“Há falha na gestão e planejamento de longo prazo da matriz elétrica”

Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE)

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

A recuperação da atividade econômica tem levado ao aumento do consumo de energia, pese o contexto da crise hídrica que limita a geração hidrelétrica. O governo está falhando na gestão do problema?

As medidas tomadas para conter a crise hídrica foram tardias, mas estão em andamento. Em junho, foi acionada a bandeira vermelha no patamar 2, com o valor de R$ 6,243 para cada 100 kWh consumidos, sendo ajustado para R$ 9,492 por 100 kWh a partir de julho. Com a finalidade de que a bandeira reflita o real custo da energia, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) abriu consulta pública para debater dois cenários para a bandeira tarifária no patamar 2: manter os R$ 9,492 por 100 kWh ou elevar o valor para R$ 11,50 por cada 100 kWh.

Outras medidas emergenciais estão sendo tomadas. No fim de junho, o presidente Jair Bolsonaro publicou a Medida Provisória (MP) 1.055/2021, que permite a adoção de medidas excepcionais e temporárias para otimização do uso dos recursos hidroenergéticos no enfrentamento da atual situação de escassez de água e de suas consequências na segurança do suprimento energético. Para tanto, ficou instituída a Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (Creg), presidida pelo Ministério de Minas e Energia (MME).

Em atendimento à Portaria Normativa nº 017/2021, do MME, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) iniciou processo de recebimento de ofertas adicionais de geração de energia elétrica provenientes de usinas termoelétricas (UTE) sem Custo Variável Unitário (CVU) para atendimento ao SIN. A portaria em questão estabelece de forma excepcional, até 31 de dezembro de 2022, diretrizes para a oferta adicional de geração de energia elétrica para atendimento ao SIN, objetivando aumentar a confiabilidade e a segurança no atendimento energético.

Além disso, o MME abriu consulta pública sobre proposta de redução voluntária de demanda de energia elétrica, a chamada “resposta de demanda”. A medida foi vista como necessária. Para alguns agentes, entretanto, a portaria traz condições consideradas restritivas à participação de empresas. A proposta sugere que possam participar os membros do Ambiente de Contratação Livre adimplentes com a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) que oferecerem um volume mínimo de 30 MW médios em intervalos de 4 a 7 horas.

As medidas mais recentes vieram da Creg, em reunião ordinária de 5 de agosto. Diante do cenário de níveis muito baixos dos reservatórios, decidiu-se, em caráter obrigatório, por: i) aprovar cotas mínimas para os reservatórios das UHE Ilha Solteira e Três Irmãos para o fim de agosto e para setembro de 2021; ii) realizar estudos para a permanência de flexibilizações hidráulicas nas UHEs Jupiá e Porto Primavera no próximo período úmido - entre de dezembro/2021 e abril/2022; iii) realizar estudos sobre a flexibilização temporária da Regra de Operação do Rio São Francisco; iv) Disponibilizar um terceiro navio regaseificador, no terminal de regaseificação de Pecém (Ceará), possibilitando o fornecimento de gás natural para termelétricas (UTEs); v) realizar ações que ampliem o fornecimento de energia elétrica por meio de UTEs a óleo diesel e gás natural; e vi) realizar estudo conjunto entre o ONS e a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) sobre as condições de atendimento eletroenergético na transição do período seco para o período úmido em 2021 e para o atendimento em 2022.

Deve-se lembrar que a questão da crise hídrica e dos baixos níveis dos reservatórios das usinas do setor elétrico está em pauta desde fins de 2012. Em 2020, a pandemia foi a razão do breve alívio, dado que as medidas de isolamento social reduziram significativamente a demanda por eletricidade, camuflando os problemas estruturais do setor.

O setor elétrico brasileiro, para o seu bom funcionamento, está cada vez mais dependente de variáveis exógenas como condições climáticas favoráveis, com as chuvas nos rios dos principais subsistemas, e o crescimento da economia. Portanto, há falha na gestão e planejamento de longo prazo da matriz elétrica.

Quais seriam as medidas mais eficientes para administrar esse problema sem comprometer a retomada do setor produtivo?

É preciso a garantia de segurança no fornecimento de eletricidade para que o setor produtivo não tenha a sua retomada comprometida. Um esforço conjunto deve ser empregado para que seja possível um gerenciamento da crise que evite blecautes e racionamento. Portanto, as medidas para solução do problema no curto prazo são o acionamento de todas as usinas que não são hidroelétricas para dar suporte ao fornecimento energético. Além disso, é preciso deixar que os preços reflitam, de fato, o custo da geração de energia elétrica no atual contexto: reduzida geração hidroelétrica e aumento da produção termoelétricas.

