"Contexto que favoreceu o desempenho de algumas empresas durante a pandemia não é sustentável"

Carlos Antonio Rocca, coordenador do Centro de Estudos de Mercado de Capitais (Cemec-Fipe)

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Levantamento feito pela Cemec-Fipe indica que no ano terminado no primeiro trimestre de 2021 as empresas de capital aberto no Brasil registraram a maior margem de lucro bruto desde 2009. A que se deve esse resultado, levando em conta a pandemia e consequências como um descompasso nas cadeias produtivas, gerando problemas de abastecimento de insumos e pressão de preços que ainda preocupam empresários em vários segmentos, como apontam as Sondagens do FGV IBRE?

Quanto ao desempenho das empresas abertas nesse período, observa-se aumento de margens, de geração de caixa, e também em termos de resultados finais. À primeira vista, realmente diria que é surpreendente, em ano de crise, resultados como esses. Mas, ao analisar a consolidação das demonstrações financeiras das empresas abertas não-financeiras do primeiro trimestre deste ano, identificamos as origens desse resultado. No caso do aumento da margem de lucro bruto - que é a diferença entre a receita líquida e o custo dos produtos vendidos - aconteceu que, juntamente com o choque da pandemia, tivemos um choque de preços relativos comandado, por um lado, pela taxa de câmbio. É importante chamar a atenção que a taxa de câmbio do final de março, pela qual foi avaliado o resultado das empresas, era de R$ 5,70, uma das mais elevadas. Então, foi um contexto de aumento da taxa de câmbio, e também de aumento forte dos preços internacionais de venda de vários insumos.  E esse ciclo de aceleração inflacionária que se deu a partir do último trimestre de 2020  não foi acompanhado pelo aumento de uma série de custos, de um conjunto de serviços em cuja base está essencialmente o custo de mão de obra, o que permitiu a ampliação de margens nesse período.

Por outro lado, essas empresas analisadas tradicionalmente têm um nível de governança mais alto do que a média das empresas. Elas tipicamente são grandes - cerca de 2/3 das abertas tem mais de R$ 300 milhões de faturamento anual - e têm acesso a mercado de capitais. Tudo isso cria, além de uma gestão de maior qualidade,  uma série de vantagens competitivas em relação às demais empresas. Então, esse grupo em geral tem tido um desempenho melhor, o que não foi diferente na pandemia. Muitas já tinham avançado em termos de digitalização de suas operações, por exemplo. Isso acabou acentuando as diferenças.

Resultados surpreendentes entre empresas de capital aberto
lucro bruto das empresas da amostra (sem Petrobras, Eletrobras e Vale), em % da receita operacional líquida (ROL)


Fonte: Demonstrativos financeiros de empresas da amostra Cemec/Fipe.

O endividamento das empresas também aumentou nesse período, correto?

No total das empresas, a dívida bruta chegou próxima dos 60% do PIB. Na série que trabalhamos na Cemec, é o maior nível pelo menos desde 2000. Aqui, vários pontos chamam a atenção. O primeiro é que uma parcela grande desse aumento de dívida está associada a um aumento do valor em reais da dívida em moeda estrangeira - vale lembrar que ela está sendo avaliada com o dólar a R$ 5,70 do dia 31 de março. Outra observação é que parcela desse aumento da dívida externa em reais se refere a empréstimos intercompanhias, sejam multinacionais instaladas no Brasil que devem a matrizes no exterior, ou empresas brasileiras que devem para suas controladas no exterior. Isso é positivo, pois essas operações tendem a garantir mais flexibilidade. Outro componente positivo, do ponto de vista de resultados, foi o conjunto de medidas emergenciais adotadas pelo governo, associado à queda da taxa de juros e dos custos de dívida, reduzindo as despesas fianceiras dessas empresas. Então você somou, do ponto de vista agregado, um aumento de margens operacionais de um lado, redução de custos financeiros de outro, e os resultados finais acabaram sendo muito positivos.

