“Para reindustrializar o país, primeiro devemos superar uma agenda do século 20 que ainda está pendente”

José Augusto Fernandes, pesquisador associado do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes)

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Como avalia as declarações iniciais do governo sobre reindustrializar o país (tema de matéria da Conjuntura Econômica de fevereiro)?

Quando ouço a palavra reindustrializar, temo que haja um viés cognitivo limitante. Acho que deve ser pensada como identificar oportunidades, de entender por que o Brasil cresce pouco, enfrentar os problemas de produtividade, e em especial entender o mundo como ele se apresenta neste momento para que possamos capturar as melhores oportunidades para a economia brasileira e para a indústria brasileira. Acho que existem as oportunidades. O próprio discurso do governo aponta para duas delas, associadas à transformação digital e à descarbonizarão, algo com que concordo. Mas há também sinais de uma tentativa de se olhar esse tema pelos movimentos do passado, e aqui precisamos ter uma pouco mais de atenção.

É um discurso que ainda está em construção. Quando acompanhamos as declarações do presidente, como de recuperar a indústria naval, vem a pergunta: vamos repetir os mesmos instrumentos no passado? Ao mesmo tempo, há sinais no BNDES, no MDIC, de se buscar uma nova agenda. Haverá uma tensão entre construir essas novas agendas e as experiências que foram usadas no passado, pois sempre haverá alguém para dizer que essas últimas não ocorreram adequadamente porque as propostas não foram completas. 

Acho que, em primeiro lugar, temos que nos perguntar o que se está expressando quando se fala em reindustrialização. Dada a significativa perda de participação da indústria no PIB, não estou imaginando que esteja na cabeça de qualquer pessoa recuperar os níveis de 20 anos atrás. Acredito que exista um espaço para que se recupere parte de seu papel ganhando aqui e acolá alguns pontos percentuais no PIB, porque as causas que nos levaram a isso são amplas. Uma dimensão importante é o maior peso do setor serviços no orçamento das famílias. Aqui, apesar de a indústria ter um problema de produtividade, o fato é que a produtividade da indústria crescer muito mais rapidamente que a de serviços, então parcela crescente do orçamento das famílias é dedicada a educação, saúde, que são serviços caros pois são intensivos em trabalho. Basta ver quanto uma família de classe média no Brasil gasta com planos de saúde. Isso é renda extraída da indústria.

Há fatores que vão desde o ambiente macro em vários momentos da economia brasileira nos últimos 40 anos à transformação estrutural da entrada da China, do Leste Europeu e da Rússia na economia de mercado. Nesse contexto de entrada de novos concorrentes, e com o desenvolvimento das cadeias de valor, o Brasil teve dificuldade de desenhar suas políticas nesse novo ambiente. Ou seja, quando o Brasil explorou políticas intensivas de conteúdo local sem dar atenção aos efeitos sobre a produtividade geral da economia, obviamente isso teve um custo. Quando o Brasil manteve uma estrutura de proteção ainda muito elevada quando comparada a outros países emergentes incluindo a Índia, isso aumentou essa dificuldade de conexão. Quando não investiu adequadamente em diferentes sistemas de logística para plugar com esse ambiente, também gerou uma dificuldade adicional. E as empresas multinacionais, que são os protagonistas desse processo, olham para o mundo e tampouco identificam a geografia brasileira como privilegiada. Nesse campo, a Ásia possui um ecossistema muito peculiar, que envolve do diferencial do transporte marítimo à característica chinesa de contar com oferta em abundância de fornecedores do que puder imaginar. Qual outra região do planeta que você tem isso?

O quarto ponto é o ambiente de negócios, que no caso do Brasil é antiindústria em alguma medida. Nosso sistema tributário é muito cumulativo, então penaliza a taxa de investimento e as exportações. Essa mudança é algo que o novo governo já sinaliza na sua agenda.

Para se promover o potencial do país nessas novas fronteiras, como a da descarbonização, qual a agenda prioritária?

Essa agenda começa por coisas básicas. Primeiro, não existe experiência de sucesso sem ambiente macro adequado. Segurança jurídica e qualidade regulatória é importante para o ambiente de logística, de infraestrutura, e principalmente agora para os novos setores que se quer capturar. A transformação digital, por exemplo, é muito intensiva em novas regulações em todas as áreas: na tributária, de relações do trabalho, de direitos de propriedade. O Brasil está caminhando em algumas coisas, mas precisa estar consciente de que esse é um diferencial: quanto mais eficiente for nessa área, melhor. O direito digital é diferente, A própria reforma tributária tem que capturar essas dimensões.

