“Em se tratando de equilíbrio fiscal, é importante olhar para a floresta, não somente para a árvore”

Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do FGV IBRE

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Espera-se que até 20 de março o Executivo mande para o Congresso a segunda parte da reforma tributária, sobre a renda. Em sua opinião, quais lições a experiência da reforma recém-promulgada, dos impostos indiretos, poderá trazer para essa segunda fase?

O conceito de IVA é um conceito correto, por isso a reforma promulgada deve trazer ganhos distributivos e de crescimento para o país. A forma de tramitação foi tortuosa porque se quis incluir tudo na Constituição. Com isso, o Congresso teve muito poder para discutir muitos temas, o que irá gerar uma série de benefícios fiscais que não fazem sentido, mas que refletem a coalizão de forças políticas do momento e que serão difíceis de serem removidos. Refiro-me aos tratamentos diferenciados e ao valor dos fundos. Por mudar o sistema em demasia, agora deveremos ter 19 grupos de trabalhos para regulamentar a reforma. É difícil fazê-lo, e não deve ser assim. Isso não deve acontecer da mesma forma nessa segunda fase.

A regulamentação da reforma dos impostos sobre consumo, que caso se cumpra o cronograma deverá correr em paralelo, poderá influenciar essa tramitação? Em que medida?

A regulamentação dos impostos sobre consumo será bastante complexa. Em vários aspectos, um tema da reforma puxa outro. As reformas estão conectadas. Por exemplo, o setor de serviços terá carga majorada e possui carga previdenciária elevada. É possível que a apresentação de uma nova forma de tributar a folha ajude a vencer resistências na reforma do consumo. Por outro lado, o modelo de reforma sobre renda, salários e patrimônio parece menos consensual e historicamente mobiliza menos o setor privado. A tendência é que a complexidade política de tratar tudo junto seja maior. O próprio Ministério tem dado indicações de que prefere tratar o tema em 2025, depois das eleições municipais. Acredito que seja a abordagem correta.

O livro que lançou no ano passado, como organizador, destaca a importância do resgate da progressividade do sistema (acesse a obra Progressividade Tributária e Crescimento Econômico, gratuitamente, aqui) . Quais pontos serão determinantes para esse resgate na proposta de reforma da tributação da renda?

Existem muitas fontes de regressividade no sistema e tributações que foram mal desenhadas. O eixo principal é voltar a tributar a distribuição de dividendos, reformular o JCP e eliminar outras brechas tributárias (algo que já está em andamento), e usar esse espaço fiscal para criar um sistema tributário mais competitivo, reduzindo a alíquota sobre as empresas e sobre salários. Na prática, deixaríamos de tributar produção para tributar a renda. O princípio da reforma, portanto, é parecido com o IVA, que deslocou a tributação da produção para o consumo, desonerando investimento e exportação. Essa reforma produzirá melhoras na distribuição de renda, no crescimento econômico e maior formalização no mercado de trabalho.

Na revista Conjuntura Econômica de janeiro, em artigo em que faz um balanço do primeiro ano do governo do ponto de vista fiscal, você defende de que o desafio do novo arcabouço está concentrado mais nas metas de resultado primário que foram definidas do que no arcabouço em si. Considera, dessa forma, que uma revisão para metas mais realistas poderia melhorar as perspectivas para o sucesso do arcabouço, e não o condenar ao descrédito, como muitos analistas apontam?

O arcabouço definiu um limite de despesa que é mais flexível do que o antigo teto de gasto. Ao mesmo tempo, há disposição do governo em tratar da questão tributária. Estamos, portanto, buscando o equilíbrio utilizando medidas de contenção de despesa via aplicação de uma regra e de receita via reformas. Entendo que isso é mais equilibrado do que o que se tentou fazer no passado. A melhora dos resultados fiscais virá da conjuntura econômica mais favorável, com mais crescimento, do sucesso do governo em adotar medidas tributárias que não produzam impacto contracionista na economia e de maior racionalização do gasto público. Nesse assunto, prefiro olhar para a dinâmica de longo prazo do que me pautar pelo atendimento ou não de metas anuais, ainda que entenda que no dia a dia da política econômica o desempenho é avaliado a curto prazo. Mas é importante olhar para a floresta, e não somente para a árvore.

