Inflação e contratos públicos: como evitar apagão de canetas e licitações vazias

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

A persistência do processo inflacionário iniciado com a pandemia de Covid-19, reforçado este ano pela guerra na Ucrânia, tem gerado preocupação entre especialistas em contratos que envolvem obras públicas. A volatilidade de preços observada nos últimos anos em insumos estratégicos, afirmam, alimenta riscos importantes para o bom andamento de projetos, advindos de duas frentes. Pelo lado das empresas privadas, a incerteza sobre a evolução dos custos durante a execução do contrato pode gerar desestímulo, implicando licitações desertas, ou mesmo fracassadas, caso a precificação do risco por parte dos licitantes resulte em um preço acima do referencial esperado pela administração pública. E, do lado dos gestores públicos, o receio de que a necessidade de revisões de preços no decorrer do contrato implique risco de criminalização caso o processo abra precedente, de acordo com a Lei 14.331/21, para acusação de superfaturamento ou sobrepreço.

“O Brasil precisa de grandes investimentos, entre os quais se destaca a infraestrutura de saneamento. E tem condições de captar recursos para fazê-lo. Mas ainda não temos segurança jurídica”, afirma o advogado Jacoby Fernandes, sócio-fundador do escritório Jacoby Fernandes & Reolon, vice-presidente da Comissão de Controle de Gastos Públicos na OAB/DF. Em webinar promovido dia 16/5 pelo FGV IBRE em parceria com o Instituto Protege e a Editora - Fórum de Conhecimento Jurídico, Jacoby apontou que a forma como a Nova Lei de Licitações (14.133/21) trata do valor estimado para contratação privilegia a comparação com valores praticados pelo mercado a preços constantes, e mesmo referências similares realizadas pela administração pública no ano anterior à data da pesquisa, o que, na atual conjuntura, pode representar uma defasagem importante até o início de fato de uma licitação. “O dispositivo só trata da contratação, não da execução contratual, e não está pronto para enfrentar a volatilidade de preços que existe hoje”, diz.

Outro elemento destacado por Jacoby é a forma como a lei trata da criminalização por favorecimento do contratado em alterações no orçamento de obras, como no momento de reequilíbrio econômico-financeiro - que pode levar a reclusão de 4 a 8 anos e multa. “O reajustamento previsto em lei aponta à aplicação de um índice previsto em contrato, mas hoje os índices mais usados, por não sertem específicos, podem estar descolados da realidade”, afirma.

Tulio Barbosa, superintendente da área de Infraestrutura e Mercados Globais do FGV IBRE, ilustrou no evento como esse descolamento acontece, tomando como base insumos-chave para o setor de saneamento. Para tanto, desenvolveu uma fórmula paramétrica simulando uma obra de saneamento básico, e comparou a evolução de preços dos insumos dessa obra com o IPCA do IBGE e o Índice Nacional de Custos da Construção (INCC) do FGV IBRE, focado em obras de edificação. O resultado desse exercício mostra que, enquanto a inflação dos insumos dessa obra de saneamento foi menor que a do INCC em 2019 (2,2%, contra 4,15% do INCC), em 2020 e 2021 ela superou o INCC em, respectivamente, em 6 e 8 pontos percentuais. “Em um setor que trabalha com margens de lucro pequenas, essa diferença pode ser suficiente para inviabilizar um contrato”, afirma. A distância tomada em relação ao INCC, explica Barbosa, se dá pelo peso de cada componente no total do preço. “Tomemos como exemplo o aço,  cujo preço em fevereiro de 2021 registrou uma disparada de 20%. Enquanto no INCC seu peso gira em torno de 4%, em um contrato de saneamento esse percentual pode chegar a 28% ou mais, conforme a etapa”, compara, lembrando que reajustes, pela lei, acontecem anualmente, sem possibilidade de antecipação.

Exemplo de parâmetro de custo de obras de saneamento retrata diferenças em relação aos demais índices


Fonte: FGV IBRE.

Tomando como base os mais de 23 mil índices com os quais o FGV IBRE trabalha, Barbosa consegue tornar claras essas diferenças que, afirma, podem ser mitigadas para evitar judicializações que acabem em paralisação, desemprego e até abandono de obras. “A ideia não é favorecer um ente público ou privado, mas chegar a uma equação justa para ambos os lados”, diz. A primeira recomendação do especialista do FGV IBRE para mitigar problemas em contratos é a de, no início de uma licitação, tanto administração pública quanto empresas privadas busquem índices de preços adequados e busquem o dado mais atualizado que se possa ter. “Já vemos órgãos públicos adotando essa prática, buscando que os preços de uma cotação sejam todos de uma mesma data, a mais próxima possível da licitação. Bem, como na iniciativa privada, buscando índices de preços com alta aderência, que reflita a importância monetária de cada insumo”, afirma.

Outra alternativa, apontada por Jacoby Fernandes, é o uso do fator K como gatilho em uma matriz de risco. Esse instrumento, já adotado em outros períodos de inflação alta e volatilidade de preços na história econômica do Brasil, como lembra o advogado, trata da elaboração de uma equação que leve em conta o peso de cada insumo e a variação de preços observada para se realizar o reajuste necessário, e que já esteja prevista no edital de licitação. “É uma regra que garante o princípio de isonomia e impessoalidade tão caros nesses procesos”, diz. Para Jacoby, apesar dos desafios que persistem na nova Lei de Licitações, conta-se hoje com as ferramentas necessárias para evitar que um contrato seja inviabilizado por questões de preço. “Há caminhos possíveis, seja com a criação de um índice, de um critério de reequilíbrio, ou no cuidado na elaboração da matriz de risco - e mesmo a negociação de um critério na instância de solução de controvérsias, que agora a lei também prevê, evitando a ida aos Tribunais e a espera por um resultado que pode levar mais de 8 anos”, diz. “O atual momento de incerteza reforça a importância da construção de fórmulas paramétricas eficazes e aderentes à realidade dos contratos, que favoreça o gerenciamento dos mesmos. E, dessa forma, evite-se paralisações de obras, desmobilização de equipamentos, desemprego. Especialmente quando se envolve o maior contratante do país, a administração pública, que continua sendo uma engrenagem fundamental para o desenvolvimento econômico e social do país”, completa Barbosa.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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