Em Foco

Estou cego

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Estou cego. A frase, do personagem o “Cego número 1”, no começo do livro Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, guardada as devidas proporções, veio forte à minha mente no sábado passado quando acordei com uma forte dor de garganta. Com seis vacinas tomadas contra a COVID-19, e driblando o voraz vírus por quatro anos, resolvi fazer o teste: positivo.

Qualquer infecção no meu corpo avança com uma rapidez incrível. Medicado com antibióticos e corticoides, a infecção ainda tomava conta do lado direito de meu pescoço, com gânglios, dor aguda  do pescoço e cabeça. Nem água conseguia beber. Comer, nem pensar. A voz parecia do além túmulo. Fui ao médio me arrastando, com máscara, álcool gel. Mais remédios. Comecei a melhorar lentamente. A oxigenação, uma das preocupações, baixou para 92/93. O pavor de uma internação não saía da minha cabeça. Aí os gânglios começaram a desinchar. A oxigenação voltou a 95/96. Os exames de sangue que saíram até agora mostram uma infecção cavalar. Ainda não foi totalmente extirpada. Fico pensando o que seria se não estivesse vacinado.

Atrevi-me a contar esse fato já que vinha acompanhando a trágica situação da vacinação no País. Ao longo da pandemia, escrevi neste espaço vários artigos sobre o assunto. Somos referência na questão de vacinação no mundo através do Sistema Único de Saúde (SUS), e agora há um enorme contingente de pessoas, inclusive crianças, que não estão se vacinando.

É verdade que houve uma recuperação na vacinação infantil de oito vacinas que vinha despencando: em 2023, houve aumento nas coberturas vacinais de hepatite A, poliomielite infantil,  pneumocócica, meningocócica, DTP (difteria, tétano e coqueluche) e tríplice viral 1ª dose e 2ª dose (sarampo, caxumba e rubéola). Mesmo assim, ainda estamos longe dos 95% de cobertura vacinal necessária para proteger nossas crianças. O que já havia ocorrido em anos anteriores.

Voltando à COVID-19 que continua por aí, com aumento dos casos de internação. No caso das crianças, elas estão morrendo mais pelo vírus do coronavírus do que de meningite, dengue – que grassa por quase todo o País –, além de uma série de outras doenças. Levantamento do Observatório de Saúde da Infância da Fundação Oswaldo Cruz com a Faculdade de Medicina de Petrópolis do Centro Universitário Arthur de Sá Earp Neto mostra que só 11,4% das crianças de 0 a 14 anos se vacinaram. Pior: nos adultos, a taxa de vacinação é de apenas 14,9%, se considerarmos o esquema completo com as quatro doses de vacina. Sem os dois reforços da Pfizer.

A informação, publicada no jornal Valor Econômico do dia 11 de março, também aponta que a cobertura contra a COVID-19 em crianças de 3 a 4 anos está em 23% para duas doses apenas, e somente 7% para o esquema vacinal completo de três doses. Na faixa de 5 a 11 anos, a cobertura aumenta, subindo para 55,9% com duas doses, mas despenca para 12,8% para a vacinação com três doses.

O Boletim também reafirma o que estamos carecas de  saber (ou pelo menos quem acredita na ciência está): a vacinação reduz o número de mortes, mostrando a eficácia do imunizante. Mas a baixa procura, segundo a Fiocruz, preocupa pois está associada ao número de mortes.

Outro levantamento inédito do Observa-Infância, publicado pela Folha de S. Paulo no dia 10 de março, sinaliza que quatro anos depois do início da pandemia do coronavírus, a cada quatro dias ao menos três crianças ou adolescentes de até 14 anos morrem no Brasil, em média, devido a complicações da doença.

Mortes de crianças e adolescentes por Covid e SRAG nas oito primeiras semanas dos últimos quatro anos
Percentual de óbitos por Covid (em realção à SRAG)


Fonte: Boletim Observa-Infância/Sivep-Gripe/Fiocruz. Publicado na Folha de S. Paulo.

