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Um arcabouço que só se sustenta com aumento das receitas

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

“Se quem não paga imposto passar a pagar, todos vão pagar menos juros.” Trocando em miúdos a fala do ministro da Fazenda Fernando Haddad, ao anunciar, ontem (30), o novo arcabouço fiscal, tão aguardado por todos:  se o Estado arrecadar mais do que gasta, a dívida pública irá parar de crescer e, com isso, haverá menos despesa para o pagamento de juros.

Essa parece ser a linha mestra da nova âncora que, a princípio, foi bem recebida, para alguns, embora ainda paire muitas dúvidas com relação a sua execução. O bom humor com o que o projeto foi anunciado fez a Bolsa subir 1,89% e o dólar recuar, ainda que ligeiramente, em 0,7%. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, alvo de críticas do governo por manter a taxa Selic em 13,75%, emitiu sinais de convergência ao afirmar que, embora não tenha visto em detalhes a proposta apresentada, “entendemos que há uma boa vontade muito grande da Fazenda (...). Denota preocupação com a trajetória da dívida”.

Um dos pontos que pode trazer mais confiança que de o governo está empenhado em zelar pela sustentabilidade fiscal é a projeção de que, este ano, o déficit primário que estava previsto para ser negativo em 1% do PIB, passa a ter uma previsão de –0,75%. Além de previsões ambiciosas de superávits primários nos próximos anos.

Embora já seja do conhecimento, vou destacar alguns principais ítens do que foi anunciado pelo governo:

• Zerar o déficit no ano que vem.

• Limitar o crescimento das despesas do governo a 70% em relação à alta da receita dos 12 meses encerrados em junho do ano anterior.

• Já em 2025, fechar o ano com superávit primário de 0,5% e de 1% em 2026.

• Estabelecer um piso e um teto para o crescimento da despesa primária, com intervalos – os economistas chamam de bandas –, entre 0,6% e 2,5% do PIB ao ano.

• A Saúde (piso da enfermagem) e a Educação (Fundeb), estão fora dessa nova regra, pois já têm regras previstas na Constituição.

E dois últimos pontos:

• No caso de ocorrer resultado primário acima de 2,5%, o excedente pode ser usado para investimentos.

• Mas se o primário for menor do que 0,6%, o crescimento das despesas fica limitado a 50% da alta das receitas.

Para que essa nova âncora se sustente, a receita deve aumentar. O ministro Haddad negou que haverá aumento da carga tributária. Mas deu pistas de que setores não taxados atualmente, ou que pagam pouco imposto, ou têm muitos benefícios, vão ser revistos. Casos como os de jogos eletrônicos, taxação de dividendos, entre outros, podem estar na mira. A previsão do ministro Haddad é que isso possibilite um aumento de arrecadação que pode chegar na casa dos R$ 150 bilhões, com as revisões de benefícios que serão implementadas.

Para uma melhor compreensão dessa nova proposta, bem mais flexível que o antigo teto dos gastos, convidei alguns economistas para, em seus pontos de vista, avaliarem a nova âncora que, como escrevi neste espaço, finalmente foi divulgada.

Veja: À espera de Melquíades.

Silvia Matos – Coordenadora do Boletim Macro FGV IBRE

Afinal, o arcabouço fiscal foi divulgado. Em si já um importante evento, pois havia uma grande expectativa sobre o anúncio. Uma primeira impressão é positiva, pois há uma meta ambiciosa de superávit primário para os próximos anos, algo que não está contemplado nas expectativas dos agentes econômicos. Além disso, há uma previsão de um déficit primário este ano aquém do esperado pelo mercado e pelo próprio governo algumas semanas atrás. E, por fim, alguma trava no aumento dos gastos, que deve ficar aquém do crescimento das receitas; ou seja, o compromisso de pouparmos uma parte das receitas caso elas cresçam muito.

Mas a principal pergunta é se estas metas são factíveis. Como sempre ocorre, o “diabo” mora nos detalhes. Por um lado, há um piso e um teto para o crescimento real das despesas de 0,6% e 2,5%, respectivamente, mas o resultado depende do comportamento das receitas. Ou seja, a grande preocupação atual é com o cenário para as receitas. Para a nova regra ser crível, ou seja, termos superávit no horizonte futuro, temos que ter aumento de receitas. E aí que está o desafio. De onde virão estas receitas? O Congresso vai aprovar medidas de aumento de carga tributária? Sabemos que “gasto é vida”, mas sem aumento de receita não podemos ter mais gastos e ao mesmo tempo superávit primário significativo. 

