“É difícil chamar de recessão um PIB com desempenho setorial tão heterogêneo”

Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro IBRE

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Como avalia o resultado negativo do PIB do terceiro trimestre – que somado ao -0,4% do segundo tri configuraria a entrada em uma recessão técnica?

Por enquanto, chamar de recessão é um pouco excessivo. Primeiro, porque é uma queda pequena, de 0,1%. Além disso, temos desempenhos setoriais muito heterogêneos. Quando lembramos de 2015/16, naquele período todos os setores contraíram bastante, foi uma sincronia negativa. Mas hoje temos setores crescendo fortemente, por exemplo, outros serviços (4,4% em relação ao trimestre anterior, 13,5% em relação ao mesmo trimestre de 2020). Como falar em recessão com a construção crescendo (3,9% e 10,9%, na mesma comparação)? É difícil chamar de recessão um PIB com desempenho setorial tão heterogêneo, ainda que estejamos em um momento de recuperação da pandemia. Temos expectativa positiva para o quarto tri, de 0,6% na margem – nosso número para a indústria ainda é preliminar, à espera da divulgação dos resultados do setor automobilístico pela Anfavea, esta semana. E recalculamos a estimativa do PIB de 2021 para 4,6%, porque com a revisão do PIB de 2020 pelo IBGE (de -4,1% para -3,9%), o sarrafo ficou mais alto. Especialmente para o agro, com uma revisão que ninguém tinha no radar, de 2% para 3,8%, e a crise climática este ano.

Então, chamaria a atual conjuntura mais de estagnação mesmo. Já estimávamos um cenário assim para o ano. O primeiro trimestre surpreendeu, é fato, mas o segundo e terceiro, não. Por quê? Porque é normal dada a forma de recuperação do ano passado para cá, por conta dos auxílios, dos estímulos monetários e fiscais. E ao mesmo tempo com muita inflação, no mundo e aqui. Como nosso cobertor é mais curto, tivemos que cortar estímulos mais cedo. E o problema inflacionário no Brasil é muito mais sério do que nos países desenvolvidos, que não têm memória inflacionária. Para completar, nossas confusões domésticas ainda amplificaram o choque externo. Então, no campo fiscal não teríamos comparação com os países desenvolvidos mesmo, o monetário teve que mudar de direção, então tivemos que desacelerar mais. A pergunta é: será que poderíamos ter crescido um pouco no terceiro trimestre? Eu diria que sim, pois ainda há muitas atividades em recuperação. Mas, infelizmente, as confusões domésticas que mencionei, e que começaram lá na época da aprovação da PEC Emergencial, se intensificaram ao longo de 2021. Nosso risco tem ficado sistematicamente acima da média dos emergentes, isso leva a um câmbio mais depreciado, amplifica-se o choque negativo.

Agora vemos uma nova rodada de aumento de risco relativo, com o sinal de que o mundo passará a não nos ajudar como antes, com o FED sinalizando uma subida até mais rápida de juros no ano que vem. Então, o que esperar? Exatamente essa desaceleração, com cara de estagnação. A gente só não está com números negativos fortes porque ainda estamos normalizando a economia. E, além das questões conjunturais, ainda temos as estruturais. Vale lembrar que nosso crescimento de 2019 foi revisto para baixo pelo IBGE, para 1,2%, e a média de 2017-19 foi de só 0,5%.

Também é prematuro falar de recessão para 2022?

