“Na agenda com a China, é importante que o Executivo brasileiro torne claro seus objetivos, e foque projetos de impacto”

Evandro Menezes, coordenador do Núcleo de Estudos Brasil-China da FGV Direito Rio

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Na última sexta-feira, quando o professor Evandro Menezes dedicou parte de seu tempo para esta conversa, a viagem do presidente Lula à China já havia sido postergada, mas ainda não cancelada. Sob esse clima de dúvidas, Menezes, que coordena o Núcleo de Estudos Brasil-China da FGV Direito Rio, analisou a importância desse encontro. Mas ponderou que a sinalização desejada por ambos os mandatários – de Lula, ter a China como primeiro país a ser visitado fora da América do Sul, e, de Xi Jinping, primeiro presidente recebido desde sua recondução ao cargo –, não significa por si um jogo ganho. Menezes ressaltou a percepção de falta de diretrizes concretas do Brasil nesse primeiro contato – o que pode ser aprimorado no tempo até a nova data de embarque, ainda não confirmada. “Considero que o governo brasileiro deveria selecionar quatro a cinco projetos de grande impacto, deixando-os claros para toda a sociedade. É importante que todos saibam quais são as prioridades do Estado brasileiro, em busca de convergência de ações.” 

A viagem de Lula para a China se apresenta um marco importante para a diplomacia brasileira, dada a importância das relações entre os países e o balanço deixado pelo governo anterior. Qual a sua avaliação?

De fato, o governo anterior não desenvolveu uma diplomacia presidencial, e ainda assim criou obstáculos para o próprio Itamaraty dentro de seu trabalho normal de relações exteriores, entre os quais o de facilitar as oportunidades de negócios, seja para empresários ou até para governadores de estado. Isso, entretanto, também significa que o padrão de referência para qualquer avaliação sobre o desempenho de Lula pode ficar muito baixo. Não à toa, a impressão que ficou nos dias que antecederam a viagem é de que tudo que viesse desse encontro seria necessariamente lucrativo, por força desse período anterior. Além da própria pandemia, que tornou a situação mais complicada de modo geral para se desenvolver relações econômicas com a China, independentemente do governo. Houve um otimismo no ar às vezes excessivo. 

É importante calibrar as expectativas com certa dose de realismo, por vários motivos. Entre eles, o fato de haver diferenças internas de concepção ainda não tão explicitadas neste mandato, porque se está em início de governo. O Congresso e a sociedade brasileira também estão diferentes, mais conservadores que os da época dos governos Lula 1 e Lula 2. O Lula que no passado foi reconhecido por sua história mas também por presidir um país que ia muito bem, agora tem de enfrentar um Brasil que não ajuda tanto, e que passou por um governo anterior complicadíssimo, que colocou em questão agendas muito caras que o Brasil desenvolveu desde o final da década de 1990, seja no campo dos direitos humanos, em que o Brasil renovou suas credenciais, seja em questões ambientais, agenda que foi comprometida no governo anterior. Ou seja, ele é o Lula, mas de um Brasil diferente. E sob um contexto internacional também difícil, porque o pós-pandemia se passa sob a guerra na Rússia x Ucrânia / OTAN, o conflito China x EUA. O contexto é muito mais difícil. 

Minha percepção sobre a preparação para essa viagem – a partir de conversas com vários atores, inclusive em Brasília – é de que foi feita em cima da hora. Pese que seja início de governo, só soubemos de algumas agendas a poucos dias do que seria o embarque da comitiva de governo.

Diante desse diagnóstico de falta de clareza, e do atual contexto geopolítico, preocupa-lhe o fato de a agenda do Executivo ter incluído temas que desagradam a diplomacia dos Estados Unidos, como acordos de cooperação no campo de semicondutores e 6G? 

Não. É evidente que o Brasil tem que se conduzir prestando atenção como EUA e China leem seus atos. Mas também é importante que o governo não deixe de correr atrás dos interesses nacionais, desde que sob um direcionamento adequado para esse contexto de disputa de interesses. Isso significa, por exemplo, tentar se afastar o máximo possível de discussões de temas diretamente relacionados a segurança e defesa nacional – digo isso porque áreas como o 6G acabam envolvendo também questões de segurança. Mas acho que o Brasil, independentemente do governo que o lidere, tem que entrar nessas agendas com desenvoltura e atento aos ganhos econômicos e sociais para o país. Porque não adianta nada se intimidar por pressão de um dos dois países e não ter da parte deles uma relação de ganha-ganha. Veja o exemplo da escolha do fornecedor do programa de renovação de caças da Força Aérea Brasileira, que durou mais de uma década. Um modelo da norte-americana Boeing (FA-18) estava entre os finalistas no processo de seleção, mas perdeu, entre outros fatores, porque eles não aceitaram transferir tecnologia. No final, foi escolhido o sueco Gripen NG, da fabricante Saab, que foi o melhor para os nossos interesses.

Acho que neste momento, em que ainda não há um conflito literal entre as duas potências, o melhor para o Brasil é seguir com seu interesse nacional. Veja, mesmo em meio à Segunda Guerra Mundial, o presidente Getulio Vargas soube negociar com alemães e americanos para criar a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), inaugurada em 1941 (Vargas explorou a rivalidade entre ambos os países para conseguir financiamento americano de US$ 20 milhões; somente em 1942 o Brasil entrou para o grupo dos Aliados contra o Eixo, liderado por Hitler).  Então, se algum acordo avançar com a China e os Estados Unidos se mostrarem incomodados, o que então eles têm a propor? Seria ruim para o Brasil ceder a um tipo de pressão em que só há uma agenda negativa, sem uma proposta alternativa. 

