Agravamento da pandemia deve adiar o ajuste fiscal, mas não tirá-lo do foco, defendem economistas em webinar

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

A combinação de vacinação lenta com descontrole do contágio tem apontado que a demanda por gastos em 2021 para saúde e contenção dos efeitos econômicos do isolamento deverá ser maior do que o que se estimava. Isso demandará que governo e Congresso cheguem a arranjos para um gasto mais eficiente, e não dispendem medidas que visem ao equilíbrio fiscal mais adiante. Assim sinalizaram os economistas participantes do webinar Os Caminhos da Política Fiscal, promovido dia 18 de março pelo FGV IBRE em parceria com o Estado de S. Paulo, moderado pela repórter especial e colunista do jornal Adriana Fernandes.

“A impressão que eu tenho do cenário que estamos vivendo é de que há que refazer tudo que fez no primeiro ano, em maior ou menor grau”, resumiu o pesquisador associado do FGV IBRE Manoel Pires, lembrando que, além da nova rodada de quatro meses do auxílio emergencial, que poderá ser insuficiente, ainda será preciso contemplar outras iniciativas de apoio a empresas, como algum tipo de suporte de crédito público e de redução de jornada de trabalho. “É muito difícil fazer um ajuste fiscal de curtíssimo prazo, da ordem de grandeza, que se precisa.  A ideia correta, a meu ver, é distribuir isso no tempo. ”

Em sua exposição, Pires apresentou os lados meio cheio e meio vazio desse copo de uma nova rodada de aumento de gasto público – que pode ser realizada, em última instância, com o acionamento de um novo estado de calamidade. No lado menos negativo, ele recordou levantamento publicado no Observatório de Política Fiscal do FGV IBRE que aponta que boa parte da piora do déficit público em 2020 decorreu de operações temporárias, que não implicam uma deterioração muito grande do resultado primário recorrente. Observado pela métrica recorrente, diz, os R$ 743 bilhões de déficit primário registrados em 2020, ou 10,3% do PIB, caem para R$ 168,3 bilhões, ou 2,27% do PIB. Sob esse aspecto, o aumento registrado é de 0,10 p.p. em relação a 2019, devido à piora da condição cíclica da economia, reduzindo a arrecadação do governo. “Vínhamos em uma trajetória positiva, que em 2019 permitiu que a dívida pública caísse 1 ponto do PIB, primeira redução de 2014”, acrescenta Pires, destacando, entretanto, que essa melhora do quadro também se deveu a medidas não-recorrentes como antecipações de pagamentos do BNDES que ajudaram a abater a dívida e reduzir a taxa de juros. O que significa que, apesar de melhor, ainda era um quadro que demandava ajuste fiscal para garantir sustentabilidade à estabilização da dívida.

Do lado vazio do copo está o fato de que, mesmo que se busque maior eficiência no gasto com políticas referentes à pandemia, a tendência é de que estas sejam menos efetivas do que em 2020. “Em primeiro lugar, porque o Banco Central teve que aumentar os juros em função da aceleração da inflação, o que já altera o impacto de um estímulo fiscal. Além disso, o auxílio será recriado em um ambiente de mais inflação para a baixa renda, o que reduz seu poder de reposição”, diz. “E ainda tem o aspecto do crédito público. As empresas que pegaram crédito no primeiro momento da pandemia podem pegar crédito novamente, mas ninguém se endivida indefinidamente. Então, a gente entra numa fase de política econômica em que os trade offs serão mais difíceis de serem administrados, e a própria efetividade da política tende a ser menor. ”

Laura Carvalho, professora da FEA-USP, lembra que este ano a tendência é de reversão do desempenho econômico brasileiro em relação a 2020. “Ainda que haja um caminho de recuperação herdado do ano passado, em termos relativos o Brasil tende a desempenhar muito pior do que a economia global em 2021, ao contrário do que aconteceu em 2020”, afirma. Laura cita edição do Monitor Fiscal do FMI que apontou que, de um total de 176 países, mais de cem tinham projeções de PIB de 2020 piores que a brasileira. “Esse mesmo Monitor ainda aponta que o Brasil foi o 16º país que mais gastou em relação ao tamanho da sua economia em 176. Gastamos mais de 7% do PIB, dos quais 4,1% foram auxílio emergencial. O auxílio proporcionou um efeito estabilizador relevante, compatível com a literatura que examinava multiplicadores de benefícios sociais no Brasil antes da pandemia”, diz.