Então, teremos que superar primeiro uma agenda do século 20, de remoção de obstáculos e de integração. Ou seja, de normalização de nossas políticas.

O que implica essa normalização?

Primeiramente, em relação a política industrial, não posso trabalhar com os mesmos níveis de proteção que têm prevalecido nos últimos tempos. Tenho que normalizar em relação aos países com os quais o Brasil compete no mundo por investimentos: Rússia, China, Polônia, Malásia, Indonésia e outros países dessa natureza. Em segundo lugar, tenho que normalizar a política industrial no país, porque no Brasil ela é anormal. Em que sentido? O foco dela é muito em proteção e menos em inovação e produtividade. É preciso mudar esse eixo. E essa normalização da política industrial está muito associada à normalização da política tributária. Porque hoje, no Brasil, a política industrial é um produto da política de proteção e da política tributária. Como o sistema tributário da tributação indireta no Brasil é muito perverso, todos os setores buscam suas soluções particulares, principalmente na área do investimento. Então, todos querem redução do custo do investimento e vão criando um conjunto de soluções que fazem com que a atenção do gestor de política industrial seja dar vazão aos lobbies que ele recebe, daqueles setores que estão com decisões de investimento.

A limpeza que uma reforma tributária permite será importante para se ter outro tipo de política industrial e outro tipo de política comercial, pois essa anomalia do sistema tributário também é uma força para a proteção comercial. No Brasil, o empresário pensa: “Puxa, como vou competir no mundo se estou carregando impostos e meu competidor, quando entra com produto aqui, não traz cumulatividade; e quanto nosso produto é exportado carrega cumulatividade? Em algumas empresas industriais, isso chega a representar 9% da receita líquida. É muito impacto.

Assim, limpar o sistema tributário será importante para dar força à redução da política de proteção. E aí será preciso dar mais ênfase às questões da formação competência. Esse é um desafio que a transformação digital está trazendo para o país. Vamos pensar em uma empresa industrial. Ela tem um equipamento que já usa há dez anos. Ela pode ter ganhos de produtividade importantes, de escala de 20% a 50%, colocando sensores, e não tem nenhum desfio tecnológico para fazê-lo. O sensor está aí, e há um ecossistema bem variado de apoio, de um engenheiro de consultoria renomada a jovens estão saindo da universidade, de escolas técnicas, capazes de projetas essa readequação. Nesse sentido também há desafios importantes de formação, para o qual é preciso avançar na modernização institucional das universidades públicas e centros de pesquisa no Brasil. É preciso se perguntar: qual a produtividade hoje desse sistema? Como posso gerar mais valor para ele? Estão com a governança adequada? Há excesso de corporativismos, conselhos sem gente de fora para oxigenar o debate? E temos que nos perguntar como o Brasil avançou na mobilização de um conjunto de instrumentos de financiamento à ciência e tecnologia, avaliar como fazê-los andar de forma mais eficiente, com mais flexibilidade.

Veja, nesse caminho, podemos visualizar o rumo de algumas coisas, mas há outras que não saberemos para onde vai. Será a nova configuração do ambiente econômico que ditará. Pode ser que uma mente ilustrada resolva ficar no país e fazer algo surpreendente no campo da inteligência artificial, por exemplo. Para que isso aconteça, é preciso ter um ambiente de negócios adequado, em que se possa abrir e fechar empresa de forma fácil, em que o ambiente tributário não seja fonte de preocupação, de insegurança jurídica. Outro elemento importante em qualquer processo de transformação são os preços, e em meu paper Indústria: transformação digital, descarbonização e integração econômica destaco quatro que são fundamentais nesse processo de transformação:  

1 - os preços de bens e serviços associados a tecnologia de informação e comunicação, ligado ao excesso de proteção. Nossos preços para tecnologia de informação têm tarifa média em torno de 11,9%; no México é de 1,1%; no Chile, 6%, e até mesmo na Argentina apesar da tarifa externa comum (TEC), é um pouco ais baixo.

2 - Os preços de bens ambientais. Se quero avançar na descarbonizarão, tenho que ter acesso às melhores tecnologias nessa área. Não tenho que inventar a roda em tudo. Se preços estão caros, o meu investimento para me ligar a essa economia fica mais alto. Aqui há um fato curioso. Existe no Brasil a figura do ex-tarifário (redução temporária da alíquota do imposto de importação de bens de capital, de informática e telecomunicação (BIT), quando não houver produção nacional equivalente). Se olhar o ex-tarifário, a maior parte são de bens de tecnologia e bens ambientais, exatamente os segmentos essenciais para a transformação estrutural da indústria brasileira. Então, seria preciso institucionalizar essas reduções. Se sou investidor, não faz sentido ter de pedir licença para conseguir o preço adequado.

