“Este mandato exigirá muito mais habilidade de Lula”

Daniela Campello, professora associada FGV Ebape

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Países com o perfil econômico do Brasil têm parte não desprezível de seu desempenho econômico dependente do cenário externo, o que também afeta a popularidade do presidente. Daniela Campello, entrevistada do mês de outubro da Conjuntura Econômica, que será publicada nos próximos dias, analisou os desafios de Lula, bem como dos demais países sul-americanos exportadores de commodities, diante do atual contexto internacional. O Blog antecipa aqui alguns trechos dessa conversa:

Em coluna recente na Folha de S. Paulo, Samuel Pessôa cita artigo, publicado em 2015 no Journal of Politics, em que você e Cesar Zucco demonstram que nas economias da América do Sul, por serem dependentes de exportação de matérias-primas e recursos externos para compensar seu baixo nível de poupança, a popularidade de um governo é condicionada pelas condições internacionais. Sob essas diretrizes, como avalia a condição atual do governo?

O objetivo do estudo que dá base a esse artigo, e que posteriormente ampliamos e publicamos no livro The Volatility Curse: Exogenous Shocks and Representation in Resource-Rich Democracies, é entender em que medida os ciclos externos afetam a política doméstica e, principalmente, quanto o eleitor consegue diferenciar do que é derivado de sorte ou de mérito. Essa é uma pergunta difícil que vale para o mundo todo, especialmente para o eleitorado da América do Sul, onde as economias são particularmente vulneráveis a choques externos.

Digo isso porque votar com base na economia é um padrão razoavelmente conhecido. Ainda que haja variações sobre a forma que isso acontece, é um fenômeno estabelecido, de as pessoas tenderem a reeleger governos quando a economia vai bem, e a tirar governos quando a economia vai mal. Essa teoria do voto econômico, entretanto, foi construída tendo como base os países da OCDE, que são economias muito mais estáveis, menos sujeitas a choques externos do que nós. É uma teoria de democracia muito otimista, porque sugere que o eleitor não precisa saber quem são os partidos, quem são os governantes, tampouco ter uma preferência política ou ideológica clara: basta votar com o bolso. Isso geraria incentivos positivos para o governo, para que se preocupe com o bem-estar da maioria das pessoas.

A questão é que o mundo em desenvolvimento é diferente dos países da OCDE, e da América Latina mais ainda. Somos mais vulneráveis por sermos exportadores de commodities, bem como de capital financeiro internacional para crescer, porque não temos muita poupança interna, e os movimentos desse capital são fundamentalmente influenciados pela evolução da taxa de juros dos Estados Unidos. Ambos são fatores que o governo não controla. Temos, assim, um problema: se o eleitor votar de acordo à situação econômica, corre o risco de votar de acordo com a (boa ou má) sorte do governante e não com o mérito de suas políticas. Se observarmos o que ocorreu na América Latina nos anos 2000, veremos um bom momento motivado pelo choque positivo de commodities que, em maior ou menor grau, beneficiou todos os países exportadores. Se olharmos para Venezuela, Colômbia, Brasil, todos tivemos um bom desempenho. O objetivo de nossa pesquisa foi, então, compreender se e como o eleitor conseguiria distinguir e descontar esse fator “sorte” do resultado econômico.

Criamos, para isso, um indicador de quão favorável se encontra o cenário externo para países dependentes de commodities e capital externo, que é o caso da América do Sul. Usamos o México e a América Central para testar um efeito placebo já que, não sendo economias exportadoras de commodities e tendo uma relação distinta com os juros americanos da por conta de forte dependência da economia americana, não são tão vulneráveis a estes dois fatores. Isso não quer dizer que estes países sejam menos vulneráveis a fatores externos, apenas que por conta de uma inserção internacional diferente, são menos vulneráveis aos fatores que influenciam diretamente a América do Sul.

Então, esse indicador, que chamamos de indicador de bons tempos econômicos, é na verdade um resumo das flutuações de preços de uma cesta de commodities e de taxa de juros americana. Sabemos que é difícil inferir causalidade nas relações sociais, mas neste caso em particular a causalidade é mais evidente porque ambos os fatores são incontestavelmente exógenos a decisões dos governos.

