“Diante de um mundo com pressão fiscal, investir na adaptação das cidades às mudanças climáticas é a melhor decisão”

Luciana Costa, diretora de Infraestrutura, Transição Energética e Mudança Climática do BNDES

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

A entrevista da edição de junho da revista Conjuntura Econômica é com Luciana Costa, diretora de Infraestrutura, Transição Energética e Mudança Climática do BNDES. Ela conta sobre a demanda de infraestrutura do país e o posicionamento do banco na agenda da transição energética que também é intensiva em financiamento. A tragédia climática no Rio Grande do Sul diz, Costa, deverá implicar um aumento dos desembolsos previstos para 2024. “O Brasil é altamente vulnerável, e a tendência é de que muito mais catástrofes aconteçam”, afirma, defendendo políticas de mitigação. A seguir, os principais trechos dessa conversa:

Recentemente, você declarou que o Brasil chega à transição energética global com metade da infraestrutura que deveria ter. Quais áreas com maior atraso o banco visa priorizar para financiamento?

Um dos setores de infraestrutura com um gap muito grande é o saneamento. Imagine, o Brasil é um entre três países no mundo que conseguem certificar uma aeronave comercial – além de Estados Unidos e França –, mas ainda não conseguiu universalizar os serviços de água e esgoto. Ainda temos mais de 35 milhões de pessoas sem água potável, por exemplo. Estimamos que, para universalizar a cobertura desse serviço, o Brasil precisará em torno de R$ 800 bilhões. Também temos um importante gap de investimentos em transporte e logística; veremos muito investimento em rodovia daqui para a frente. Já em energia, esse gap é menor. O Brasil tem um sistema elétrico sofisticado, com uma regulação mais madura. Cerca de 55% da nossa geração vêm de hidrelétricas, temos um grid com 88% de renováveis e firme, que nos permite entregar energia a um custo muito competitivo em qualquer lugar do país. Nosso próximo passo seria produzir hidrogênio verde e produtos com alto conteúdo energético e baixo conteúdo de carbono: por exemplo, produzir aço verde, fertilizante verde, química verde para exportar. Mas precisaremos infraestrutura logística preparada para isso. Outra área em que o Brasil também não investe o necessário é em mobilidade urbana. Há muito a fazer.

No caso do saneamento, artigo de economistas do BNDES na Conjuntura Econômica demonstra certa concentração de financiamento em poucas companhias e a necessidade de ampliar a participação das demais, visando cumprir a meta de universalização. Como o banco tem lidado com esse tema?

Saneamento é uma área muito cara para o BNDES, e o banco está atento para tentar ampliar um pouco essa carteira para outras empresas e ajudar nesse processo de universalização porque, como mencionei, a demanda por financiamento é grande. Já estruturamos grandes transações no setor. Considerando todas as fontes – contratos de financiamento e debêntures –, o BNDES desembolsou cerca de R$ 2,3 bilhões entre 2018 e 2021 para o saneamento; em 2022, os desembolsos somaram R$ 1,1 bilhão e, em 2023, foram mais de R$ 9,3 bilhões. As empresas privadas ainda têm mais acesso ao financiamento do que as públicas, mas também estamos focando estas últimas. No BNDES a gente se pauta pelo pragmatismo: seja empresa pública ou privada, se é eficiente e contribui para a universalização do serviço de água e saneamento, vamos apoiar.

O novo marco do saneamento foi importante para o setor, mas não resolverá sozinho o problema do financiamento. A grande vantagem do BNDES é operar com linhas de longo prazo, que podem superar 30 anos. Mercado de capitais e bancos privados não têm essa oferta, e essa necessária ampliação de cobertura, além de muito intensiva em capital, precisa de fonte de longo prazo. No ano passado, as duas principais debêntures de infraestrutura de que o banco participou foram no setor de saneamento. Mesmo com esse esforço, entretanto, acho difícil conseguir universalizar o saneamento até 2033, como previsto no marco legal. Hoje, uma de nossas preocupações é que há empresas do setor privado que estão atingindo um índice de alavancagem muito alto, porque têm muito Capex para fazer, então gostaríamos de atrair mais players, porque é preciso muito balanço. Independentemente de ser pública ou privada, o ideal é a gente não ver uma empresa muito alavancada, atingindo o limite de estresse financeiro. Se isso acontece, ela terá mais dificuldade de acesso a financiamento para realizar seus investimentos.

