Insegurança alimentar e Auxílio Brasil: falta reconhecer que necessidade é maior nas famílias mais pobres, diz Marcelo Neri

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro 

Estudo lançado na semana passada pelo FGV Social, referido na coluna Em Foco, mostra que em 2021 36% dos brasileiros não tiveram dinheiro para alimentar a si ou a sua família em algum momento nos 12 meses que antecederam a pesquisa Gallup World Poll, cujos dados serviram como base para a análise. Antes da pandemia, esse percentual era de 30%, já alto quando comparado ao resultado de uma década atrás (20%), e o dobro do melhor resultado da série histórica iniciada em 2006, que foi de 15% em 2011. Marcelo Neri, diretor do FGV Social, aponta que essa é a primeira vez que o Brasil supera a média simples mundial, com a insegurança alimentar subindo 4,48 pontos percentuais a mais em relação a 2019 do que no conjunto dos 122 países analisados. 

Tal como em outros países, em 2020, primeiro ano da pandemia, o Brasil chegou até a reduzir o nível de insegurança alimentar da população em relação ao pré-pandemia, para 28%, indicando que as características do auxílio emergencial nesse momento permitiram amortecer os efeitos do choque sanitário. Mas, diferentemente de economias como Argentina, Chile, México e mesmo Estados Unidos, em 2021 o país não conseguiu manter um resultado melhor do que em 2019. “É difícil precisar os motivos que levaram a isso, mas os dados brasileiros sugerem que faltou, acima de tudo, proteção na base da distribuição de renda brasileira, que é o pior tipo de falha”, afirma Neri. De fato, o estudo aponta que a situação de insegurança alimentar é ainda pior quando observada apenas entre os 20% mais pobres. “Nesse grupo, a insegurança alimentar passou de 36% em 2014 para 53% em 2019, saltando para 75% em 2021. Este último percentual é comparável ao do Zimbabwe, que lidera este ranking global de insegurança alimentar”, compara.

Evolução (%) da população a quem faltou dinheiro para comprar comida nos 12 meses anteriores à pesquisa
Brasil


Fonte: FGV Social a partir do processamento de dados do Gallup World Poll.

Fatores como uma inflação mais pesada na cesta de consumo das famílias de mais baixa renda contribuem para essa piora, ao mesmo tempo em que o auxílio emergencial, depois de uma interrupção no início do ano, foi retomado com valor e cobertura menores – e outros 20 milhões perderem o benefício na passagem para o Auxílio Brasil, no final do ano. Mas Neri também aponta que as condições da política de proteção social brasileira têm contribuído para isso. Ele lembra que, enquanto em um primeiro momento o Bolsa Família trabalhou pela focalização da transferência condicionada de renda, nos últimos anos o que se observou foi uma “desidratação” do programa, com falta de atualização do valor do benefício e filas de espera. “Agora, o  Auxilio Brasil com o seu generoso piso, em geral ativo, de R$ 400 por família, não reconhece a maior necessidade das famílias mais pobres e das mais numerosas”, aponta, defendendo que a maneira mais efetiva para combater o aumento tanto da extrema pobreza quanto da insegurança alimentar seria privilegiar a focalização do programa, com transferências crescentes de acordo ao grau de vulnerabilidade do beneficiário, conforme vários especialistas têm defendido, como o economista Vinícius Botelho. “Em fase de parcos recursos fiscais, é preciso colocar na ordem do dia os programas sociais voltados aos mais pobres dos mais pobres”, diz Neri. 

Sem dinheiro para se alimentar – países selecionados
(% da população total)


Fonte: FGV Social a partir do processamento de dados do Gallup World Poll.

O estudo do FGV Social aponta que a insegurança alimentar é maior na população com menor escolaridade (52% entre as pessoas com até o ensino fundamental, contra 31% com ensino médio e 8% entre universitários) e na faixa etária de 30 a 49 anos – 45% do total, para um percentual de 29% na faixa de 15 a 29 anos e de 31% entre as pessoas com mais de 50. O maior destaque, entretanto, é a forte diferença da evolução da insegurança alimentar quando analisada por gênero. Enquanto entre os homens a insegurança alimentar reduziu 1 ponto percentual entre 2021 e 2019, para as mulheres aumentou 14 pontos percentuais, chegando a 47%, 21 pp acima da apurada entre os homens.  “Em um ranking de 122 países, o Brasil é o número 53 dos com mais insegurança alimentar entre as mulheres, e número 74 entre os homens. Já éramos assimétricos, mas aprofundamos o quadro na pandemia”, afirma Neri. “Como algumas autoras frisam, a recessão da Covid-19 não foi uma ‘Hecession’ como na grande recessão mundial de 2007-08, ou a brasileira de 2015-16, mas uma ‘Shecession’, onde boa parte das mulheres ficou em casa cuidando da família sem renda do trabalho”, lembra o diretor do FGV Social. Esse impacto foi destacado no ano passado em webinar, e os desafios de reinserção no mercado de trabalho das mulheres que perderam o emprego ou tiveram de se afastar para cuidar da família durante o isolamento são acompanhados pela pesquisadora do FGV IBRE Janaína Feijó.  Neri também ressalta que esse resultado traz consigo o risco relacionado à saúde e ao desenvolvimento de crianças. Além dos efeitos negativos observados no período de fechamento de escolas –que, no caso das instituições públicas, comprometeu não apenas o acesso à educação como também à alimentação fornecida nas escolas, que em muitos casos representam a principal refeição de crianças de famílias de baixa renda –, mulheres e pessoas de meia idade costumam ser o grupo mais responsável pelo cuidado das crianças. E problemas de subnutrição infantil, lembra, estão associados à prevalência de doenças crônicas e problemas de desenvolvimento cognitivo que podem deixar marcas permanentes, comprometendo a capacidade dessas crianças de desenvolver-se bem tanto na escola quanto futuramente no mercado de trabalho, e de garantir seu bem-estar quando adultas.

Falta de dinheiro para comprar comida no Brasil - por gênero 
(% do total da população)


Fonte: FGV Social a partir do processamento de dados do Gallup World Poll.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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