3 - O preço da energia. Será fundamental não dar tropeços adicionais na regulação do mercado de energia no Brasil. Aqui, temos uma agenda grande na área legislativa para garantir mais competição em várias frentes, em especial de energia limpa, para o Brasil aproveitar oportunidades que eventualmente como provedor de bens e serviços para o mundo.

4 - Preço do carbono. Será importante avançar com um mercado regulado, e já temos projeto tramitando no Congresso para isso (PL 412/2022).

Acrescentaria ainda o efeito das tensões geopolíticas, porque isso faz com que haja uma maior discussão sobre resiliência, redução do risco de concentração. Tudo isso poderá não ser uma solução mágica para o Brasil, mas certamente há nichos a se explorar e que o Brasil poderá capturar, se tiver ambiente de negócios e políticas consistentes com cadeias de valor. Sem políticas adequadas, entretanto, isso não acontecerá.

Considera a ideia de atrair investimentos para fabricar semicondutores no Brasil é viável?

Essa é uma indústria com diversos segmentos. Os semicondutores mais sofisticados, que se usam em operações militares, em determinados tipos de equipamentos de comunicação, tem sua produção muito concentrada em Taiwan e algo mais em poucos países. É uma indústria muito concentrada em termos de localização de produção e em termos de supridores de oferta de engenharia e tecnologias para se fazer chips, que estão na Holanda, Japão e algo nos EUA.

Aí temos o chip commodity, com maior número de produtores. E aí tudo é analise de custo benefício, pois ainda assim são investimentos elevadíssimos. Todas essas empresas que estão sendo anunciadas nos EUA envolvem investimentos na casa da dezena de dólares. Será que nossa melhor decisão é fazer chip? Desconfio que não. Mas talvez pensar onde, na área de chip, vou pensar equipes para estarem plugadas com o que está acontecendo no mundo. Mas produzir por produzir não me parece a melhor escolha.

O que se pode observar de virtuoso no movimento internacional que poderia servir de farol para o Brasil?

Quando observamos o que está acontecendo em termos de política industrial na Europa, nos Estados Unidos, um traço comum está associado à área de pesquisa e desenvolvimento (P&D). O segundo traço comum é que não necessariamente a política de proteção comercial é o instrumento utilizado. Este está mais associado à tensão China x EUA, que elevaram tarifas de importação de um conjunto importante de segmentos. Nos demais casos, o desenho de política não é aumentar a proteção comercial.

Os Estados Unidos chegaram a avançar um pouco além essa área, o que gerou certa tensão com União Europeia, na medida em que promoveu políticas de conteúdo local. Isso hoje é uma fonte de estresse em relação ao carro elétrico, bem como a alguns equipamentos para energia renovável. Então, há um diálogo entre EUA e Europa para ver como reduzir o impacto dessas políticas.

Se o Brasil melhorar o ambiente de negócios macro, já vai gerar um conjunto de oportunidades de alcance ainda imprevisível. Temos toda essa área ligada à biodiversidade, bioeconomia e descarbonização a partir da matriz energética, com a oportunidade de se tornar um grande exportador de energia, principalmente hidrogênio de baixo carbono. O Brasil também tem problemas a resolver e singularidades que podem ser transformados em oportunidades. Acho que uma dessas singularidades é a área de saúde, dado seu sistema público e o universal, como na Inglaterra. Isso mostra que temos inúmeras oportunidades na área de serviços, soluções digitais, bem como no campo industrial. É preciso identificar como fazer isso de forma eficiente, não desconcentrar muito. Temos o problema de habitação de baixa qualidade nos centros urbanos que também poderia ser uma área potencial, de pensar soluções mais baratas com diferentes materiais, promover compras governamentais localizadas em busca de solução, induzindo respostas do mercado. Por exemplo, localizar dez problemas que se pretende resolver e sinalizar ao mercado: quero ter soluções para casas com tais características. Quem me dá a melhor? É um tipo de iniciativa que se aproxima da ideia mission-oriented, tipo de política vertical que os adeptos a políticas de desenvolvimento industrial gostam de promover.

Leia também a matéria De volta à agenda, da Conjuntura Econômica de fevereiro, de acesso gratuito.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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