Três análises sobre o pacote fiscal do Ministério da Fazenda

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Dia 12/1, o ministro Fernando Haddad, junto de sua equipe e das ministras Simone Tebet (Planejamento) e Esther  Dweck (Gestão), apresentou um pacto de medidas fiscais focadas em ganhos de receita que, nos cálculos do ministro, deverão levar o resultado fiscal de 2023 a um déficit entre 0,5% e 1% ou, num cenário otimista, gerar um pequeno superávit (mais detalhes dos resultados estimados no final deste post). Entre as medidas, além da reoneração dos combustíveis, estão: - um novo programa de renegociação de dívidas tributárias, chamado Litígio Zero; - revisão de contratos e programas; - busca do fim do voto de desempate no Carf a favor dos contribuintes e a redução do estoque crescente de processos administrativos nesse conselho, entre outros, com a extinção de recursos de ofício para dívidas abaixo de R$ 15 milhões. A convite do Blog da Conjuntura, Braulio Borges e Manoel Pires, pesquisadores associados do FGV IBRE, e Gabriel Barros, ex-pesquisador do IBRE, sócio e economista-chefe da Ryo Asset, fizeram sua análise inicial das medidas. Leia a seguir:

“Um compromisso mais forte seria estabelecer uma meta para o resultado primário”

Braulio Borges, pesquisador associado do FGV IBRE

“O pacote responde à demanda que vinha sendo feita desde que surgiu a discussão da PEC da Transição, sobre o financiamento de despesas que estão sendo criadas com a PEC - agora EC 162/22. Na discussão da PEC em si não houve esse debate, que é importante do ponto de vista da sustentabilidade fiscal. Tudo mais constante, a PEC da Transição está elevando o déficit primário para 2023 daqueles 0,6% que constavam da proposta de lei orçamentária que o Executivo enviou para o Congresso em agosto do ano passado para perto de 2% de déficit. Então houve o anúncio desse grupo de medidas na última quinta-feira (12/1). Somando todas, sem discriminar o que é viável ou não, chegou-se aos R$ 220 bilhões em receita que levariam o resultado primário até a um pequeno superávit.  Mas sabemos que há algumas medidas, receitas atípicas advindas de litigiosidades no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais -  órgão colegiado, formado por representantes do Estado e da sociedade, com atribuição de julgar em segunda instância administrativa os litígios em matéria tributária e aduaneira) que são incertas, tanto em termos de valor quanto de prazo. 

O próprio ministro Haddad apontou uma estimativa mais conservadora, de um déficit primário de 0,5% a 1% do PIB para este ano. É uma sinalização importante, pois leva o déficit a um nível semelhante ao estabelecido na proposta de lei orçamentária de agosto - de 0,6% do PIB, mas que viraria 1,1% se incorporada a manutenção do benefício de R$ 600 do Auxílio Brasil agora Bolsa Família, durante 2023. E é algo razoável, se considerarmos a importância do Bolsa Família e o contexto de desaceleração do PIB, queda de receitas do setor extrativo - que calculo em -0,6% em 2023 em relação a 2022, para 2% do PIB (mais detalhes na Carta do IBRE da Conjuntura Econômica de janeiro). Sob esse contexto macro, é razoável sair de um superávit de 0,4% do PIB para um déficit entre 0,5% e 1%. O preocupante seria saltar para um déficit de 2% do PIB, como a  PEC da Transição estava sinalizando. Isso realmente gerou muita ansiedade em relação à trajetória do endividamento público.

A questão, entretanto, é que ainda não é uma sinalização muito forte. Um compromisso mais consistente seria transformar essa estimativa em meta. Ou seja, estabelecendo que o governo pretender alcançar esse valor mesmo que seja necessário lançar novas medidas adiante. E por que isso seria importante? Porque a principal regra fiscal brasileira, o teto de gastos, está fragilizada, e ainda não sabemos o que irá substituí-lo no ano que vem. Além disso, é preciso pensar em 2024 em diante, pois sem arcabouço fiscal, esse horizonte fica relativamente aberto. O novo governo se comprometeu em enviar a proposta desse novo arcabouço. Considero, como já expressei (na Carta do Ibre), que o ideal era tê-lo até abril, para dar tempo de alinhar essa discussão ao PLDO de 2024 que o Executivo tem que enviar ao Congresso até esse mês.

