“Debate sobre o ICMS das blue chips pode incentivar a unificação de impostos”

Marco Aurélio Cardoso, secretário de Fazenda do Rio Grande do Sul

Por Solange Monteiro, do Rio de janeiro

Os estados brasileiros devem fechar o ano com um resultado de receita melhor que o estimado em seus orçamentos. Qual a posição do Rio Grande do Sul?

Houve elementos similares em parte. Devemos terminar o ano com um crescimento de ICMS perto de 20%, mas em desaceleração. Até setembro, esse crescimento foi de 25%, e o que temos verificado nos últimos dois meses é a redução desse ritmo de crescimento. Em novembro, por exemplo, o crescimento real será de praticamente zero em relação a novembro do ano passado e idêntico à inflação, de 10%.

Identifica algum efeito estrutural nesse resultado?

Identificamos uma recomposição estrutural em relação ao ambiente pré-pandemia. Há um componente inflacionário acumulado enorme – muitos insumos industriais, combustíveis, energia. Esses preços vão voltar? Se voltarem, de alguma forma a arrecadação cai. Em nosso caso, temos um efeito diferencial que é a volta do recolhimento de ICMS de energia elétrica, com a privatização da CEE Distribuidora (o leilão, realizado em março, foi vencido pelo Grupo Equatorial, com uma oferta de R$ 100 mil mais a absorção de um passivo que em ICMS superou R$ 4 bilhões), cujo controle foi transferido em julho e desde então esse ICMS tem sido pago. É um ganho de mais de R$ 1 bilhão de ICMS ao ano que passamos a ter não por movimento econômico, mas que de qualquer forma se incorporou à nossa base. O restante vai depender muito como ficarão esses preços, se haverá recuperação. E da economia.

Em entrevista anterior para o Blog da Conjuntura Econômica, o senhor mencionou que os principais desafios para este ano estavam exatamente na agenda de privatizações e na adesão do estado ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF). Qual o balanço de ambas as agendas?

A agenda de privatizações caminhou bastante. Fizemos três leilões, dos quatro que tínhamos programado: a distribuidora e a transmissora de energia já foram efetivamente privatizadas, com a transferência para as novas empresas. E a da distribuidora de gás Sulgás está no processo de aprovação regulatória, com transferência de controle prevista para o ano que vem. Devemos fazer o leilão da terceira empresa da companhia de energia, a geradora, em janeiro. E essa agenda ainda cresceu este ano, com a entrada da privatização da companhia de saneamento, Corsan, que esperamos fazer em fevereiro. É uma área à qual o governo tem se dedicado bastante, e os resultados são bons. Nenhum outro estado realizou uma venda de controle como essa, em um ano.

Em relação ao regime de recuperação fiscal, esse dependeu mais do cronograma federal, mas esperamos pedir a adesão ao RRF ainda este mês, com a aprovação do teto de gastos, a última lei obrigatória que faltava aprovar. (o teto aprovado pelo estado prevê que as despesas primárias fiquem limitadas à variação do IPCA. Os limites são individualizados por poder e órgão autônomo, com vigência até 2031. A partir do quarto ano após o pedido de adesão ao RRF, os limites e base de cálculo podem ser alterados para incluir despesas de investimentos e inversões financeiras)

Há alguma preocupação em entrar no projeto de recuperação fiscal no último ano de governo?

As principais reformas já foram feitas no primeiro ano: aprovação das privatizações, reforma da Previdência – com a qual já economizamos mais de R$ 2 bilhões – e administrativa, esta última, na virada para 2020. É fundamental, e natural, que as reformas politicamente mais complexas para a sociedade sejam apresentadas no início de governo. Este ano aprovamos a reforma da Previdênciados militares, e com isso acho que somos o único estado que tem alíquotas iguais a militares e civis. Temos teto de gastos, aprovou-se privatização da Corsan. O teto tem importância porque estamos encerrando este ano com as despesas correntes naturais (folha, 13º, fornecedores) sem passivos. Se faltou algo, foi por questões administrativas, não financeiras. O que é importante? Que negociemos o longo prazo, e o principal longo prazo são dívidas com a União. É preciso renegociar, sair da liminar. E garantir transição em que a gente gere superávit primário capaz de pagar a parcela cheia da União. Pois, sem a dívida com a União, hoje estamos equilibrados.

Acho que é de se notar que governo tem conseguido manter sua base e fazer reformas estruturantes todo o tempo, mesmo em meio à pandemia. Entrar no regime agora, para nós, é de certa forma coroar o ciclo de reformas.

O orçamento de 2022 prevê reajuste para servidores?

Colocamos tudo que o estado já autorizou em pessoal. A gente incluiu a contratação de professores, além de gastos como com o programa Avançar, de recuperação da educação, segurança, investimentos em estradas com recursos da privatização. A única decisão tomada sobre aumento é em relação ao magistério, até porque vai ter reajuste do piso nacional - aguardamos para ver como esse debate se conclui para enviar um projeto de lei. Em relação a reajuste de outras carreiras, ainda não há compromisso. Sabemos da expectativa dos servidores, mas prioridade é saber quanto vai custar a conta do reajuste professores e depois avaliar outra questão que possa surgir.