Hoje vemos a chegada de carros elétricos chineses, projetos de eletrificação de frotas de ônibus. Qual avalia ser a melhor estratégia para o Brasil nesse campo, levando em conta as vantagens comparativas que o país tem em tecnologia híbrida para carros de passeio, graças ao etanol, e em alternativas como biodiesel e biometano, por exemplo?

No caso do transporte coletivo, o Brasil tem mais de 100 mil ônibus rodando nos centros urbanos. O país conta com uma indústria que produz ônibus, e mais de 50% dessa produção são exportados para outros países da América Latina. Nesse campo, o desafio brasileiro é ser capaz de produzir ônibus elétricos, para então fazer a substituição dessa grande frota. Nem todos os ônibus poderão ser substituídos por elétricos, pois isso demanda certa infraestrutura, como construir subestações, garantir um reforço nas linhas de distribuição. Imagine uma garagem com 200 ônibus estacionados à noite, conectados à rede elétrica, carregando baterias. É uma carga grande.

No BNDES, estamos de fato apostando no ônibus elétrico, verificando qual o nosso gargalo de produção. Consideramos que é uma rota de descarbonização clara e fácil. Mais de 40% da poluição dos grandes centros urbanos vêm do transporte, e os ônibus contribuem muito para isso.  Trata-se, entretanto, de um cenário em que o Capex de fato aumenta bastante. Em contrapartida, o Opex, ou seja, o custo de operação e manutenção, é muito menor. A conta que se faz é que se trata de um investimento que se paga em 15 anos. A questão é esse aporte inicial. Em alguns lugares do mundo, optou-se por um modelo de empresas de aluguel, em que o investidor financeiro banca esse ativo, e é remunerado por isso. Assim, o desafio da eletrificação está no modelo de financiamento. A tendência é de que não seja um modelo único, posto que há prefeituras mais ricas capazes de entrar com mais subsídios, e outras que não terão essa capacidade para mudar seu transporte urbano.

Outro desafio é quanto ao desenho dos modais, pois também nos interessa o investimento em meios de média e alta capacidade: VLTs, BRTs e metrô. Por isso, contratamos um estudo de pré-viabilidade que abrange 21 centros urbanos do Brasil com mais de 1 milhão de habitantes. Para se ter uma ideia, só esse estudo custa quase R$ 30 milhões. Esse desenho dos sistemas urbanos de transporte nos permitirá mapear fluxos e rotas, e com isso esperamos destravar alguns investimentos também em modais de média e alta capacidade.

Ainda quanto aos debates sobre a melhor estratégia para o Brasil nessa agenda da transição energética, há também a questão da expansão da geração. Por um lado, a preocupação de se optar por uma estratégia orientada pela oferta, com riscos de desequilíbrios que encareçam a conta para o consumidor (mais sobre o tema na matéria de capa da Conjuntura de maio). Por outro, há especialistas críticos quanto aos planos de exploração da geração eólica offshore e do hidrogênio verde, que demandam muito investimento. Como o banco avalia esse debate?

O mundo precisa substituir combustível fóssil numa velocidade que a gente não está conseguindo alcançar. Cientistas destacam o aumento da temperatura dos oceanos nos últimos dois anos, muito acima da média histórica. Isso pode significar que os modelos que estão sendo usados para prever o aquecimento global já não se aplicam, pois não abrangem todas as variáveis, e talvez o mundo esteja numa situação pior do que a gente achava, e que já era grave.

