Lia Valls: o possível fim da era dos grandes acordos comerciais e como avançar sem eles

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Os protestos de agricultores franceses contra medidas da agenda climática, que se disseminaram por outros países da União Europeia e incluíram resistência a acordos com países grandes produtores como o Brasil, é ilustrativo de um movimento maior, de que a era de grandes acordos comerciais pode estar chegando ao fim. O alerta foi feito por Lia Valls, pesquisadora associada do FGV IBRE, em artigo na Conjuntura Econômica de março, e remete à necessidade de o país intensificar a agenda de miniacordos, ou seja, negociações menores, em âmbito bilateral, para destravar a pauta exportadora de determinados setores.

Lia lembra que, diante de fatores como o aumento das tensões geopolíticas, que amplia a tendência e medidas protecionistas, e uma agenda climática que também imprime barreiras – como as impostas pela União Europeia a produtos produzidos com mais emissões de gases do efeito estufa do que os europeus querer permitir em âmbito doméstico –, negociar acordos amplos que demandam balancear interesses de diversos setores, e passar por instâncias de governo e do Legislativo suscetíveis a preferências políticas torna-se cada vez mais complexo. “Miniacordos, por sua vez, têm o objetivo de facilitar o comércio com medidas horizontais ou específicas”, descreve Lia. Por ter caráter mais técnico, diz, também tende a ser menos alvo de capturas de cunho político.

No texto, Lia destaca estudos sobre essa dinâmica que refletem a política comercial da própria União Europeia. Em um deles, publicado pelo Europe Centre for International Politcal Economy por instâncias de governo e do Legislativo suscetíveis a preferências políticas, o autor Lucian Cernat reconhece o papel que os grandes acordos comerciais tiveram no próprio processo de integração da União Europeia, mas destaca o potencial papel desses arranjos menores no futuro, diante do aumento da complexidade para se conseguir consensos em negociações multilaterais, que por algumas décadas balizaram as relações comerciais do globo. “Grandes acordos são, na verdade, a ponta do iceberg”, ilustra Cernat, indicando uma diversidade de instrumentos, que vão de protocolos e arranjos a memorandos de entendimento, e que naquela região já superam 1,5 mil.

Lia reconhece que, dependendo do arranjo, é mais difícil prever seu impacto. “Mas há iniciativas que têm vantagens claras na vida prática dos envolvidos”, comenta, citando atividades como a recente inclusão de 38 frigoríficos entre as plantas habilitadas para exportar para a China, principal destino das exportações brasileiras de carne bovina, suína e de frango, com vendas de US$ 8,2 bilhões em 2023. Ainda que não envolva reduções tarifárias, para as quais seria necessário uma negociação no âmbito do Mercosul, são iniciativas que tornam as vendas mais eficazes, reduzindo custos burocráticos.

Em seu artigo, Lia cita dois instrumentos: os Acordos de Reconhecimento Mútuo de Operador Econômico Atualizado (OEA) e os Acordos de Reconhecimento Mútuo (ARM). No caso do OEA, ele é realizado entre aduanas dos países proporcionando, entre outros, tratamento prioritário de cargas, reduzindo os custos de armazenagem. Levantamento no site da Receita Federal realizado pela equipe de pesquisa de Lia indicou que o Brasil possui esse acordo com 12 países, incluindo Cina e Estados Unidos. Já o ARM abrange barreiras sanitárias e fitossanitárias e, de acordo ao Ministério de Agricultura e Pecuária, somente neste ano o Brasil “realizou acordos abrindo 15 novos mercados”, entre os quais o de comercialização para as carnes bovina e suína brasileiras para o México e República Dominicana, respectivamente.

Esse caminho de buscar o que se pode, onde se pode, sem esperar grandes acordos tem ganhado destaque no radar do governo brasileiro. Em 2021, Lucas Ferraz, então secretário de comércio exterior do Ministério da Economia, destacou à Conjuntura Econômica (leia aqui) esforços no campo regulatório e não-tarifário, em especial o protocolo não-tarifário entre Brasil e Estados Unidos então firmado, que envolve facilitação de comércio, melhores práticas regulatórias e um anexo anticorrupção. O acordo implicou, por exemplo a vinculação do Brasil para a modernização de seus certificados sanitários, sua digitalização. “As principais barreiras para as exportações brasileiras no mercado americano não são de natureza tarifária. A média tarifária que o Brasil paga para nossas exportações no mercado americano é da ordem de 2,5%. Se pegarmos o equivalente tarifário só das barreiras portuárias que enfrentamos naquele país, estamos falando de um ad valorem da ordem de 12% a 13%. Ou seja, cerca de dez vezes mais do que o próprio valor da tarifa de importação média. Então, a consecução de um acordo de reconhecimento mútuo vai facilitar em muito nosso comércio bilateral”, destacou, na ocasião.

Esse esforço, descreve Lia, é multidisciplinar. Recentemente, em entrevista à Conjuntura Econômica, a ministra do Planejamento Simone Tebet também destacou a preocupação, dentro da política de integração sul-americana chamada Rotas de Integração, em tratar de questões sanitárias e alfandegárias (Leia aqui). Na entrevista, ela ilustrou o impacto dessa agenda citando a compra de azeitonas peruanas por Rondônia. “Hoje, Rondônia compra azeitona do Peru numa distância do fornecedor que, em linha reta, soma 2 mil km. Como há questões sanitárias e alfandegárias que não estão resolvidas, essa azeitona sai do porto do Peru, cruza o Canal do Panamá, desce até o Porto de Santos, e daí percorre mais 3 mil km para chegar em Rondônia”, contou.

 


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