Em seguida examinamos como flutuações desse índice ajudam a explicar eventos políticos relevantes na América do Sul, tais como popularidade presidencial e chances de reeleição desde a redemocratização nos anos 1980. Examinamos também, neste caso usando um período mais extenso que inclui governos autoritários, quanto ciclos internacionais afetam transições regulares de governo, ou seja, que ocorrem no tempo e da forma previstos, o que exclui impeachment e renúncia, por exemplo.

Nossos resultados indicam que, em cenários favoráveis marcados por altos preços de commodities e baixos juros internacionais, presidentes têm mais alta popularidade e maiores perspectivas de se reelegerem ou elegerem seus sucessores. A única exceção, que confirma a regra, é o Chile, que adota uma política fiscal contracíclica que garante um colchão de recursos para amortecer choques e, desta forma, diminui a influência de ciclos externos na economia (e na política) doméstica.

Um spin off do livro, no qual estamos trabalhando, é a percepção de que na América do Sul, quando as coisas vão muito bem, e os presidentes estão com popularidade alta, existe um impulso de tentar mudar as regras para continuar no governo. É um risco de enfraquecimento institucional que acontece na bonança. Nos maus tempos, por sua vez, esse risco de enfraquecimento parte da oposição. Ou seja, diante de governantes mal avaliados, abre-se espaço para que a oposição tente mudar as regras para tirar esses governantes do poder. Esses achados que a volatilidade econômica explica, ao menos em parte, a debilidade institucional da região.

Hoje Lula chega para seu terceiro mandato em um contexto internacional muito diferente. A China já não tem a mesma potência para puxar a economia mundial, a inflação ainda é fonte de preocupação em todo o mundo, incluindo os Estados Unidos, o que deve levar o FED a estender o horizonte de juros em um nível mais alto. Isso também se reflete na América do Sul, com vários países em momento politicamente turbulento, menos favorável para Lula exercer uma liderança regional. Como avalia esse cenário?

A margem de manobra de Lula é de fato muito menor agora. Um ponto importante, estrutural, que a região irá enfrentar é o seguinte: no período de bonança, a esquerda latino-americana soube usar os excedentes para reduzir a pobreza. Desenvolveu-se uma tecnologia de transferência bem-sucedida, a começar pelo Progressa no México e o Bolsa Família no Brasil. A questão agora será como trabalhar para a redução da desigualdade na região quando não há excedente. Será preciso tirar de alguém, e isso implica um desafio político muito maior do que distribuir excedente. Agora estamos nesse momento, de colocar as cartas na mesa de que esses recursos terão de vir de algum lugar.

Quanto ao papel de Lula na região, vivemos um momento bem mais difícil de ler, bem mais difuso do que nos anos 2000. Naquele momento, houve uma conjunção de governos de esquerda que conseguiram distribuir renda, reduzir pobreza e, com isso, melhorar as condições de vida dos eleitores. Como resultado, eram governos extremamente populares e com uma agenda em comum, entre os quais Lula era uma liderança. O contexto hoje é bem diferente, de crise em toda a região. Desde o fim do superciclo das commodities, tivemos uma pandemia, seguida da invasão da Ucrânia. Como resultado, vivemos um problema de inflação que é mundial e que levou à alta de juros nos EUA. Têm sido anos de incerteza economia e política muito grande em todo o planeta, onde a queda na qualidade de vida têm criado condições favoráveis para o populismo em distintas regiões do mundo.

Na América do Sul, em particular, todos os olhos se voltam para a Argentina, que até hoje vinha resistindo ao populismo anti-sistema de extrema direita observado em outros países da região, entre eles o Brasil. A dianteira de Javier Milei choca, mas não surpreende depois de anos de retrocesso econômico. No Chile, Gabriel Boric têm encontrado dificuldades de entregar a melhoria de vida prometida e assim perdendo rapidamente popularidade, enquanto a direita ganhando espaço inclusive no processo constituinte. O mesmo vem se dando com Gustavo Petro na Colômbia. Tudo isso limita a capacidade de Lula liderar a região como fez em seus primeiros mandatos. Isso não significa que Lula tenha perdido estatura na região e no mundo, pelo contrário. Essa estatura se reafirma sobretudo depois de Bolsonaro mostrar como o Brasil poderia desaparecer em poucos anos do mapa de relevância internacional. Essa estatura, no entanto, não garante a liderança inconteste na região, como ocorreu em um período de maior sucesso econômico de governos alinhados ideologicamente.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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