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A lógica do controle das despesas foi para o espaço

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Aos 15 anos, Felipe Salto já escrevia para o jornal de Laranjal Paulista, cidade do interior do estado de São Paulo. Aos 14 teve seu primeiro comentário publicado no fórum de leitores do O Estado de S. Paulo. Hoje, aos 35 anos, é secretário de Fazenda do Estado de São Paulo, depois de uma passagem virtuosa pela Instituição Fiscal Independente (IFI), da qual foi o primeiro diretor-executivo.

Formado em Economia pela FGV EESP, Salto lembra que no coquetel oferecido aos alunos mais bem-colocados no vestibular e seus pais, o professor Yoshiaki Nakano, diretor da FGV EESP, que foi secretário de Fazenda de São Paulo no governo Mario Covas, perguntou: “Você também passou para Engenharia Civil. Mas quer construir pontes, calcular resistência de materiais, ou quer um dia ser ministro da Fazenda, e trabalhar por um caminho de mais bem-estar para a sociedade?” Escolheu o segundo caminho. Agora, falta o Ministério.

Veja alguns trechos da entrevista de Felipe Salto à Conjuntura Economica, já em circulação.

• O desajuste fiscal permanece sendo a questão central brasileira. Porque uma coisa é o fato de ficarmos com uma dívida mais baixa do que a prevista pela IFI, pelo mercado, pelo FGV IBRE, e até pelo próprio governo. Se verificar o relatório de avaliação bimestral do Orçamento divulgado em dezembro de 2021, ainda ali o governo previa um déficit muito maior do que o que foi realizado, porque a inflação perpassou tudo isso. Mas este é um aspecto bom que deriva de algo ruim, pois inflação é sempre ruim. Tanto que, ato contínuo, o Banco Central (BC) teve que aumentar a taxa de juros mais rapidamente, e esse aumento de juros encareceu a dívida, dificultou o investimento privado, o consumo, encareceu o crédito. E se observar que essa dívida mais baixa está infinitamente mais cara, de certo modo trocou-se seis por meia dúzia.

Melhora do resultado fiscal em 2021 supera as estimativas
Dívida bruta do governo geral (DBGG), em % do PIB

 

Resultado primário do governo central, em R$ bi


Fonte: IFI/Senado, FGV IBRE.

• Temos que ter medidas que restabeleçam a lógica do controle das despesas, que foi para o espaço com as Emendas 113 e 114 promulgadas no ano passado, derivadas da PEC dos Precatórios. Vale dizer que esse é o grande risco que se aventava como consequência de um resultado eleitoral de 2022. Mas, com um ano de antecedência, o atual governo fez isso: alterou a regra do teto de gasto retroativamente, e deu-se um calote de R$ 50 bilhões nos precatórios. Tudo bem que o aumento da taxa de juros pelo BC também reflete o contexto externo, que é bastante adverso. O aumento do preço das commodities, mesmo com a apreciação cambial no curtíssimo prazo, liquidamente é negativo para a inflação. Mas a outra razão, mais estrutural, pela qual a curva a termo de juros está lá em 12%, 13% para qualquer prazo, tem a ver com o desequilíbrio fiscal.

Inflação alta tende a encarecer a rolagem da dívida...
Juros Nominais Líquidos - % do PIB

 

...cuja trajetória ainda não foi ancorada, devendo crescer novamente
Dívida Bruta do Governo Geral (% do PIB)


*Projeções. Fonte: IFI/Senado

• Quando a IFI foi criada e instalada no dia 30 de novembro de 2016, também com minha posse, era um período muito difícil para a economia brasileira. No biênio 2015/16, o PIB brasileiro registrou queda acumulada em torno de 7%. Havia ali os estertores do período que marcou a chamada contabilidade criativa dos governos do PT. Aquilo, na verdade, foi consequência última do uso de certos mecanismos contábeis para distorcer a meta de resultado primário – receita menos despesa sem considerar o gasto com juro. A resposta institucional do governo Temer, do Senado e do Congresso em geral foi a criação e promulgação da Emenda 95 do teto de gastos. Que não salva a lavoura, pois não tem uma bala de prata que resolva a questão fiscal. Mas foi um avanço que ajudou a reduzir o custo médio da dívida nos anos que se seguiram, levou a uma melhora do resultado primário que estancou essa sangria. A IFI foi criada nesse contexto, como resposta do Senado para dizer: precisamos de maior transparência.

• O Brasil é pródigo em criar regra fiscal e legislação nova, mas não é pródigo em cumprir. Infelizmente, ou felizmente, a gente já tem uma legislação – a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) –que é muito moderna, avançada, sofisticada, cujo espírito precisa ser mais espalhado pela elite política e pela sociedade em geral. Não adianta ter as melhores regras e não entender que, sem responsabilidade fiscal, não teremos crescimento econômico, juro baixo que estimule o investimento produtivo. Precisamos buscar uma maior conscientização da importância da responsabilidade fiscal, e há aprimoramentos que podem ser feitos para isso. Com o retrocesso no teto de gastos promovido no ano passado, em 2023 a prioridade zero será estabelecer certa normalidade nesse campo, dizer como as regras vão funcionar, buscar uma harmonização das regras fiscais vigentes.

