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“Nasci em um mundo à beira do desastre”

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Vou voltar a um assunto que tratei, ainda que de forma passageira, nesse espaço no dia 25 de fevereiro último, sobre as mudanças radicais que as sociedades vêm apresentando. Não sei se foi a pandemia. Ou se já havia sentimentos represados que começaram a aflorar com grande intensidade nos últimos tempos, fortificados pelo uso descontrolado das redes sociais.

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Hoje, coisas que seriam impensáveis há algum tempo parecem corriqueiras. É como se as pessoas estivessem acomodadas, entorpecidas com o que vem ocorrendo. As manifestações racistas crescem. A defesa de regimes totalitários, a exaltação ao nazismo, a xenofobia, só para citar alguns exemplos e não me alongar e cansar quem se atreve a ler este texto.

Como jornalista por mais de 40 anos, tento entender o que estaria ocorrendo, já que as mudanças que o mundo está vivenciando irão afetar a vida de novas gerações, de meus netos.

 O caminho para isso é ler. Buscar na literatura quem está se debruçando sobre esses problemas para tentar explicar o que está acontecendo no mundo. O que estaria levando milhões de pessoas a uma insanidade, e uma outra parte, por ora a grande maioria, a ver tudo acontecer de forma impassível, de braços cruzados? Explicar isso não é nada trivial.

Muita gente, especialmente cientistas políticos e acadêmicos das mais variadas áreas, tentam encontrar respostas. Em seu livro O Crepúsculo da Democracia, Anne Applebaum, jornalista norte-americana, editora da The Economist, faz menção a Fritz Stern, professor da Universidade de Columbia que, em sua autobiografia, disse: “Nasci em um mundo à beira do desastre”. Nascido em 1926, na Alemanha Oriental, em seus 90 anos de vida conviveu com a ascensão e colapso do nazismo e do comunismo na Europa, a ascensão dos Estados Unidos como potência mundial, depois da Segunda Guerra Mundial, e o triunfo da democracia na Europa Oriental. Nos últimos anos de vida - morreu em 2016, em Nova York -, receava que a democracia liberal entraria em colapso.

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A menção ao visionário Stern de que Anne lançou mão vai ao encontro do que vem ocorrendo em algumas partes do mundo. Em seu livro, a jornalista ganhadora do Prêmio Pulitzer busca jogar alguma luz sobre as transformações que a sociedade está sofrendo, onde os valores parecem estar mudando com grande velocidade, com a fragilização de sistemas democráticos, onde as mudanças políticas – alterações de humor público, mudanças repentinas no sentimento popular, colapso das filiações partidárias – ainda não têm uma resposta.

O que estaria levando a isso, já que a literatura, em sua esmagadora maioria, “foca em critérios mensuráveis e economicamente quantificáveis, como níveis de desigualdade ou padrões de vida”, para que haja uma reação contrária ao “status quo”?

Muitas dessas análises, como menciona Anne no Crepúsculo da Democracia, “buscam prever que o nível de dor econômica – quanta fome, quanta pobreza – produzirá uma reação, forçará as pessoas a ir às ruas e as levará a assumir riscos”.

Não há dúvidas de que a questão econômica é um estopim para que as pessoas se mexam, contestem, mudem governantes. Mas outros elementos surgiram, com enorme poder de convencimento e que, em certos casos, podem fragilizar os efeitos econômicos. Esses novos elementos devem ser olhados com atenção em qualquer tipo de análise que não pode, a meu ver, se restringir somente às questões econômicas.

Anne diz em uma parte de seu livro que “nesse novo mundo, pode ser que grandes mudanças ideológicas não sejam causadas pela falta de pão” (numa referência à situação econômica), “mas por novos tipos de perturbação (....). Em um mundo no qual a maior parte do debate político ocorre online ou na televisão, não é preciso sair às ruas (....). A fim de manifestar uma drástica mudança de afiliação política, basta mudar de canal, abrir outro site pela manhã ou começar a seguir um grupo diferente nas mídias sociais”.

Outro ponto interessante que Anne menciona – há vários – é que “as pessoas frequentemente são atraídas pelas ideias autoritárias porque ficam incomodadas com a complexidade. Elas não gostam de divisões. Preferem unidade. Um súbito surto de diversidade – de opiniões, de experiências –, as deixa enraivecidas. Elas buscam soluções em uma nova linguagem política que as faça sentir mais seguras”.

E parece que temos muitos exemplos que comprovam essa teoria.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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