 

Meu clínico, há anos, de quem me tornei amigo, defensor ferrenho da vacina, como eu, mostrou toda a sua angústia quando estive lá esta semana. Presencia, diariamente, casos de adultos e crianças serem internados, sem cobertura vacinal completa, ou nenhuma vacinação. Pressão sobre o sistema de saúde, de algo que poderia ser evitado ou minimizado. É evidente que há raros casos de pessoas, mesmo vacinadas, que acabam falecendo devido a complicações da doença. Mas dá para contar nos dedos.

Faltam campanhas de conscientização. Por onde anda o Zé Gotinha? Agora estamos com outra catástrofe anunciada: a dengue. Já se sabia que teríamos aumento de temperaturas, chuvas. Nada foi feito. A dengue não se combate com a vacina (como a COVID-19), que a maioria não quer tomar por trazer reações, mas com ações preventivas de combate aos nascedouros dos vetores. A cidade de Niterói, no Rio, reduziu em quase 70% a infestação das fêmeas do mosquito Aedes Aegypti – as que picam e transmitem, se estiverem infectadas –, através da soltura de milhões de mosquitos modificados em laboratório, que inibem a proliferação dos vetores.

Tenho a sensação de que o País esqueceu de resolver as coisas básicas, antes de tentar alçar voos mais ousados. A Nova Indústria Brasil (NIB), por exemplo, é um leque de intenções, algumas boas, outras muito ruins. Mas não conseguimos nem resolver um problema básico, o de saneamento no País, onde milhões de pessoas continuam sem acesso a esgoto e  água. Ter uma indústria eficiente é fundamental, mas resolver questões essenciais, como do saneamento, entre outras, acho que seria o primeiro passo.

Também temos uma mania de não olhar as coisas que deram certo (e as que deram errado).

Vou tomar aqui emprestado um texto disponível no Wikipedia. “Há mais de 100 anos, o Brasil era assolado por diversas moléstias infecciosas. Para combater a infestação, Oswaldo Cruz, médico sanitarista, decidiu empreender campanhas sanitárias para enfrentar as principais doenças que assolavam a capital federal, como febre amarela, peste bubônica e varíola. Para isso, adotou métodos tidos como drásticos por outros médicos, como o isolamento dos doentes, a notificação compulsória dos casos positivos, a captura dos vetores, como mosquitos e ratos, e a desinfecção das moradias em áreas endêmicas. Sua base era o Instituto Soroterápico Federal, de onde deflagrou campanhas de saneamento e, em poucos meses, a incidência de peste bubônica diminuiu com o extermínio dos ratos, cujas pulgas transmitiam a doença.

O combate à febre amarela foi difícil, já que grande parte dos médicos e da população acreditava que a doença se transmitia pelo contato com as roupas, suor, sangue e secreções de doentes. Oswaldo Cruz, porém, acreditava que o transmissor da febre amarela era um mosquito. O método tradicional de combate à febre amarela na época era através da desinfecção, suspensa por Oswaldo Cruz, onde ele implantou no lugar medidas sanitárias com brigadas que percorriam as casas, eliminando focos de insetos. Tal medida provocou uma forte reação da população”.

A infestação foi debelada.

Aqui no prédio onde moro a portaria estava infestada de mosquitos. Reclamei várias vezes, já que há um terreno ao lado, creio do Metrô, fechado já há algum tempo. De vez em quando se vê uns gatos pingados andando lá por baixo.

Depois de muito tempo,  apareceu um pessoal da Vigilância Sanitária. Não sei no que deu. Mas começaram a cortar a grama e jogar fora um monte de entulho. Hoje começaram a cortar um matagal que cresceu rapidamente, novamente. Vamos ver se melhora.

E a vida continua.

Agradeço a Solange Monteiro, editora da revista Conjuntura Econômica, por ter auxiliado com informações para a elaboração deste texto.

 

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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