“Não se pode debater reforma administrativa tomando os servidores como um grupo uniforme”

Janaína Feijó, pesquisadora do FGV IBRE

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Mesmo com as discussões sobre reforma administrativa na pauta há alguns anos, volta e meia ainda escapa, na sociedade e entre lideranças, um diagnóstico simplista que trata o funcionalismo público brasileiro como um grande grupo uniforme detentor de privilégios. Ideia que, concordam especialistas, não colabora para o avanço em mudanças dentro de um setor-chave na promoção de ganhos de produtividade e de economia fiscal para o país.

Além da questão da estabilidade, outro ponto sensível nesse debate é a questão salarial. Estudos como o realizado pelo Banco Mundial há alguns anos demonstram que a remuneração média de servidores brasileiros é maior que a praticada em outros países, tornando as despesas com pagamento do  funcionalismo alta na comparação internacional.  “Mas analisar os servidores como um grande grupo dificulta o diagnóstico de onde há efetivamente as maiores disparidades”, afirma Janaína Feijó, pesquisadora do FGV IBRE.

Para colaborar a uma análise mais aderente à realidade do funcionalismo brasileiro, Janaína realizou um levantamento detalhado do quadro de salários desse grupo, dividido por poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – nas três esferas de governo. Seu estudo teve como base a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) pública no período de 2002-2020, com os rendimentos atualizados a valores de dezembro do último ano analisado. Uma vantagem em relação a outras pesquisas, aponta Janaína, é que ao utilizar a RAIS cobre-se todo o universo de trabalhadores formais do país, tornando a análise mais representativa, enquanto estudos que usam a PNAD Contínua refletem a realidade do mercado a partir de uma amostra, que é como a pesquisa é realizada. 

No período analisado por Janaína, a quantidade de vínculos ativos no setor privado aumentou em torno de 40%, ainda que a recessão de 2015-16 tenha interrompido essa trajetória e gerado um recuo, sem a volta para os níveis observados em 2013. No setor público, por sua vez, a quantidade se manteve praticamente estável. Quando se analisam os salários, entretanto, a razão da evolução do rendimento médio real no setor público em relação ao privado subiu de 1,70 para 1,94 entre 2002 e 2020. As maiores diferenças salariais entre os setores público e privado foram registradas no Amapá (302%), Roraima (237%), Acre (224%) e Rio Grande do Norte (198%). “Vale lembrar que, enquanto um salário no setor privado pode se adequar mais ao poder de compra que este representa em cada região do país, em cargos do setor público – por exemplo, de professor federal – essa variação não existe”, compara Janaína. A pesquisadora também ressalta a maior importância da participação do setor público nos municípios menores, especialmente em regiões mais pobres.  “Quanto menor o dinamismo econômico, maior a participação do Estado – seja via transferências, seja com os servidores representando a maior fatia do vínculo formal de trabalho”, sinaliza Janaína, ressaltando que situações de alta dependência do setor público não são as mais virtuosas para para sustentação de uma economia.

Setor público x privado – UFs
Participação (%) do setor público nos vínculos totais – 2020


Fonte: FGV IBRE.

 

Setor público x privado – prêmio salarial – UFs


Fonte: FGV IBRE.

Em se tratando de remuneração média no âmbito federal, os maiores valores – que também se encontram entre os maiores reajustes acima da inflação no período analisado – estão no Poder Judiciário Federal, com R$ 16,3 mil de salário médio em 2020, contra R$ 14,38 mil em 2002. “Esse levantamento se limita aos empregados concursados, não incluindo cargos como de juízes e desembargadores”, lembra Janaína.  Na sequência, em termos de remuneração mais alta, estão os servidores do Poder Legislativo Federal, com R$ 13,73 mil, única categoria que registrou queda salarial, posto que em 2022 a remuneração média era de R$ 15,65 mil. E logo vêm os servidores do Executivo Federal, com remuneração média de R$ 8,13 mil, e a maior variação real nos 18 anos analisados no funcionalismo federal, de 32%.

Nas demais esferas de governo, a ordem de salário entre os poderes analisados se repete, mas em escala menor. No nível estadual, o maior salário em 2020 parte do Judiciário, com R$ 11,9 mil, 28% menor do que no Judiciário Federal. E, na esfera municipal, no Poder Legislativo, com remuneração de R$ 4,47 mil, metade do observado no Legislativo Estadual, e menos que a terça parte do salário no Legislativo Federal. Entre empresas públicas e privadas, a remuneração média em empresas públicas foi três vezes maior do que no setor privado em 2020, e também foi a que registrou maior aumento real em relação a 2002: 44%, contra 16% no setor privado.

Janaína também analisou a distribuição de salários em cada categoria, demonstrando que a concentração de altas remunerações médias se dá no Judiciário Federal, onde remunerações acima de 10 salários mínimos representam 83% do total, seguido do Judiciário Estadual (42,5%) e do Legislativo Federal (42%). “É importante observar essas diferenças, para direcionar a reforma para onde efetivamente as disparidades são mais preocupantes. Bem como para avaliar a importância de outros fatores que influenciam mais negativamente na dinâmica do funcionalismo brasileiro”, diz, citando como exemplo a falta de um plano de carreira adequado, prejudicado por altos salários já de entrada, e progressões que levam o servidor a chegar ao topo da remuneração muito cedo. E vícios nos sistemas de avaliação de produtividade, que permitem que os prêmios sejam dados uniformemente, sem a devida compensação por desempenho real.

Remuneração média – em reais de dezembro de 2020


Fonte: FGV IBRE, com dados da RAIS. 
Executivo: federal, municipal, estadual ou distrito federal. Judiciário: estadual e federal. Legislativo: federal, municipal, estadual ou distrito federal. Rendimento em reais de dezembro de 2020.

 

Composição salarial – 2020


Fonte: FGV IBRE.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Subir