Vilma Pinto – Diretora da Instituição Fiscal Independente (IFI) e Alexandre Seijas de Andrade – Analista da IFI

O arcabouço fiscal divulgado pelo governo, ontem (30), contém a intenção de garantir a sustentabilidade da dívida pública por meio da geração de superávit primário do governo central. O compromisso anunciado de zerar o déficit primário já em 2024 é positivo, mas algumas considerações são importantes.

Em primeiro lugar, não foi apresentado o projeto de lei complementar com os detalhes da nova regra, permanecendo o cenário de incerteza em relação à credibilidade da regra. Vale dizer, para ter um bom desenho, a regra precisa combinar simplicidade, flexibilidade e aplicabilidade, com objetivo de trazer sustentabilidade para as contas públicas. A avaliação de algumas dessas características demanda o conhecimento dos detalhes do projeto.

Em segundo, a geração de superávits primários estará concentrada no comportamento das receitas, uma vez que a regra não busca alterar o atual nível dos gastos. Poderá haver crescimento real contínuo das despesas dentro de um intervalo de 0,6% a 2,5%, ainda que fiquem condicionadas à evolução das receitas. Esse tipo de mecanismo pode incentivar a busca por mais receitas não recorrentes, que podem melhorar a situação de curto prazo, mas que não garantem, necessariamente, uma trajetória sustentável para o primário e a dívida.

Alguns grupos de despesas ficarão de fora da regra, como a Complementação da União ao Fundeb e o piso salarial da enfermagem, como já ocorre atualmente. Ainda, o investimento público deixará de ser variável de ajuste nas despesas e será preservado em patamar de R$ 75 bilhões, crescendo nos próximos anos, no mínimo, pela inflação do ano anterior. Em que pese a boa intenção de se preservar os investimentos, a regra aumenta ainda mais o grau de rigidez orçamentária da União.

Pelo anúncio do governo, a intenção é de recompor despesas e utilizar as receitas para garantir a geração de superavit primários para controlar a dívida pública. Não ficaram claras as condições de enforcement para o cumprimento da regra, assim como as condições impostas em caso de descumprimento. Tais elementos mantiveram incerto o alcance da estratégia para garantir a sustentabilidade da dívida pública no médio e longo prazos.

Bráulio Borges – Pesquisador associado do FGV IBRE

Os pontos positivos da nova âncora:

• Meta de resultado primário passa a ser a principal meta operacional. E sabemos que o resultado primário está mais conectado com a dinâmica da dívida do que somente receitas ou despesas

• A meta de primário chegando a 1,0% do PIB em 2026 caminha na direção correta (embora ainda esteja algo aquém do primário necessário para estabilizar a dívida líquida/PIB, no intervalo de 1% a 1,5%). Ou seja: está no limite inferior desse intervalo

• É uma trajetória de consolidação fiscal bem mais favorável do que aquela projetada pelo consenso de mercado (que, hoje, vislumbra déficits até 2026)

Os negativos:

• Calibração numérica não estabiliza a dívida líquida/PIB até meados desta década

• É uma regra que enseja um comportamento pró-cíclico da política fiscal. É uma pró-ciclicidade menor do que tínhamos entre 1999 e 2015 (quando a principal regra era de primário "pura"), mas ainda assim não se trata de uma regra anticíclica e sim uma regra com mecanismos que amenizam a pró -ciclicidade.

• Uma política fiscal pró-cíclica, mesmo entregando superávits primários crescentes, pode "atrapalhar" a política monetária, gerando a necessidade de uma Selic média mais elevada e isso, por sua vez, piora a própria dinâmica da dívida pública.

• Uma coisa é apresentar um compromisso, outra é entregar aquilo que está sendo prometido. Não houve divulgação de um Plano de Ação Fiscal ("plano de voo") apontando como essas metas de primário serão cumpridas. O ministro Haddad prometeu novas medidas "saneadoras" na semana que vem, entre R$ 100 bilhões e R$ 150 bilhões.

• Aparentemente não há nenhum incentivo muito forte para melhorar a eficiência dos gastos públicos. Também não foi sinalizada nenhuma medida envolvendo uma melhora na governança associada à escolha de quais investimentos públicos serão executados (algo que ganha relevância agora, com a definição de uma espécie de piso para esses gastos). Não queremos simplesmente recompor investimentos públicos; queremos recompor com qualidade, evitando projetos ruins.