O que vemos para o ano que vem é uma recessão do PIB cíclico (que leva em conta apenas os setores diretamente relacionados ao cíclico econômico – o que exclui setores como agropecuária, indústria extrativa, serviços imobiliários e da administração pública, que não são diretamente afetados por alterações na Selic). O agronegócio deve ir bem, os serviços públicos devem normalizar, porque estão defasados em relação ao nível pré-pandemia, e algumas atividades de outros serviços ainda podem normalizar – toda a parte de saúde privada, por exemplo. Esses 30% de atividades que não estão muito relacionadas ao ciclo devem gerar uma contribuição de 1 ponto percentual para o PIB de 2022. Mas, nos setores que dependem de política monetária, deveremos observar um freio: a indústria deve contrair. A construção até agora cresceu muito porque houve choque de juros. Mas já vemos a intermediação financeira com desempenho negativo, devido à piora da perspectiva para o crédito. No ano que vem, a construção deverá estagnar também. A absorção de máquinas e equipamentos também deve ceder bastante, porque já não há mais aquele boom da demanda, e provavelmente não tenhamos necessidade de uma grande expansão. Com os juros pressionado, só o cenário de commodities é que ajuda e segura o investimento.  E o consumo deve crescer pouco. Com tudo isso, estimamos um PIB ainda positivo no ano que vem. Mas nosso PIB deveria ser de 3%, e cresceremos abaixo de 1%.

A aprovação da PEC dos Precatórios traz a oficialização do furo de teto; por outro lado, ajuda a aclarar a situação para 2022. Como esses fatores pesarão na balança do mercado?

Pode acontecer o mesmo que em abril deste ano (depois da aprovação do Orçamento de 2021). Havia tido uma piora muito grande do risco país. Quando se chegou a uma solução, mas que ainda não é boa, recua-se um pouco na má avaliação, porque os riscos estão mais bem precificados, mas o risco permanece em patamar alto, pois o estrago já está feito. Hoje a situação ainda é pior porque se está sinalizando uma mudança de regra do teto, e não temos o orçamento aprovado. Ou seja, ainda há margem para surpresas.

O arranjo que se fez para aprovar o Auxílio Brasil – que não aponta a origem dos recursos para financiá-lo de forma permanente – mostra que, na hora em que o sapato aperta, ao invés de tratar do calo, mudamos o sapato. Quando os gastos não cabem na regra, muda-se o entendimento da regra, quando o ideal era ao menos que se buscasse uma compensação, se reduzisse emenda. O problema não é o gasto social em si, mas colocar um baixo custo nessas mudanças, em um orçamento já tão capturado. Esse hábito de buscar soluções fáceis para problemas difíceis nos faz viver contínuas minicrises fiscais. Apesar da foto fiscal deste ano ser boa, o filme é ruim. Para este ano estimamos um déficit primário consolidado de 0,3%, mas no ano que vem a projeção de que seja acima de 1% – pode chegar a 1,5%, dependendo da situação. Teremos uma economia mais ativa em serviços, que arrecadam menos, com mais informalidade, que arrecada menos. Por outro lado, as commodities não devem registrar o boom que vimos este ano. Com isso, o resultado será déficit maior, crescimento menor e juros reais maiores. A dívida pública, que este ano deverá ficar próxima de 80% do PIB, pode superar os 86% em 2022. Insisto: não estou dizendo com isso que não podemos aumentar gastos que sejam necessários. O problema é como fazer.

Como avalia que estará o humor do eleitor no ano que vem? Existe espaço para recuperação da renda – posto a inflação alta e o fato de que a maior geração de vagas de trabalho verificada se dá na informalidade?

A normalização da economia está assim: consegue-se emprego, mas a renda não cresce. O Auxílio Brasil ajuda, mas inflação alta e incerteza econômica afetam a criação de vagas formais de trabalho. Também afetam muito o crédito, as condições de geração de renda. Por isso, acho que haverá um mau humor muito grande, talvez não da faixa de extrema pobreza dos beneficiários do Auxílio Brasil, mas entre a grande parcela de pessoas que não são beneficiárias dessa transferência, e dependem da renda obtida com uma condição precária de trabalho. Nesse sentido, não consigo ver um cenário positivo à frente. Um crescimento do PIB impulsionado pelo agronegócio, pela indústria extrativa, pelos serviços públicos é pouco gerador de empregos. Os setores intensivos em emprego são serviços, indústria, construção. Talvez por isso vejamos hoje um aumento dos conta própria. Não são empresas contratando, mas pessoas buscando uma solução para suas vidas. E esse quadro não deve mudar no ano que vem.

 


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