Talvez a mais importante observação sobre essa questão da dívida bruta é de que, nesse período, as empresas acumularam uma disponibilidade extraordinária. Enquanto entre março de 2020 e março 2021 a dívida bruta aumentou mais de R$ 600 bilhões, a disponibilidade das empresas aumentou quase R$ 500 bi. Com isso, a dívida liquida subiu pouco - só 1,3%, enquanto a dívida bruta tinha subido em torno de 12%. E como acumularam um disponível desse tamanho? Primeiramente, as empresas aumentaram a captação líquida de recursos. Essa captação foi a mais elevada dos últimos anos. Isso aconteceu basicamente devido ao conjunto de medidas emergenciais adotadas pelo BC em meados de março, o que implicou aumento grande da oferta de recursos de crédito. Isso facilitou a renegociação de dívidas - as repactuações ao longo de 2020 chegaram a quase R$ 1 trilhão -, e uma série de amortizações deixaram de acontecer. O segundo componente, que aparece até nas contas naiconais, foi uma redução dramática de estoques, devido á desorganização da cadeia de oferta junto a uma recuperação da demanda mais forte que a esperada. Quando se reduz estoque, ele é vendido e gera caixa. Então houve medida emergencial, aumento das margens, redução de estoques, e tomou-se mais dinheiro no mercado. E tem mais um componente: a lógica financeira ajudou, no sentido de que houve redução forte no custo de dívida em todas as fontes, seja crédito bancário, seja mercado de capitais. Então houve forte redução do custo de capital. E constatamos, pelo menos nas empresas abertas, que aumentou a proporção das empresas em que o custo líquido de dívida passou a ser inferior à taxa de retorno. Isso passou a acontecer em quase 2/3 das empresas. Então, com isso tudo, as empresas conseguiram fazer uma acumulação grande de caixa, e o chamado do custo do disponível, que é o custo de você manter caixa, reduziu drasticamente.

Em sua análise, o senhor aponta que esse desempenho favorável não foi homogêneo. O que ocorreu?

Exato. Em um exercício, organizamos as empresas por decil de aumento de vendas, como uma medida de tamanho do impacto da pandemia. No primeiro decil ficaram as 10% que cresceram mais, e no último, as que caíram mais. No primeiro decil, as vendas cresceram algo como 75% nos 12 meses terminados em março deste ano sobre os 12 meses anteriores. No último decil, teve empresas que registraram queda de 67% nas vendas. E isso é mediana. É uma diferenciação dramática de impacto - e estou falando das empresas abertas. Entre essas, diga-se de passagem, há vários setores subrepresentados porque tem muito poucas abertas. Agropecuário e um exemplo, bem como a parte de serviços: a massa do varejo de menor escala, bares, restaurantes, hotéis. Se incorporados,  ampliaria ainda mais a diferenciação. O fato é que, mesmo assim, identificamos uma enorme diferenciação. O último decil, que sofreu mais - onde devem estar atividades como de transporte e outras relacionadas a lazer e turismo -, tem sérios problemas de liquidez, com uma relação dívida sobre geração de caixa acima de 10. Isso implica dificuldades até de continuidade do negócio.

Mas as disparidades são grandes
situação de empresas de capital aberto, divididas por decis por resultados de vendas, em ordem decrescente


Fonte: Demonstrativos financeiros de empresas da amostra Cemec/Fipe.

Qual a sustentabilidade desse aumento de margens entre os setores e empresas que se desempenharam bem até aqui?

Há uma série de componentes que não têm sustentação. No caso da margem, vamos admitir que houve um aumento desproporcional de preços, e que outros componentes serão reajustados em relação à inflação passada. Na medida em que o tempo passa, isso vai se incorporando nos salários. Tem categorias importantes que terão reajustes salariais durante o segundo semestre, por exemplo. Então, os  custos tendem a subir. Um segundo ponto é a tendência de um câmbio mais baixo que os R$ 5,70 verificados no fechamento do primeiro trimestre, e aí os preços de venda correlacionados ao câmbio passam a ter uma avaliação menor. Os juros, por sua vez, estão subindo. A inadimplência também já começou a subir, pouco ainda, mas poderá fazê-lo com mais intensidade daqui adiante. Há várias razões para isso. A postergação de impostos e a renegociação de dívida um dia vencem - parte já começou a vencer em abril. 

Tudo isso computado indica que a fotografia que tiramos em março, que sinaliza uma situação muito favorável para algumas empresas, vai mudar. No caso da disponibilidade de recurso, o que as empresas farão com o dinheiro? Em caráter permanente, não interessa manter um disponível desproporcional, pois não se consegue tirar uma taxa de retorno compatível com a taxa de empréstimo. Na medida a cadeia de oferta for se regularizando, isso virará estoque. Provavelmente, ao longo do ano esse conjunto de resultados que mencionamos tenderão a voltar a padrões mais próximos das médias históricas. Não dá para achar que ficará assim para sempre. Foi resultado de um processo de choques e desequilíbrios que momentaneamente favoreceu as empresas. Algo parecido com o que ocorreu agora com o défict público. A inflação ajudou enormemente as contas públicas, as estimativas para a relação dívida/PIB caíram para bem abaixo do esperado. Mas resolveu os problemas fiscais do Brasil? certamente que não. Do ponto de vista do médio prazo, são um ponto fora da curva.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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