Outro ponto importante a considerar é que uma forma de um país se defender, por exemplo, de ataques cibernéticos, é conhecendo o sistema e a tecnologia dos outros. Então a cooperação com a China pode ser, desde esta perspectiva, de interesse nacional – sobretudo porque ela se encaminhe para ser a maior potência econômica - acho que militar ainda não seria neste século 21, comparando-a com os EUA. 

São assuntos espinhosos, difíceis, nos quais o Brasil precisa saber lidar e avançar seus interesses.

De qualquer forma, a abertura desse debate é boa, até porque é preciso discutir o que seriam essas cooperações. A falta de clareza quanto aos objetivos do governo em torno desses acordos é o que gera ruído. Considero que o governo brasileiro deveria selecionar quatro a cinco projetos de grande impacto, deixando-os claros para toda a sociedade. Até porque, cada empresário que se interessa em acompanhar essa missão têm a agenda deles e sabem o que quer. Pode ser que na cabeça do presidente esteja claro suas intenções. Mas é importante que todos saibam quais são as prioridades do Estado brasileiro, em busca de convergência de ações. 

Por exemplo, um dos nossos gargalos conhecidos é o da infraestrutura. No Brasil, os investimentos chineses não foram direcionados muito para essa área, à exceção do setor de energia. Mas nos falta infraestrutura de mobilidade, que escoa a produção e favorece a circulação das pessoas. Sabemos que ferrovia, trem-bala, é um tema complexo no Brasil. Mas é importante estudar o caso chinês, pois lá o trem-bala de fato integrou o país, favoreceu a desconcentração econômica e populacional. Ainda que esta continue concentrada no leste do país, poderia ser pior se não houvesse a integração via trens. Outra questão que simboliza um bom gesto de amizade nesse campo é o Brasil de fato sinalizar uma participação na iniciativa Cinturão e Rota (ICR) - (que desde 2016 se estendeu à América Latina e o Caribe, com o Panamá como primeiro país da região a aderir). Existe uma avaliação de que esse projeto pode não trazer valor agregado ao país. Mas veja, a Rota da Seda conta com um fundo de US$ 40 bilhões, dos quais já foram aplicados US$ 20 bilhões. Em 2017, o governo chinês ainda aportou mais 100 bilhões de yuans. Acho que isso, sim, é um valor agregado, especialmente levando em conta que hoje o Brasil não tem como pensar na integração da América do Sul ignorando a China, ora como competidora, ora como aliada. E acho que teríamos condições inclusive de influenciar, visando os interesses brasileiros, nas decisões eventuais da China em projetos ligados à iniciativa do ICR em outros países da América do Sul. 

Há outro elemento que gostaria de destacar, que perpassa esses temas dos quais tratamos, que é certa falta de atenção e conhecimento do Brasil com a China. Por exemplo, o governo Lula mencionou a criação de uma aliança internacional contra a fome, que é uma iniciativa muito apropriada. O presidente chinês, por outro lado, lançou a Iniciativa de Desenvolvimento Global em torno de uma agenda mais ampla. E erradicar a fome depende de se promover desenvolvimento. Então, é importante considerar o que se está sendo feito do lado chinês. Claro, não estou dizendo que devemos aceitar todas as propostas chinesas, mas é fundamental conhecê-las bem e dialogar com elas. Espera-se que o governo tenha essa inteligência cultural para lidar com os chineses, tendo em vista seus objetivos estratégicos para o desenvolvimento brasileiro. A proposta de Lula, ao meu ver, se encaixa naquela feita por Xi Jinping.

Quais suas perspectivas quanto à atuação da ex-presidente Dilma Rousseff na liderança do banco dos Brics (New Development Bank - NDB)? 

Do ponto de vista do presidente Lula, foram dois acertos em um:  a sinalização para os demais países dos BRICS de reengajamento do Brasil nessa agenda, e a resolução de um problema político no âmbito doméstico. Dito isso, Dilma vai ser presidente de uma organização internacional e deverá prestar contas aos membros do banco, ao conselho, e será cobrada e avaliada por todos os países membros para entregar os resultados esperados por eles à luz dos objetivos do NDB e da agenda que está em curso. Claro que a nomeação da Dilma pode facilitar o acesso do Brasil ao NDB, tal como foi com Marcos Troyjo, mas é preciso destacar que ela está lá em prol dos interesses de todos os países membros. 

Por fim, vale destacar um aspecto negativo desse processo, de ser uma nova interrupção de mandato (Troyo assumiu em 2020 e ficaria até 2025; outro episódio foi com o vice-presidente do NDB Paulo Nogueira Batista Jr., que em 2017 encerrou seu mandato antes do tempo, em um processo de demissão que gerou polêmica). As lideranças políticas brasileiras precisam compreender que organizações internacionais como o Banco dos Brics têm que estar protegidas de movimentos políticos domésticos. As organizações internacionais não são órgãos de governo, precisam ter seus mandatos respeitados, sofrendo alterações apenas em caso de descumprimento das regras que regem o seu funcionamento.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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