Não queremos fazer algo que se pague somente em 2022. Porque nosso principal problema não é 2022, pois temos com resultado da arrecadação e recursos das privatizações. O desafio é olhar para o estado no médio prazo. Já anunciamos R$ 4 bilhões em investimento porque temos essa receita assegurada com a privatização. Mas esse fôlego de caixa não pode servir para lastrear uma promessa salarial que seja paga ano que vem, e depois não. O estado já fez isso algumas vezes, e acho que as pessoas sabem onde isso deu.

Na conversa do início deste ano, o senhor também mencionou que seria importante, que os estados contassem com o apoio da aprovação da PEC Emergencial e das reformas tributária e administrativa. Apenas a primeira andou. Avalia que o texto aprovado poderá gerar o apoio necessário para se acionar gatilhos quando a situação fiscal se agrava?

Acho que vivemos um ano em que o ruído político superou as reformas. A origem disso não vem ao caso, mas o fato é esse. Houve avanço na regulamentação do marco do saneamento, mas as reformas mencionadas não andaram. Nesses temas, o que houve foram propostas desconexas. Sobre a PEC Emergencial, este ano, na prática, as condições não levaram à necessidade de aplicação de restrições. Mesmo para nós, que em anos anteriores tivemos despesa superior a 100% da receita, este ano estamos abaixo de 90%. Então, a PEC ainda não foi testada. Muitas vezes vemos a judicialização de temas entre estados e a União, especialmente relacionados a estrutura de contratos, contragarantias, muitas vezes a favor dos estados. O futuro ainda dirá.

O risco que vejo é que a gente entrou em 2019 com a consciência de que boa parte dos estados estava sistemicamente quebrada. O tema de ajuste fiscal estava muito forte. E ainda temos os principais PIBs do país bastante endividados; ainda há muitos precatórios em aberto, contingências bilionárias não resolvidas. O ambiente pré-eleitoral, com esse breve refresco de caixa é muito crítico. Espero que não vejamos uma reversão de um esforço feito. Não creio que estruturalmente os estados tenham de fato recursos para saírem comprometendo muitas despesas correntes. O ambiente de cuidado que havia era importante para manter certa vigília.

Quais os principais desafios para o Rio Grande do Sul perseverar no caminho do ajuste e equilíbrio fiscal a partir de 2023?

Acho que tem duas questões principais. A primeira não é específica do Rio Grande do Sul, mas de questões do federalismo brasileiro que deveriam ser revistas. Especialmente as tomadas de decisão do Congresso Nacional que implicam despesas para estados e municípios. Vemos que, quando vai mexer num gasto federal, o Congresso tem que observar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), mas o mesmo não acontece para quando o aumento de gastos é para estados e municípios. Atualmente temos a questão do projeto de lei sobre o ICMS dos combustíveis (PLP 11/20, aprovado na Câmara, aguardando apreciação no Senado, com impacto para os estados estimado em R$ 24 bilhões). O Congresso aprovou o novo regime do Fundeb que, dependendo da forma como se interprete, incorre em duas a três folhas salariais a mais por ano. Temos discussões de piso nacional – por exemplo, agora avançou o da enfermagem – que independentemente da valorização das categorias, são pagos pelos estados e municípios e decididas no Congresso Nacional, muitas vezes em categorias em que a União nem é propriamente afetada. E ainda temos a discussão no STF sobre o ICMS de energia e comunicação de não ter uma alíquota acima da geral, que também é uma causa de R$ 2 bilhões para o Rio Grande do Sul.  Estão, temos construído um horizonte de equilíbrio, mas quase toda semana é novidades com risco de impactar esse caminho. Cria-se uma insegurança muito grande para o futuro do estado.

A segunda questão é que a grande despesa do estado ainda é se concentra na área de pessoal. Isso não é um julgamento sobre os servidores, mas o fato é que o estado acumulou ao longo de muito tempo uma estrutura administrativa e previdenciária que demanda uma carga tributária que a sociedade não quer pagar. Então, o desafio é esse equilíbrio entre o avanço de remuneração para servidores que seja legítimo, e como isso cabe dentro de uma trajetória econômica que não inclua aumento de alíquota, de imposto.

Esses são os principais fatores. Veja, o país está numa sequência de crescimento econômico muito baixo há sete, oito anos. Se continuar crescendo 1%, 0,5% ao ano, isso sempre vai criar pressão para os estados. O que considero fundamental – não para o ano que vem, mas para 2023 –, é a reforma tributária. Fica cada vez mais claro que o ICMS acabou se transformando em um imposto muito concentrado nas blue chips (energia, Telecom e combustíveis) e na importação. Se somarmos a arrecadação desses três setores com a de importação, provavelmente supera 60% do ICMS na maior parte dos estados. A partir do momento em que há julgamento de que o ICMS das blue chips que foi majorado, qualquer alteração vai gerar um impacto bilionário. Talvez essa situação incentive a discussão sobre uma reforma que substitua o ICMS, coma criação de um imposto único. Pois qualquer avanço na revisão dessas alíquotas – fazer um corte de 40%, 50% no imposto que representa de 30% a 40% da arrecadação – é um efeito que estado nenhum, nem com reforma, vai segurar.

 


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