Ele lembra, entretanto, que o Auxílio Brasil tem ido criticado por uma falta de focalização, e que uma forma de atender à população mais pobre seria corrigir essas questões microeconômicas do programa. 

Outro fator de risco para o futuro, aponta Giambiagi, é a desmoralização da ideia de regras fiscais que disciplinem o gasto. “Já ano passado tivemos a ‘PEC do calote’, e agora temos a ‘PEC Kamikaze’. Quem é que vai acreditar que uma regra a ser definida em 2023 será para valer? Isso é muito ruim para a credibilidade do país e da própria noção do que significa uma regra", afirma. Braulio Borges reforça o alerta. “Há alguns anos, Armínio Fraga (ex-presidente do BC) dizia que a questão do teto de gastos não era se ia ou não acabar, mas quando e como iria acabar: se de forma organizada, construindo-se uma solução no decorrer do caminho, ou de forma desorganizada, furando-o aqui e acolá. O que vemos é uma precipitação do fim do teto de forma organizada”, diz. Para Borges, essa deterioração da regra pode gerar um aumento da incerteza para além do período eleitoral, quando a tendência deveria ser de certa acomodação de expectativas. “A necessidade de se definir a rega que vai ancorar o fiscal adiante se tornará mais clara. Acho inclusive que já entramos nesse processo, com todas as suas consequências negativas. Veja a taxa de câmbio, que há algumas semanas estavam em R$ 4,70, e desde sexta-passada, depois da aprovação da PEC no Senado, voltou para a casa de R$ 5,30”, destaca. 

Borges lembra que medidas de aumento de gasto em ano eleitoral aconteceram em governos anteriores, com características diferentes. “A presidente Dilma Rousseff promoveu uma importante desoneração, que resultou em uma perda de 1 ponto percentual de carga tributária entre 2012 e 2014. Mas respeitou os tempos determinados na Lei Eleitoral. Michel Temer, por sua vez, concedeu subsídio ao diesel, em resposta à greve dos caminhoneiros de 2018, abrindo um crédito extraordinário de R$ 9,8 bilhões naquele ano. Usou a institucionalidade que existia para financiar uma política temporária”, descreve. “O governo poderia buscar algo similar agora, mas optou pelo estado de emergência para salvaguardar-se contra questionamentos relacionados à Lei Eleitoral. Mas se a situação realmente justificasse esse expediente, ele deveria ter sido pedido quando a guerra na Ucrânia foi deflagrada”, afirma – reforçando que, desta vez, não é só a institucionalidade fiscal que está sendo atingida.

Outra ferida que também demandará harmonização é a relação do Executivo com os estados, descontentes com a fixação de um teto para o ICMS de combustíveis, energia elétrica, telecom e transporte coletivo. Pires recorda que, apesar de a tributação sobre combustíveis ter distorções que precisavam ser resolvidas, a forma como o tema foi definido poderá de fato gerar um problema estrutural para os estados. “Hoje esses entes contam com algum caixa. À frente, entretanto, terão de se ajustar, aumentando outras alíquotas, ou compensando com a redução de alguma despesa de necessidade da população”, afirma, reforçando que o melhor fórum para essa discussão seria dentro do debate da reforma tributária, tema do qual trata seu novo livro. “Levando em conta essa decisão sobre as alíquotas mais altas, que pressionavam a revisão do sistema, também será preciso observar até que ponto a reforma da tributação sobre o consumo não perderá fôlego”, questiona.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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