No Brasil, 18% das emissões de gases do efeito estufa vêm do setor energético; no resto do mundo, a média é 75%. Temos essa matriz limpa, mas ainda precisamos olhar para as indústrias, para o transporte de longa distância, para os fertilizantes que usamos. Para fabricar aço, não dá para ligar um alto-forno na tomada. É preciso molécula, com muito joule, para substituir o gás. Por isso, acredito na rota do hidrogênio verde. É mais caro hoje, mas isso não é uma verdade absoluta. Já aprendemos que algumas tecnologias, quando escaladas, têm seu preço reduzido rapidamente. E, no Brasil, temos os melhores fatores de capacidade, por exemplo, para explorar a geração offshore.

Quanto à questão do preço da energia para os consumidores, a eletricidade chega mais cara por conta de subsídios errados que teremos que corrigir. Mas isso é um problema conjuntural, pois partimos de um sistema muito sofisticado e testado. Quando se trata da expansão desse sistema, como disse, não acho que temos que escolher necessariamente uma só rota. Temos mais de US$ 30 bilhões em projetos de hidrogênio verde no pipeline, e estou muito otimista quanto ao nosso potencial de fabricar fertilizantes de baixo carbono. Hoje 95% de nosso fertilizante nitrogenado é importado de países como Rússia, Bielorrússia e Ucrânia, e um terço do custo dessa importação é logístico. Então, mesmo que a princípio o hidrogênio verde seja mais caro que o cinza, ainda temos uma margem importante para compensar, reduzindo esse custo com transporte.

De que forma o impacto com as enchentes no Rio Grande do Sul tem influenciado o planejamento do banco? Algo mudou?

Montamos um posto avançado em Porto Alegre para apresentar soluções de crédito e garantias para empresários e produtores rurais restabelecerem seus negócios. Sabemos que, depois da emergência, tem todo o desafio de reconstrução – do aeroporto, de estradas, linhas de transmissão, entre outros. Inicialmente, nossas projeções eram de ampliar os desembolsos em cerca de 20% em 2024, mas talvez esse percentual seja um pouco maior em função dessa demanda no Rio Grande do Sul.

(Até o fechamento desta edição, o BNDES tinha anunciado a disponibilização de R$ 15 bilhões em recursos do Fundo Social do Pré-Sal para regiões do estado que tiveram estado de calamidade decretado pelo governo federal; a suspensão completa de pagamentos de financiamentos para clientes de cidades atingidas pelo desastre por 12 meses, bem como alongamento de financiamento pelo mesmo prazo, o que pode beneficiar 227 mil contratos, que somam R$ 7,7 bilhões; e disponibilizou R$ 500 milhões em garantias para novos financiamentos para micro, pequenas e médias empresas via FGI-PEAC.)

O que aconteceu no Sul pode acontecer em outros grandes centros brasileiros, como em São Paulo. Já não é um bode na sala; é um rinoceronte, pois a temperatura dos oceanos afeta a umidade do ar, a incidência de chuvas. O Brasil possui vantagens comparativas como nenhuma outra grande economia, mas também temos que considerar que países tropicais estão muito mais expostos a catástrofes. Mas também é altamente vulnerável; o que acontece no Cerrado, por exemplo, vai afetar nosso setor elétrico, nossa produção agropecuária. E a tendência é de que muito mais catástrofes aconteçam.

Estamos diante de um mundo inflacionário, com pressão fiscal, no qual investir na adaptação das cidades é a melhor decisão que pode ser tomada – cálculos apontam uma relação de US$ 10 a US$ 12 para cada dólar investido. O caso do Rio Grande do Sul é exemplo, quando se observa que a manutenção de comportas poderia ter reduzido o impacto das chuvas. Mitigação é também uma política feita no longo prazo. Precisamos de estudos atualizados de adaptação e resiliência, para encontrarmos a melhor equação.

Leia a íntegra desta entrevista na Conjuntura Econômica de junho.

 

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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