Há, por sua vez, outras indicações positivas vindas do Ministério do Planejamento. A ministra Simone Tebet está formando uma equipe boa, elogiada pelo mercado. Aparentemente, a ministra quer emplacar no Planejamento um pilar importante para o arcabouço fiscal, que é o spending reviews, processo de avaliação periódica dos gastos e subsídios públicos (saiba mais sobre spending reviews aqui). Isso poderá gerar economias fiscais, e mais superávit primário no futuro, seja pela geração de receitas, seja reduzindo renúncias fiscais que não fazem sentido. Desde a criação do Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (Cmap), há um trabalho de diagnóstico de políticas, mas que estão desconectadas do processo orçamentário, o que tira força dessa atividade. Ao incorporá-la ao debate orçamentário, o resultado das avaliações contribuirão para a definição de prioridades. Essa incorporação, se concretizada, será  fundamental não só para melhorar a qualidade da atuação do Estado, melhorando a eficiência e focalização dos gastos, como eventualmente gerar economia fiscal, seja reduzindo despesas sem sentido, ou reduzindo renúncias fiscais.

“Mercado segue na expectativa quanto a medidas estruturais pelo lado da despesa”

Gabriel Barros, sócio e economista-chefe da Rio Asset

Parte do ganho de receita que foi anunciada pelo ministro Haddad tem viabilidade mais complicada, a ponto de ele mesmo ter dito que perseguirá um déficit primário de 0,5% a 1% do PIB. O impacto da parte que é factível basicamente está convergindo para a projeção de déficit que o mercado já tinha: quem projeta PIB mais forte tem déficit menor, e quem acha que o país crescerá menos este ano, tem mais déficit. O cálculo de um déficit de 2% como exposto na PEC da Transição já tinha sido avaliado como exagerado. Isso reduz um pouco o tamanho da surpresa positiva do anúncio. O mercado já colocava na conta medidas como a reoneração do PIS/Cofins sobre combustíveis, e a reoneração que o ministro diz que fará.

Na minha opinião, a grande surpresa pelo lado da arrecadação, que é foco das medidas anunciadas, ficou na redução das compensações tributárias pela exclusão do déficit da base do PIS Cofins. Isso remonta a decisão do Supremo no tema de tributação, pela retirada do ICMS da base do PIS/Cofins, que na época gerou um impacto fiscal importante para o Governo Federal. Mas a decisão do Supremo não se alongou para a parte dos créditos tributários. Então até o momento a Receita Federal está contabilizando créditos das empresas considerando PIS/Cofins na base, elevando o crédito a que as empresas têm direito. Isso claramente não faz sentido econômico, dado que a decisão do Supremo sobre o débito não pode ser diferente no crédito.

No restante, não há muita novidade. O mercado segue na expectativa quanto a medidas estruturais pelo lado da despesa. A ministra Simone Tebet sugeriu que fará esse anúncio num futuro próximo. Ainda que tenha ido na direção correta, o que foi anunciado na semana passada não surpreende muito, pois o mercado já tinha precificado a dificuldade de o governo gastar os R$ 170 bilhões aprovados na PEC de Transição para aumento de despesa, pois é um valor exagerado, acima do necessário. Na prática, o que temos até aqui  é aumento de imposto, que é a parte mais factível, especialmente em combustíveis. No caso das receitas advindas das mudanças no CARF e do estímulo a denúncias, o mercado não vai comprar antecipadamente, pois há baixa confiança de que essas medidas virem arrecadação. Ele não comprará a estimativa de resultado dessas medidas pelo valor de face. Vale ainda notar que a recorrência de programas de recuperação fiscal - agora com o Litígio Zero - se mostrou empiricamente contraproducente para a receita recorrente e adimplência dos contribuintes. É preciso aguardar para ver a real viabilidade do programa e de que maneira será conduzido, dado o posicionamento da RFB e PGFN nesse tema.