Em seu artigo, menciona alguns desafios fiscais para o governo, entre os quais a existência de espaço político para se cortar gastos. Acha que o debate de uma reforma administrativa pode ser produtivo nesse sentido?

A questão tributária ganhou mais proeminência nesse primeiro momento porque ficou muito solta no regime fiscal anterior, mas existem desafios importantes do lado do gasto que ainda não se materializaram. A reforma administrativa pode ajudar, mas é importante ressaltar que já houve contenção importante nos gastos com pessoal. O que mais preocupa é a questão das despesas vinculadas à receita. Como o governo deseja elevar receita para fazer o ajuste fiscal, o gasto vinculado vai aumentar muito rápido. No caso da saúde, em particular, a vinculação federal foi introduzida em 2015, mas nunca foi efetiva. Esse é o primeiro ano em que será concretamente aplicada. Isso deveria ser mais bem debatido, porque vai gerar alocações no orçamento que são disfuncionais.

Você também aponta a falta de uma agenda econômica que foque o crescimento mais no curto/ médio prazo, posto que muitas medidas anunciadas mostrarão resultado em um horizonte mais longo. Que iniciativas poderiam fazer parte dessa agenda?

Várias coisas importantes foram feitas no último ano, que vão no sentido coibir excessos da política econômica anterior. A Petrobras voltou a investir e tomou a decisão estratégica de se transformar em uma empresa de energia com uma política de preços menos volátil. Isso está correto. O BNDES voltou a ter um papel importante. O risco é de cometer excesso, isso deve ser contido, mas essa é uma questão de governança da política econômica que precisa ser reforçada. O orçamento foi consertado com a Emenda da Transição e o Bolsa Família foi ampliado para reduzir as vulnerabilidades sociais. Aquela incerteza com relação à duração do pagamento do benefício, idas e vindas do programa, acabou.

O país tem um problema de crescimento econômico. Em 2023, o crescimento foi bom porque se beneficiou bastante do regime de chuvas e do cenário internacional, mas neste ano o crescimento deve ser menor. A reforma tributária deve ajudar, mas sua formulação foi desenhada para produzir efeitos de muito longo prazo. Existem alguns estímulos de demanda programados para este ano, como o pagamento dos precatórios e a depreciação acelerada. Mas acho que isso terá impacto pequeno. O Desenrola ficou travado nas faixas de renda inferiores. Essas coisas podem ser ajustadas.

O mercado de trabalho pode ser um limitador de crescimento importante. A taxa de desemprego caiu, mas a taxa de participação continua baixa. Isso sugere que as reformas podem não ter tido todo o impacto que se imaginava. A taxa de investimento continua baixa, apesar de várias reformas que, ao que tudo indica, não geraram resultado. Mas é importante avançar nesse tema, pois os limites para acumulação de capital são bem menos óbvios do que os limites da acumulação do fator trabalho. Montar a agenda de investimentos é importante.

Acrescento ainda que o Brasil deve se beneficiar bastante da agenda de transição ecológica. O país possui recursos naturais estratégicos cuja exploração precisa ser desenvolvida. Em um mundo com uma geopolítica complexa, temos condições de nos apresentar como parceiros confiáveis. Seria muito positivo que essa abundância de recursos naturais se transformasse em energia barata para se produzir no país. Aliado a isso, estão políticas industriais que dentro desse contexto possam gerar agregação de valor importante para o país criar empregos de qualidade. Esse é um tema polêmico, mas há muita evidência empírica mostrando que é possível de ser feito, e algumas experiências positivas no país. É importante apostar em bons projetos, em setores nos quais temos potencial dentro desse contexto energético e social para desenvolver essas capacitações com competência, avaliação e boa governança. Isso não pode ser um tabu.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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