• Temos que entender que o modelo de Estado que o Brasil escolheu e que deriva desse pacto social refletido na Constituição de 1988 não é o de um Estado pequeno. Então, o que nós, economistas, podemos fazer é ajudar a pensar como esse Estado pode funcionar de forma mais racional, e mostrar que se o ajuste fiscal se der todo pela carga tributária, isso também tem custos do ponto de vista produtivo, gera peso morto, desincentiva a produção e a economia de maneira geral. Esse foi o tipo de ajuste que fizemos em boa parte do pós-redemocratização, pelo lado da receita. Para fazer o ajuste pelo lado do gasto, ser mais eficiente na despesa, e reduzir as renúncias tributárias, que no caso da União também são elevadas, isso vai demandar tempo.

• Não acho que o teto de gastos seja imutável. Acho até que a proposta dos economistas (pesquisadores associados do FGV IBRE) Fábio Giambiagi e Manoel Pires é bastante positiva. O governo mudou o teto no atropelo, diante de pressões por gastos para o ano seguinte – no caso, 2022.

Mas, de uma forma geral, na perspectiva de longo prazo, estamos avançando. Com retrocessos aqui e acolá, e com uma cultura de que gastos resolvem todos os problemas. E vai ser demorado para mudar, pois a desigualdade no Brasil é muito elevada. Por isso, é preciso entender que ou a gente melhora a composição do gasto, justamente para atender a demanda da população que mais depende do Estado, ou continuaremos aumentando todo o bolo de gastos de modo a preservar essa composição ineficiente da despesa – aí incluído também o gasto tributário –, para conseguir atender à demanda dos mais pobres.

• O pacto federativo no Brasil precisa ser revisitado. Não conseguimos avançar minimamente nessa questão. Ao contrário. Precisamos retomar essa agenda não só para discutir minúcias de convênios do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), das regras que beneficiam este ou aquele estado, mas uma visão do todo. Agora que estou em São Paulo, percebo ainda mais essa necessidade, pois obviamente temos que defender os interesses do estado no Confaz e no Comsefaz (comitê que reúne secretários de Fazenda). Veja o caso da LC 192 que trata dessa mudança na tributação dos combustíveis. Essa é uma prerrogativa dos estados. A lei aprovada diz que agora terá que ser uma alíquota ad rem, que é um valor, não um percentual. O que até pode fazer sentido, mas de uma maneira que tira poder do próprio Estado de definir sua própria alíquota. Isso porque houve um equívoco de diagnóstico, que se espalhou de uma maneira bastante perigosa, de que a culpa pelo preço dos combustíveis era dos estados e do ICMS, quando na verdade o que houve foi uma mudança do patamar da taxa de câmbio e um aumento forte das commodities agravado pelo quadro da guerra na Ucrânia. E isso não vai ser resolvido com uma canetada no âmbito do ICMS.

• As trincheiras da guerra tributária e fiscal são várias. A reforma da PEC 45, agora 110, preconiza a criação de imposto de valor adicionado nacional, ou de duas cabeças: uma no nível federal e outra no subnacional. Algo que, no mundo ideal, pode fazer sentido. O problema é que não se avança, porque todas essas trincheiras entram em ação. Como essa que você mencionou, de indústria versus serviços.  A indústria quer uma equalização da tributação em relação ao setor de serviços. Mas os serviços advogam que será um aumento na carga tributária. Porque, ao migrar a cobrança para o destino, como a cadeia de produção dos serviços tende a ser pequena em comparação com a indústria – basta comparar, por exemplo, uma escola e uma montadora de automóveis –, os serviços terão menos crédito acumulado e, com a alíquota proposta, terão de pagar mais imposto. E não querem.

• São Paulo tem um desafio primordial a ser suplantado, que é a desigualdade. Então, a responsabilidade social é que é o fim último da responsabilidade fiscal. Temos que ter um orçamento organizado, reduzir gastos ineficientes, voltar a discutir benefícios tributários depois do período eleitoral, quando tivermos mais instrumentos, justamente porque é preciso abrir espaço no orçamento para políticas focalizadas nos mais pobres.

• Gerar emprego demanda crescimento. E como diria o ex-ministro Delfim Netto – que considero uma referência maior – só tem dois jeitos de crescer: ou alimentando exportação líquida, ou aumentando investimento. No Brasil, estamos mal nas duas coisas. Por um lado, porque nossa política externa não está fazendo nada para aumentar nossas exportações líquidas. Ao contrário, o acordo Mercosul – União Europeia está indo por água abaixo porque desrespeitamos questões ambientais, e tudo isso está entrando na nossa conta de modo negativo. O que também prejudica muito a entrada de investimento novo. Os acordos que tinham sido encaminhados por José Serra e Aloysio Nunes enquanto ministros de Relações Exteriores, e por governos anteriores também por meio do Itamaraty, de uma política externa voltada ao comércio, ficaram em segundo plano.

Veja a íntegra da entrevista na revista Conjuntura Econômica de maio

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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