“Há várias boas iniciativas que, se bem conduzidas, podem gerar resultado de longo prazo”

Manoel Pires, pesquisador associado do FGV IBRE

Estamos assistindo a uma mudança de estratégia em relação à forma como as contas públicas são tocadas. Esse pacote consagra um movimento que estava ficando claro desde a montagem da equipe econômica, de que a partir de agora haveria uma preocupação maior pelo lado da receita também, imaginando algum aumento de gasto. Um segundo ponto é sobre o mérito das medidas em si. Existe um grau de otimismo quanto a seus efeitos, e de fato há a probabilidade de se ter algum tipo de frustração em relação ao pacote. Por exemplo, o ministério prevê uma economia de R$ 25 bilhões com a revisão de contratos, que acho difícil de ser atingida. No caso do Litígio Zero - programa similar a um Refis - não se sabe quantas pessoas irão aderir, assim como é preciso saber como o incentivo a denúncia vai funcionar. No caso da intenção da Fazenda de voltar a ter um voto de minerva no Carf para definir alguns temas, isso deve gerar alguma arrecadação, mas é difícil dizer quanto e quanto tempo levará para isso acontecer. Mas vale destacar que o ministro foi sincero. Deu uma estimativa diferente, mais realista. Acho difícil que ele se comprometa com alguma meta muito significativa agora pois, se houver uma frustração muito grande no Litígio Zero, ou nessas medidas estimadas do CARF, a única forma de compensar seria aumentando imposto, porque não é possível promover um corte de gastos significativo rapidamente. Acho que se está buscando uma solução dentro da medida do possível. É de se esperar que, se houver frustração, se adotem novas medidas. Inclusive foi sinalizado que haverá novos anúncios, mas certamente terão impacto muito maior nos anos seguintes do que em 2023. Só será possível uma clareza maior sobre o impacto das medidas anunciadas quando começarem a entrar em vigor. No caso do programa de recuperação fiscal (Refis), que responde por um percentual importante do pacote, já teremos alguma ideia em abril, pois o prazo para adesão é curto, termina no final de março. 

Um terceiro ponto a se destacar é que grande parte desse pacote é formada de medidas temporárias, com as quais não se pode contar para os anos seguintes. Então, ainda fica uma discussão para frente, de como tratar o fiscal de forma mais estrutural. Não acho que isso necessariamente seja negativo, já que o pacote foi anunciado com menos de 15 dias de governo. O que há de se esperar é que algumas coisas mais estruturais se tornem conhecidas daqui para frente, na medida em que a equipe do Planejamento estiver mais familiarizada com avaliação de política pública, e que se tenha um diagnóstico mais concreto da situação fiscal - que é algo que só se pode fazer estando ali dentro.

Acho que, nos últimos anos, o governo focou muito na questão do gasto - até mesmo pela questão de se cumprir o teto -, e deixou em segundo plano questões importantes de planejamento tributário, dívida tributária, litígios. Tanto é que, em sua apresentação, o ministro mostrou que esse passivo cresceu muito (uma das indicações de Haddad foi de que o estoque de processos administrativos no CARF, que registrava média de R$ 600 milhões entre 2015/19, saltou para R$ 1 trilhão em outubro de 2022) . Vejo com ótimos olhos que se tente buscar uma solução para isso, pois é um tema que reflete a complexidade do nosso modelo, que gera insegurança jurídica. As pessoas vão fazendo leituras criativas do sistema tributário para evitar pagar o impostos, a receita multa, e vai se criando essa disputa. Outro elemento desse quadro é a leniência em vários aspectos, de descuido com a agenda tributária, a perda de vários temas no Congresso e na Justiça, como foi o caso do voto de minerva. Assim, o movimento anunciado é bom, de reestruturação.