Somente em junho foi acionada a bandeira vermelha no patamar 2, quando já deveria estar vigorando desde fevereiro. A Aneel abriu consulta pública com a proposta de elevação do valor para R$ 11,50 por cada 100 kWh consumidos, reconhecendo que o atual valor de R$ 9,49 ainda é deficitário. 

Vale destacar que a elevação do valor da bandeira tarifária é uma questão que deve ser analisada com apuro. Valores muito elevados podem agravar a situação de inadimplência; no entanto, estes devem refletir o custo da geração de energia, pois é preciso assegurar que não haverá falhas no fornecimento.

Enquanto a situação dos reservatórios perdurar, o Preço de Liquidação das Diferenças (PLD), que valora a energia vendida no mercado de curto prazo, deve se manter no teto. Atualmente, são estabelecidos dois limites máximos do PLD: um limite máximo estrutural e um limite máximo horário, que para 2021 foram estabelecidos em, respectivamente, R$ 583,88/MWh e R$ 1.197,87/MWh.

Somente com os preços em alta temos um sinal para o consumidor reduzir o consumo e estímulos para despachar o máximo possível de térmicas, preservando o nível de água dos reservatórios.

Há falta de comunicação com o consumidor doméstico? Um sistema de premiação pode ser eficiente para mitigar o aumento do consumo residencial?

Diante da situação, a comunicação com todos os consumidores deve ser transparente e enfática. É preciso deixar clara a situação pela qual o setor elétrico está passando e ampliar as propagandas e mensagens em prol da redução do consumo. Estão em andamento estudos que visam incentivar os consumidores regulados a reduzir, de forma voluntária, o consumo de energia elétrica, em linha com o programa de resposta voluntária da demanda para grandes consumidores. O que é uma boa medida e poderia ser estendido a todas as categorias de consumidores, com proporções ajustadas a cada uma delas.

Em webinar promovido pelo FGV Ceri, especialistas consideraram que na crise de 2001 havia mais ferramentas para ordenar a demanda, como os certificados de energia elétrica negociados em leilões, e que a própria câmara que geriu a crise energética era mais plural, o que a fortalecia institucionalmente para a tomada de decisões, mitigando riscos jurídicos. Qual a sua avaliação?

As iniciativas tomadas em 2001 foram eficientes para o contexto da época. Hoje, o país enfrenta, em paralelo, uma grava crise sanitária, e precisa se mover, o quanto antes, para que a recuperação econômica não seja o estopim de um possível racionamento. O racionamento de 2001 deve ser encarado como exemplo, mas é importante considerar que são situações diferentes.

O racionamento vivido em 2001 não decorreu de fatores climáticos ou de conjunturas imprevisíveis, mas de um reflexo das dificuldades políticas de complementação do processo de privatização do setor elétrico. Os segmentos de geração e transmissão, justamente os que mais necessitavam de investimentos para atender a demanda de energia elétrica, estavam em sua grande maioria em poder de um Estado sem condições de executar os planos de investimento tão necessários. Ou seja, a causa do déficit, que gerou o racionamento, foi que o crescimento do parque gerador brasileiro não acompanhou o crescimento do consumo da forma adequada.

Por isso, o plano de racionamento foi a única solução possível, tendo em vista a restrição física de eletricidade. As medidas então adotadas representaram um inédito programa de gerenciamento de demanda no Brasil, com impactos positivos sobre a produtividade e a eficiência elétrica das indústrias e o meio ambiente. Portanto, as ferramentas usadas no racionamento de 2001 tiveram resultados positivos.

Agora, o problema está no fato do modelo atual não mais refletir as novas condições do setor elétrico. A matriz elétrica brasileira tem a maior parte da geração baseada na fonte hídrica, o que torna o setor fortemente dependente das condições climáticas, sobretudo, das chuvas. Geralmente, quando da previsão de períodos de seca, o planejamento conta com usinas termoelétricas, acionadas para compensar a menor oferta de hidroeletricidade. No entanto, a perda da capacidade de regularização dos reservatórios das hidroelétricas, dada a prioridade às usinas a fio d’água, e a forte expansão das fontes renováveis intermitentes estão tornando a operação do Sistema Interligado Nacional (SIN) cada vez mais complexa, dependente do clima e com baixa confiabilidade, diante da falta de planejamento adequado.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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