“Na saúde, temos que criar planos regionais que integrem estados e municípios”

Gonzalo Vecina Neto, professor da USP e da FGV Eaesp

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

A Conjuntura de fevereiro, que será distribuída esta semana, tratará dos desafios dos municípios brasileiros em diversos âmbitos. Um dos convidados que nos ajudou a esquadrinhar o terreno da saúde é Gonzalo Vecina, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e da FGV Eaesp, ex-presidente da Anvisa. A seguir, antecipamos os principais trechos dessa conversa:

Qual considera que deverá ser a agenda prioritária dos candidatos a prefeito no campo da saúde?

É importante ter em conta que o espaço do município tem um conjunto de ações que nem o estado nem o governo federal realizarão. A começar pelas questões de saúde pública, como  vigilância epidemiológica e a vacinação. Aí vem uma segunda questão que, que é a atenção primaria. Isso significa ter uma assistência de baixa complexidade próxima ao cidadão, uma distribuição das unidades básicas de saúde principalmente com a estratégia de saúde da família. Pode-se ter programas federais que colaborem para isso, como o Mais Médicos, mas este é só um instrumento para ajudar os municípios a terem médicos; para montar uma rede de fato, os municípios tem que ter infraestrutura adequada.

Cidades de médio e grande porte, por ter um poder maior de arrecadação e até pela própria pressão popular, acabam tendo uma rede própria de hospitais, ambulatórios de especialidades, desenvolvendo respostas locais onde o estado não estava presente na medida adequada. Mas isso não significa que essas cidades têm resolvida a questão da atenção primária. São Paulo, por exemplo, não o fez até hoje. A cobertura paulistana dessa atenção sob a estratégia de saúde da família é de 45%, e deveríamos chegar ao menos a 65%. As UPAs (Unidades de Pronto Atendimento), nesse sentido, foram um problema que criamos na tentativa de fazer a coisa certa. Houve uma expansão muito grande das UPAS, mas estas não promovem uma atenção horizontal. Se, por exemplo, um diabético que sente uma dor for a uma UPA, ele será atendido e medicado para esse sintoma, mas não terá a obrigação de voltar, fazer controle de glicemia, checar se tem algum problema cardíaco derivado da diabetes. Veja, tudo que se faz numa UPA, poderia ser feito na saúde da família, cuja estratégia é a de se ter um médico para cada 2,5 mil a 3 mil habitantes. Isso significa que esse médico tem que atender demanda, não só consulta agendada. Numa UPA, entretanto, o atendimento horizontal não é realizado, tampouco se tem a atenção de um pronto-socorro, que é uma unidade com acesso a leitos, pra atender pacientes de maior gravidade. A UPA ficou no meio do caminho, tem manutenção cara, e ficamos sem recursos para a expansão da atenção de saúde da família.

A volta dos mínimos constitucionais para saúde e educação vinculados à receita tem gerado questionamentos, devido ao alto valor envolvido sem a flexibilidade necessária para se garantir uma alocação eficiente. O senhor concorda?

Estou de acordo com essa ideia. A questão é que o governo federal transfere recursos para estados e municípios conforme o consumo de internações, procedimentos de média e alta complexidade, as chamadas Apacs e AIHs (autorizações, respectivamente, para procedimentos e internações), como para fazer quimioterapia, pequenas cirurgias. Ou seja, o sistema é uma transferência de recursos de acordo com o consumo.

O ideal é que implantássemos um modelo em que o dinheiro fosse programado conforme o tamanho da população, integrando as demandas de uma região, planejadas entre os municípios dessa mancha populacional. Dessa forma, o município teria que sentar com os demais de sua região para definir em que ele agregará de oferta de serviços, ou o que ele vai pagar para ser atendido em outro município dessa região.  A segunda questão é a integração entre estado e município. Porque quem tem capacidade de fazer a atenção secundária e terciária – onde entram as consultas de especialidade, procedimentos de maior complexidade e o atendimento hospitalar em grande medida é o estado, mesmo em municípios ricos. O modelo que está em discussão agora no Ministerio da Saúde é a ideia de que os municípios e o governo estadual têm que se entender para dizer como é o acesso a esses exames e internações de maior complexidade, pois isso está mal resolvido no Brasil inteiro. Esse talvez seja o maior desafio deste momento no SUS: criar redes de atenção à saúde cogerenciadas entre municípios e estado para garantir acesso à média-alta complexidade. Hoje temos um monte de pequenos hospitais e um monte de UPAS que deixam o município feliz por estar aplicando dinheiro em assistência à saúde, criando empregos, mesmo sem conseguir oferecer procedimentos mais importantes, como cirurgias cardíacas. O melhor seria que reservasse parte desse dinheiro para pagar esses procedimentos nos hospitais adequados.

Esse é um modelo disruptivo que temos que perseguir, que envolve um plano regional para a programação do uso dos recursos por regiões de saúde. Tem estudos que indicam que no Brasil essas regiões seriam entre 300 e 400. Isso implicaria um melhor uso de recursos que não são poucos. Metade do orçamento que chega aos municípios vem do governo federal.

Como avalia a colaboração do Novo PAC para esse modelo? Há avaliações que apontam uma distribuição desequilibrada e pouco embasada dos recursos (leia mais aqui), que dá pouca atenção, por exemplo, a áreas como a telessaúde. Qual sua opinião?

A medicina digital, sem dúvida, é uma área fundamental. Mas esse é um plano que tem que nascer localmente. O que temos que buscar, reforço, é criar planos regionais que integrem estados e municípios. Sem isso, por exemplo, continuaremos jogando fora um monte de procedimentos, consultas, internações. Temos que conseguir fazer o que fazemos com transplantes: filas organizadas e únicas. Hoje, por exemplo, temos duas filas para consultas em São Paulo, do estado (CROSS) e do município (Siga), ambas ainda não conversam como deveriam, e o resultado é um absenteísmo que alcança 40%. O PAC pode ajudar, há temas importantes como o fortalecimento da indústria – veja o caso, por exemplo, da dificuldade em conseguir as doses de vacina contra a dengue necessárias para aplicar duas doses. Agora, o investimento em expansão de redes e procedimentos só será de fato eficiente com planejamento regional.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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