“IFI e TCU podem ser atores importantes para minimizar o risco de descumprimento da regra fiscal com o jogo andando”

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Gabriel Leal de Barros, sócio e economista-chefe Ryo Asset, participou da Conjuntura Econômica de março, que reuniu análises de especialistas sobre o que esperar da nova regra fiscal, cujo projeto deve ser divulgado pelo governo antes da viagem do presidente Lula à China, entre os dias 24 e 30 deste mês. Leia aqui outros trechos da conversa com o ex-pesquisador do FGV IBRE:

Atualmente, observa-se a tendência de se somar ao arcabouço fiscal uma âncora de endividamento (leia declarações de Braulio Borges e Felipe Salto). Qual sua avaliação?

A experiência internacional mostra que regras de dívida não foram suficientes para ancorar as expectativas de mercado e não evitaram importante deterioração fiscal. Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha (PIIGS) são casos simbólicos, com um arcabouço que combinou primário estrutural com limite de dívida. Logo em seguida, a União Europeia buscou estabelecer uma terceira regra, focada na redução do excedente de dívida, que também não deu certo. Limite de dívida nos EUA também não deu certo e mesmo no Brasil, no âmbito subnacional, também não funcionou. Diante do fracasso das regras de dívida e do resultado estrutural, houve crescente adoção de regras de gasto, que é efetivamente o que o governo tem controle.

Outra questão relevante que deve ser considerado no desenho Europeu é a adição do cálculo do resultado primário estrutural, que antes precisa excluir e limpar os resultados por eventos não recorrentes, extraordinários. Essa etapa de cálculo faz grande diferença na estimação final e tampouco há consenso sobre os eventos não recorrentes na receita e despesa, o que dificulta sua escolha como regra operacional de política fiscal.

Uma das etapas importantes no cálculo do estrutural é estimar a elasticidade da receita ao PIB. No Brasil, essa elasticidade é sub-ótima, estatisticamente pouco estável, sendo mais um fator para desencorajar a sua adoção como regra fiscal. Além disso, há outras etapas de crucial importância e sobre a qual não há consenso, a exemplo da estimativa do PIB potencial Cada economista tem mais de um número, , assim como cada um tem um ajuste particular e próprio para receitas e despesas não recorrentes.

Há analistas que avaliam que, devido às reformas observadas nos últimos 6 anos, o PIB potencial seria de 2,5%, enquanto há outra visão de que, devido ao fim do bônus demográfico e nossa baixa produtividade, o potencial é de apenas 1% a 1,5%. Esse é um tema tão complexo que na Europa criou-se um grupo de trabalho para se chegar a um consenso, mas ainda estão discutindo. O fato é que a adoção do resultado estrutural e metas de dívida deu errado na experiência internacional, não sendo adequado sua defesa para aplicação no Brasil, que está muito longe de ter maturidade para adoção de regras complexas. Nem as simples são cumpridas, e o histórico de compliance é muito baixo.

Qual considera o melhor arranjo para o Brasil?

Vamos lembrar que não há regra fiscal perfeita e que sobreviva a falta de convicção e compliance da economia política. Dito isso, a  âncora fiscal deve continuar sendo uma regra de gasto. Nesse sentido, defendo que, ao invés de olhar pra trás (backward-looking), ela passe a olhar para frente (forward-looking), permitindo que as políticas fiscal e monetária atuem de forma conjunta e busquem o mesmo objetivo. Para tanto, defendo que a correção pela inflação seja pelo centro da meta, com o crescimento real do gasto limitado a, no máximo, nosso PIB potencial de estimativa mais conservadora, que é de 1,5%, por coincidência, equivalente ao intervalo da banda do regime de metas.  Dessa forma, seria possível harmonizar a atuação das políticas fiscal e monetária, facilitando o trabalho de convergência de inflação para a meta e obtendo um equilíbrio macro de qualidade superior.

Mas e quando a meta da inflação está sendo questionada, como agora. O que aconteceria se eventualmente ela fosse mudada?