Nelson Marconi – Professor da FGV EAESP

Finalmente o governo apresentou uma proposta de regra fiscal. Mas ainda há muito por fazer para cumpri-la e garantir seu sucesso. O principal componente da regra fiscal divulgada pelo governo estabelece que a variação das despesas não pode superar 70% da variação das receitas primárias nos últimos 12 meses. Se a inflação se situar em um patamar de 4%, por exemplo, a receita terá que crescer 5,7% para que as despesas evoluam na mesma medida que a inflação. Logo, a regra é consideravelmente restritiva em relação às despesas; como o governo vem anunciando há tempos que pretende recompor a execução de diversas políticas públicas, a única forma de fazê-lo será por meio da elevação das receitas (ou de nova diminuição dos investimentos, que já se encontram em um patamar reduzido) e não está claro como o governo encaminhará esse assunto. O ministro Haddad deveria ter sido mais assertivo nesse sentido, explicando como buscará recursos. Deveria propor a taxação sobre lucros e dividendos distribuídos e grandes patrimônios, por exemplo.

A regra apresentada é, portanto, fortemente pró-cíclica, e seus componentes anticíclicos (limites superiores e inferiores para despesas e piso para investimentos) são modestos. Para configurar uma regra realmente anticíclica – característica essencial de uma boa política fiscal –, é necessário que o investimento esteja excluído do teto, mesmo que às custas de maior rigor com as demais despesas correntes. 

E já que toquei nesse assunto, o governo deveria também apresentar meios e instrumentos para reduzir as despesas correntes, visto pretender que seu crescimento seja inferior ao da receita e estar defendendo, ao menos retoricamente, a manutenção dos investimentos. Mudanças na lógica de elaboração orçamentária, realização de um planejamento da força de trabalho e redução dos salários de ingresso dos servidores deveriam estar entre as medidas propostas; isso sem falar na despesa com juros, que integra as despesas correntes, mas não constitui uma despesa primária e vêm pressionando fortemente a evolução da dívida pública; a falta de sintonia entre as políticas monetária e fiscal é gritante.

É importante o governo ter apresentado uma regra, mas será ainda mais relevante se ele detalhar alguns mecanismos que adotará para cumpri-la. Minha impressão é que o percentual de 70% de vinculação entre a receita e a despesa é um piso que deverá ser majorado na negociação com o Congresso pois, a prevalecer a proposta, o governo terá que cortar despesas que vêm defendendo ou elevar consideravelmente a receita; se assim o for, deve explicar melhor como o fará.

Fábio Giambiagi – Pesquisador associado do FGV IBRE

A taxa de juros de longo prazo da economia brasileira (não a TLP, e sim a taxa real de 30 anos da NTN-B, tendo como fonte de dados a ANBIMA) era da ordem de 9 % – lembrando, em termos reais – em meados da primeira década do século. Devido a uma série de avanços do país, aos trancos e barrancos e ao longo de 15 anos, com altos e baixos, essa taxa foi caindo gradualmente, até chegar a 3,6 % em fevereiro de 2020, logo antes da pandemia. Com a sucessão de eventos ocorridos na economia brasileira desde então, a taxa subiu rapidamente em março e abril daquele ano, depois caiu um pouco e, como acúmulo de incertezas de 2022 e 2023, voltou a subir fortemente. No momento em que escrevo estas linhas, ela se situa em torno de 6,3 % a 6,4%. É difícil vislumbrar um futuro muito promissor para o país com essa taxa muito acima do nível de 4%. Esse deveria ser um dos principais desafios das autoridades nos próximos anos para alavancar o ritmo da economia: reduzir esse indicador de risco da economia. E isso vai muito, muito além do debate acerca de qual será a decisão acerca da Selic a ser tomada no próximo Copom. A razão da dinâmica dessa taxa está ligada às dúvidas acerca da trajetória fiscal brasileira.

Nesse sentido, a apresentação do famoso “arcabouço fiscal” foi marcada pela pobreza de informações. Para quem assistiu à apresentação, ficaram muitas dúvidas, algumas bastante óbvias. Qual será a trajetória da receita ao longo do tempo? Como irá evoluir a relação gasto primário/PIB ano a ano de 2023 a 2026? Como se decompõe o resultado primário entre Governo Central, Estados e Municípios e empresas estatais? São informações básicas, que qualquer pessoa que tenha acompanhado o debate fiscal nos últimos 25 anos faria ao ministro e que por enquanto continuam sem maiores respostas. Sem conhecer em muitos detalhes como se chegará ao esperado superávit de 2026, é difícil inspirar muita confiança para que a taxa de longo prazo desabe os 200 a 250 pontos que seria desejável.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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