“Não é em meio à pandemia que definiremos como resolver todos os problemas sociais do Brasil”

Marcelo Neri, diretor do FGV Social

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

O governo anuncia para breve a proposta de um novo Bolsa Família, ampliando o programa para acolher a camada da população que empobreceu com a pandemia. No Senado, tramita o projeto da Lei de Responsabilidade Social. E o Supremo determinou que o Executivo regulamentasse a lei da Renda Básica de Cidadania, sancionada em 2004, o que também ponta a uma revisão das políticas de proteção social. Como avalia o encaminhamento desse debate?

A revisão do Bolsa Família é muito importante. Aliás, já passou do tempo. O Bolsa Família é um programa de última geração, mas que também tem que aprender com sua própria história. Obviamente que uma situação de pandemia impõe algum tipo de urgência, e isso às vezes pode atrapalhar. Pois é uma discussão que transcende a pandemia, embora se torne mais necessária com ela.

No ano passado, houve um movimento em vários setores da economia por uma renda mínima universal, agora há a decisão do STF, mas sou mais favorável à busca de um Bolsa Família 2.0. Ou seja, agregar novos componentes a um programa que já está funcionando. E que tem perdido valor. Nossas estimativas no FGV Social é de que de 2014 a 2019 o Bolsa Família perdeu 20% de seu valor. Hoje, quando se houve falar de um aumento do benefício de R$ 190 para R$ 250, na verdade se está apenas recompondo essa perda, não há ganho real.

Veja, se compararmos um programa bem focalizado, como o Bolsa Família tenta ser, com um de transferência universal, o segundo custaria 19 vezes mais. Então, temos que ir com cuidado, pois temos algo a perder, que é a evolução da política de transferência de renda que tivemos até agora. Outro parâmetro que é importante nesse debate é o valor da linha de pobreza. Se você sai de uma linha de ¼ de salário mínimo para outra de meio salário mínimo, como se discute para o Benefício de Prestação Continuada (BPC), por exemplo, o custo do programa se multiplica por quatro, não só porque se transferirá mais dinheiro para cada um, mas porque se incluirá muito mais gente. São armadilhas com as quais é preciso tomar cuidado. O risco é querer atender muita gente e não ter dinheiro sequer para combater a pobreza daqueles que mais precisam. Aí mora o perigo. Não é só questão de deixar de fazer uma nova boia coisa, mas de deixar de fazer uma coisa boa que já existe, que é o Bolsa Família.

Restrições orçamentárias sempre limitarão a proteção social?

São um fator importante, claro. Mas há algumas frentes para turbinar o Bolsa Família que não implicam recursos fiscais, focando o aumento da capacidade dos beneficiários em suavizar choques de renda. Uma agenda na qual eu particularmente tenho me envolvido é a que trata não só da transferência de renda em si, mas de permitir a cada pessoa redistribuir melhor seus recursos ao longo do tempo em situações como de desemprego. É um tema que considero promissor no Brasil, por conta da alta instabilidade de renda da população mais pobre. Trata-se de uma agenda público/privada de acesso a produtos financeiros, crédito, seguro e poupança, que de alguma forma pode parecer serviços de luxo, portanto não seriam prioridade dos pobres. No que eu discordo. Para quem está próximo da linha da pobreza, esses instrumentos são ainda mais importantes. Veja, por exemplo, o que aconteceu na pandemia, com o grande aumento de depósitos na caderneta de poupança (em 2020 registrou-se a maior captação líquida da série histórica do BC, de R$ 166,3 bilhões). Isso sugere, no meu entender, que o depósito do auxílio emergencial em conta-poupança digital tenha sido uma boa opção. E que esse campo do acesso a instrumentos financeiros precisa ser explorado. Preferencialmente, somado a uma agenda de inclusão produtiva. No ano passado, o auxílio emergencial promoveu uma forte reação da economia, mas é uma política de renda. Agora temos que pensar no desempregado, especialmente nos jovens, oferecer algum subsídio às empresas para que colaborem nesse processo.

Qual sua avaliação sobre o projeto dos bônus de inclusão produtiva e de qualificação (respectivamente, BIP e BIQ), do Ministério da Economia, em que jovens ganhariam uma bolsa parcialmente financiada pelo governo para uma jornada de trabalho que incluiria treinamento dado pela empresa contratante?