Como falamos, não há regra fiscal ótima que sobreviva a soluções mágicas e rápidas vindas da economia política. Sem o mínimo de racionalidade econômica, o equilíbrio macrofiscal vai ser deteriorado inequivocamente. Para tanto, basta vermos como está a inflação implícita na curva de juros e o juro real de equilíbrio estimado pelos agentes de mercado no cenário de profunda incerteza e percepção de contínua flexibilização fiscal. Se a rota que está sendo observada nos últimos meses não for revertida, as condições para uma crise econômica agudam vão se solidificando até o ponto em que ela de fato ocorre. Crises ocorrem assim, devagar e então de repente.

Como garantir credibilidade da nova regra?

Como vamos estabelecer a nova regra por lei complementar, e existe uma percepção no mercado de que uma regra por lei complementar é mais frágil do que uma escrita na Constituição, esse ponto é ainda mais relevante. Não basta repetir o desenho anterior, porque o mercado enxerga o enforcement desse instrumento como mais frágil.  Para isso, gosto do modelo sueco adotado desde 1997/98, com muito sucesso. O principal diferencial dessa regra é a criação de subtetos de gastos que conversam com a regra geral, o que amplia o enforcement da regra, a capacidade de planejamento e a eficiência alocativa dos recursos públicos. A adoção da prática de revisão de gastos (spending review) é ainda totalmente compatível com esse arcabouço.

Os subtetos são definidos por áreas temáticas: educação, saúde, infraestrutura, por exemplo. Eles são impositivos nos dois primeiros anos, e indicativo nos três seguintes, dentro de um horizonte orçamentário de cinco anos - ou seja, substituem o PPA, que ocupa um tempo e enorme quantidade de recursos humanos, mas não serve para nada, é inócuo. O arcabouço entrega certa rigidez no médio e flexibilidade no longo prazo, sendo uma ferramenta de sucesso comprovado pela Suécia há mais de duas décadas.

Uma vantagem é que o orçamento brasileiro já é debatido desta forma, por área temática, durante as fases de tramitação da peça no Congresso Nacional. O casamento é perfeito e muito fácil de implementar. Além disso, a mecânica dos subtetos ajuda a organizar o debate sobre o conflito distributivo ao passo em que amplia o enforcement da regra geral. O método ainda entrega soluções para efeito de definições de qual será o novo gasto mínimo em saúde e educação. Em resumo, é um arcabouço multifacetado e que funciona na prática, convergente com as práticas fiscais e orçamentárias do país.

Você defende um aumento do papel da Instituição Fiscal Independente do Senado (IFI) no debate fiscal do país, desde que esta fosse reformada. De que trataria essa reforma?

A existência e contribuição de conselhos e instituições fiscais é crescente ao redor do mundo. A criação da IFI no Brasil foi um marco importante e defendo que este marco seja aprimorado. A institucionalidade do órgão precisa ser mais sólida, uma vez que foi estabelecida por resolução do Senado, assim como deve ter mais autonomia, transparência e especialização das diretorias. Deve ser ligada não apenas ao Senado, mas ao Congresso Nacional, e aproveitar o conhecimento presente nas consultorias da Câmara e do Senado. Para tanto, deve haver um redesenho do seu RH, equilibrando uma composição entre o público e privado e sem excessos que criem um cabide de emprego e capturem a instituição.

Defendo uma reestruturação organizacional da IFI, com diretorias especializadas e convergentes com as melhores práticas internacionais. Essa reestruturação deve tornar o órgão mais produtivo, técnico e capaz de responder às demandas por estudos e análises de forma mais tempestiva, cujo esforço pode ser acelerado tanto via troca de experiência e modelagem com instituições locais e estrangeiras. A OCDE intermedia um grupo de IFI a nível global e deve ser explorada de forma mais produtiva e ativa.

Além da IFI, o TCU também pode ser um ator importante para minimizar o risco de descumprimento das regras fiscais com o jogo andando. Há espaço importante para melhorar a atuação do Tribunal, que ajudou no compliance fiscal de alguns temas, mas deixou a desejar em outros casos presentes na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a exemplo do gigantismo das renúncias fiscaise da compensação de despesas de caráter continuado por medidas pelo lado da receita ou despesa.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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