Laura também defende a possibilidade de maior endividamento este ano, minimizando os riscos fiscal e inflacionário desse aumento. “Respondemos à inflação com aperto monetário, e isso nos deveria dar mais convicção de que é possível, sim, ampliar o auxílio emergencial entre outras medidas que sejam necessárias, ainda que discutindo o desenho”, diz, lembrando que em 2020 a urgência em apoiar os mais vulneráveis para mantê-los em casa justificou problemas de foco do auxílio. “O fato é que a dívida pública vai aumentar novamente em 2021, pois é assim que financiaremos esse gasto. Não há nenhum corte de gastos de fato previsto na PEC Emergencial aprovada –tirando os 10% de redução para benefícios tributários, que pode gerar espaço imediato, e mesmo assim não sabemos de onde virá. ”

Isso não significa, ressalta Laura, descartar a busca de uma estratégia de sustentabilidade da dívida em relação ao PIB no médio prazo. Fabio Giambiagi, economista do BNDES especialista em contas públicas, considera que esse arranjo só será possível com a reconstrução da capacidade política de pactuar acordos, que para ele foi perdida na década de 2010. “O Brasil fracassou quando a política deixou de ser uma arena, um espaço para entendimentos”, diz. Para Giambiagi, o foco deveria ser posto em uma agenda para 2023, “estabelecendo princípios que possam ser base para acordos políticos sólidos e duradouros”. Dentro dessa agenda, Giambiagi defende uma reforma do teto de gastos – o economista citou sua proposta em artigo da Conjuntura Econômica –, que implique um teto móvel e redefina sua abrangência. “O teto original estabelece uma série de excepcionalidades que viraram problemáticas para a própria ideia de sustentabilidade fiscal”, defende.

Laura reforça a ideia de revisão do teto, apontando que este deveria levar em consideração trajetória da dívida e, dessa forma, levar em consideração a evolução da carga tributária. “Esses são os parâmetros que tem de ser inseridos quando o teto de gastos for determinado, e não acho que isso deve ser fixado num horizonte menor, de por exemplo quatro anos, para dar mais previsibilidade, conforme o que a dinâmica da economia e da arrecadação de impostos oferece para a estabilização da dívida”, diz. Para Laura, o atual regime fiscal não garante maior sustentabilidade no orçamento público. “Estamos numa irracionalidade completa de regras, e isso não deve estar sinalizando nada de positivo aos investidores. O fato de o orçamento de 2021 ainda não ter sido ser aprovado é o principal sintoma desse colapso das regras atuais e o impasse ao qual chegamos. ”

Pires, por sua vez, considera que as medidas que constam da PEC Emergencial aprovada estão trazendo uma nova ancoragem dentro do sistema de regras, com foco no limite de dívida. “O governo reforçou esse aspecto que já existia na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e que nunca foi regulamentado, e isso tem consequências. Quando se cria uma regra fiscal nova que passa ser a principal ancoragem do país, você reduz o papel das outras. Isso aconteceu com a LRF em relação ao sistema anterior; com o teto de gastos em relação à LRF, e acho que isso vai acontecer agora. A impressão que eu tenho é que o recado que a PEC emergencial dá é que o teto de gastos vai perder um pouco de apelo, ou essa centralidade no sistema de ancoragem. ”

No webinar, os economistas convergiram que o equilíbrio das contas públicas não poderá se limitar a ajustes pelo lado dos gastos, e que será preciso destravar as discussões em torno de um aumento de carga tributária, ainda que não imediato. “Entre 2011 e 2021 teremos tido uma redução da receita bruta do governo federal da ordem de 2% do PIB ou mais, dependendo deste ano. Não dá para pensar que todo esse ajuste virá de uma redução da relação gasto/PIB; basta olhar os números para ver que é impossível num horizonte minimamente relevante”, diz Pires. “Como me parece que seria bastante temerário elevar déficits primário até o final da década, não vejo como não envolver algum aumento de carga tributária, com uma formação a se discutir. Mas dentro dessa discussão temos que buscar os elementos que não afetem o crescimento e/ou os que colaborem para mais crescimento”, afirma.

Pires ressalta que a discussão sobre espaços fiscais possíveis se torna mais complexa sob o contexto adverso da pandemia. “É algo que envolve questões expectacionais, sobre quanto cada país consegue se endividar, a densidade de seu mercado de títulos, a profundidade do mercado financeiro, a percepção de risco dos investidores”, enumera. Para o Brasil, o pesquisador associado do IBRE ressalta que o mais preocupante neste momento é o fato de que a maior parte dos países consegue avistar uma saída da crise econômica, enquanto nos mantemos com perspectivas ruins devido à falta de contenção da crise sanitária. “No final das contas, estamos nos endividando da forma mais ineficiente possível, mais improdutiva possível, com um custo econômico gigantesco”, afirma. Ele lembra que endividamentos voltados a um aumento do investimento na economia são positivos pois, quando bem feitos, tendem a gerar crescimento futuro, o que ajuda a amortizar a própria dívida. “Mas estamos nos endividando porque temos que arrastar políticas emergenciais por muito mais tempo que o desejado. Porque estamos falando de um país que não aprendeu a usar máscara, e não consegue comprar vacina pelo SUS”, afirma. “A crise hoje do ponto de vista sanitário é muito pior que no ano passado, e existe a possibilidade de que ela se arraste pelo segundo semestre, o que nos fará gastar com políticas que não geram crescimento, apenas alívio”, conclui.

Reveja o Webinar Os Caminhos da Política Fiscal

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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