No caso do programa Litígio Zero, não acho um absurdo fazer Refis, porque todo governo no final das contas faz, por bem ou por mal. Acho que o refis proposto é muito generoso, com descontos elevados para quem negocia. Obviamente, isso leva a um risco moral, não tem jeito. Pois se todo governo acaba fazendo Refis, cria-se a expectativa de que haverá outros, atrasa-se o pagamento de imposto, e no final das contas o próprio Ministério se aproveita do grande potencial de arrecadação que esse programa gera no curto prazo. Essa é uma prática que deveria ser encerrada, mas não está claro até que ponto o pacote ajudará nisso (o ministro não classificou o Litígio Zero de Refis comum, alegando os impactos da pandemia e da alta dos juros na atividade produtiva, e a necessidade das empresas voltarem ao mercado de crédito para tocar seus negócios). Esse é um tema que merece uma solução mais estruturada. Há alguns anos, o governo aprovou um instrumento chamado Transação Tributária, que prevê renegociações de dívidas tributárias de maneira mais ágil, dando mais flexibilidade para órgãos da Fazenda negociarem. É uma ideia boa, mas não temos informação de quão eficaz esse instrumento tem sido, se está travado em algum lugar. Entendo a lógica do Refis, a sedução que gera para o governo de ocasião, mas o ideal é que, depois do Litígio Zero, se trabalhe em uma agenda que evite essa prática de recuperar um passivo tributário tão grande no país. A reforma tributária vai ajudar nisso por um lado, mas também é preciso que funcione o lado da renegociação de dívida, para não se criar risco moral. 

Vejo também que está ficando claro  que existe uma relativa divisão de tarefas entre Fazenda, que cuidará da questão financeira com foco na receita e na reforma tributária, e Planejamento, com preocupação maior com a definição do gasto - desde eventualmente se ter uma reforma orçamentária, até fazer um programa de reutilização de gastos que possa, ao longo do tempo, abrir espaço fiscal. Esses instrumentos são utilizados em vários países; o que define seu sucesso fracasso é focar em programas que possam gerar uma economia fiscal relevante depois de uma avaliação adequada, e que se tenha capacidade política de convencer governo e Congresso de aprovar mudanças que possam tornar os programas mais eficientes. Um alvo já está claro e está bem aceito, que é a revisão do cadastro do Auxílio Brasil. A transformação do Auxílio Brasil de volta em Bolsa Família, com várias reformulações, vai gerar uma economia de curto prazo relevante. Outra iniciativa que precisa ser destacada positivamente é a criação de um comitê de avaliação de riscos fiscais. A evolução dos precatórios nos últimos anos, por exemplo, é algo grave (saiu de R$ 54,7 bilhões em 2021 para previsão de R$ 89,1 bilhões que deveriam ser pagos em 2022, se a PEC dos Precatórios não tivesse imposto um teto para esse pagamento. O montante levou os precatórios a se tornar a terceira maior despesa do Orçamento da União, atrás de Previdência e gastos com pessoal). Um comitê que busque identificar por quê estes crescem, identificar onde a União está falhando nos órgãos de justiça, e crie um plano de ação é fundamental.

É difícil saber o resultado que essas iniciativas irão gerar, mas várias transmitem boa-fé, de busca de se identificar problemas de gestão e trabalhar para resolvê-los. Isso foi algo que incomodou na gestão anterior: deixou-se o desequilíbrio crescer, não se atuou preventivamente, na hora que chegou a conta, não se pagou, tampouco se indicou como resolver o problema adiante. Foi assim com os precatórios, e em outras políticas - por exemplo, com o descuido na forma como o cadastro do Auxílio Brasil evoluiu (como o desmembramento de famílias nos registros para recebimento de mais de um benefício). O governo conseguiu equacionar as principais desonerações rapidamente, e veremos como evolui no equacionamento desses outros problemas que estavam colocados.

Primeiras medidas do Ministério da Fazenda 
impactos potenciais na receita líquida em 2023


 


Fonte: Ministério da Fazenda.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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