Acho que a ideia é boa. Há algum tempo defendo a questão do incentivo ao jovem, não só para que trabalhe, mas que o faça sem abandonar os estudos. Mas o diabo mora nos detalhes, e por isso é preciso saber oficialmente como pretendem defini-los. Se buscarão a dosagem adequada desses mecanismos, para que beneficiem não apenas uma porção restrita de jovens, mas um conjunto, bem como a sociedade no geral. Ou seja, não se pode beneficiar um jovem específico em detrimento do pai dele, do irmão mais velho. Quando se olha em perspectiva, o cobertor é curto, e corre-se o risco de se escolherem ganhadores e perdedores de maneira implacável. Em resumo, a intenção é boa, vai numa direção positiva. Mas é preciso equilíbrio nesse processo.

Em suas primeiras declarações sobre esses programas, o ministro Paulo Guedes apontou que o BIP poderia ser um ensaio para a implantação da Carteira Verde Amarela – que prevê reformular a legislação trabalhista e reduzir encargos da folha de pagamento...

Como disse, o diabo mora nos detalhes. Se não for bem dosado, o que pretende ser benéfico para parte da população pode prejudicar outra parte. Colocar óleo nas engrenagens do mercado de trabalho brasileiro é algo positivo, para ajudá-lo a funcionar mais suavemente, e isso inclui alguma flexibilidade adicional da legislação trabalhista. O ideal, entretanto, é fazer uma implementação gradual, bem avaliada. Uma das coisas boas de nosso mercado de trabalho é que temos instrumentos para seu acompanhamento em alta frequência, que não podem ser dispensados no momento de aplicação de mudanças nessa direção.

Estima-se que no ano que vem o governo contará com maior folga fiscal do que em 2021, o que é apontado como fator de preocupação por alguns analistas, já que se trata de ano eleitoral. Considera que isso possa influenciar na atual discussão de reformulação das políticas de proteção social?

Por estar dentro do teto de gastos, o Bolsa Família está submetido a uma economia política complicada. Há certo receio de se perseguir uma medida exagerada, como foi o auxílio emergencial em 2020, cuja manutenção era inviável. Os dados mostram com clareza que ano de eleição presidencial é ano em que a pobreza cai no Brasil. O ciclo eleitoral é claro (análise de sete eleições desde 1986, feita pelo FGV Social, aponta que em todos os casos a pobreza cai em ano eleitoral e sobe no ano seguinte, com exceção de 2007). E o Brasil tem certa tradição em buscar soluções mágicas. Temos que evitar isso.

O senhor já mencionou que, com a pandemia, é preciso reajustar os óculos através dos quais se olha a pobreza no Brasil e se busca soluções para combatê-la. Neste momento, a que diretrizes essa mirada ajustada aponta?

Veja, em se tratando do Bolsa Família, nenhuma resposta é trivial. E não é em meio a uma pandemia que iremos definir como resolver todos os problemas sociais do Brasil de agora ao final dos tempos. Temos que ter respostas específicas para responder à pandemia, e não da forma como foi feito: sair de um investimento de quase R$ 300 bilhões em 2020 para zero no início deste ano. Isso me parece uma política errática.

Como mencionei, não considero que uma renda mínima universal seja um bom caminho. Precisamos nos dedicar ao Bolsa Família, e proporcionar que o programa ganhe agilidade em receber e emancipar pessoas. Precisamos investir mais nesses aprimoramentos e menos em reinvenções, o que considero perigoso. No calor da pandemia, corre-se o risco de tomar decisões como as da grande recessão de 2008/09, em que mostramos uma resposta boa e rápida à crise, mas cuja manutenção quebrou o país mais à frente. Temos que tomar cuidado para não repetir um pouco dessa história.

É otimista com a chegada a um bom arranjo para o Bolsa Família?

Veja, o próprio governo já derrubou boas ideias que no ano passado começavam a prosperar. As propostas de Renda Brasil e Renda Cidadã tinham algumas ideias positivas, como a revisão do abono salarial, entre outros benefícios sociais, transferindo mais recursos para o Bolsa Família. Mas elas foram atingidas por fogo amigo. Então, não está claro qual caminho esse debate poderá tomar agora.

Temos que buscar o respeito às restrições fiscais, sem se abster de sensibilidade social. É preciso seguir o caminho do meio, sem soluções extremas. E, como disse, para mim ainda não está claro que conseguiremos esse equilíbrio, da mesma forma que não o tivemos no manejo do auxílio emergencial.

Leia mais sobre a reformulação do Bolsa Família na Conjuntura Econômica de junho

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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