Planejamento fiscal – “Regras fiscais por si só não são suficientes para assegurar uma melhor alocação dos recursos públicos”

Leonardo Ribeiro – economista, servidor de carreira do Senado Federal. Assessor do senador José Serra (PSDB/SP) desde 2015

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

A ideia de uma revisão contínua de gastos públicos tomou força após a crise financeira de 2008. De que forma ela ajudou na recuperação dos países que a adotaram?

A crise financeira de 2008 foi um marco para as finanças públicas ao trazer novas experiências em matéria de governança pública. Nos últimos anos, estudei bastante essa agenda de reformas que se formou depois da crise de 2008. Posso dizer que os países membros da OCDE avançaram em duas direções. Por um lado, apostaram na criação de instituições públicas apartidárias e independentes para avaliar o estado geral das contas públicas. Basta dizer que, das 37 instituições desse tipo hoje existentes, 25 foram criadas depois de 2008. Por outro lado, houve uma tendência de se institucionalizar sistemas de revisões periódicas dos gastos públicos baseados em metodologias sofisticadas de gestão. Esse método de alocação de recursos públicos é internacionalmente conhecido como Spending Reviews. Interessante observar que, até 2011, 16 países da OCDE haviam realizado revisões de gastos. Em 2018, esse número passou para 27.

As revisões de gastos públicos, como um processo institucional e periódico, já eram praticadas antes da crise financeira em alguns países da OCDE, como Dinamarca, Finlândia, Holanda, Reino Unido e Austrália. No entanto, eram revisões que buscavam ganhos de eficiência em programas governamentais específicos, pouco estratégicas e disruptivas.  Com o impacto fiscal e econômico avassalador da crise de 2008, tudo mudou. Em pesquisa da OCDE de 2012, metade dos países membros da organização informaram que estavam implementando o Spending Review para promover profundas mudanças no setor público a fim de gerar economias orçamentárias - ou para reduzir o gasto público no nível agregado, ou para gerar espaço fiscal para novas prioridades. Naquele contexto, prevaleceu a percepção de que o processo de consolidação fiscal seria fundamental para a confiança dos mercados e para o cumprimento das regras fiscais em vigor na Europa.  Foi assim que o instrumento renasceu no mundo pós-2008: para reestruturar os orçamentos afetados pela crise e para ajudar na recuperação econômica dos países.  

Para fins de conceituação, deve-se ter claro que o Spending Review é basicamente um processo institucionalizado, transparente e coordenado de revisão de gastos, projetos e programas governamentais. Geralmente envolve toda a administração pública em uma ação coordenada com a participação de técnicos do Ministério das Finanças e gestores que executam as políticas públicas. Trata-se de um sistema com metodologia e critérios transparentes, patrocinado pelas lideranças políticas, com objetivo bem claro: dar transparência aos ajustes fiscais necessários. É importante lembrar que essas revisões institucionais do gasto envolvem também gastos obrigatórios e renúncias fiscais. Ou seja, as revisões passam por ajustes na legislação e amplas reformas no setor público.

O que é preciso fazer para que essa revisão não vire mais uma prática protocolar ou seja capturada por interesses políticos conjunturais?

O produto de um processo de avaliação do gasto são indicadores de performance que servem para orientar os gestores públicos responsáveis pela condução das políticas públicas. No caso do Spending Review, o principal produto é a conexão do processo de avaliação com o processo orçamentário. Trocando em miúdos: as revisões do gasto existem para apresentar uma lista de medidas para se reduzir o gasto público, com transparência absoluta dos números e critérios envolvidos. A gestão pública passa a dar mais valor à racionalidade econômica, em que os recursos são tidos como escassos, sendo preciso priorizar os programas governamentais, levando-se em conta custos de oportunidades e prioridades da administração pública. 

A base racional do processo orçamentário nos países que adotam esse sistema é a eficiência econômica, no sentido de se buscar reformas que assegurem melhores serviços públicos com o mesmo custo ou o mesmo serviço com um custo menor. Após a crise de 2008, passou-se também a escrutinar o cenário fiscal de referência, que é aquela que mostra para onde irão as contas públicas se nada mudar na legislação e na gestão. Ou seja, passou-se a dar atenção também aos gastos obrigatórios determinados em leis, como benefícios previdenciários, e o peso da folha salarial no setor público.

E como fazer para que as revisões de gasto não sejam capturadas facilmente por interesses políticos? É aí que entram no processo as instituições fiscais independentes, a academia e os organismos internacionais. Como eu disse inicialmente, a crise de 2008 fez estourar um cano repleto de instituições fiscais independentes, que invadiram o arranjo institucional de diversos países. Essa nova geração de institutos apartidários é um dos pilares da agenda fiscal que se formou na Europa depois da crise. O Brasil pegou embalo nessa onda e criou a Instituição Fiscal Independente no âmbito do Senado Federal. Tive a oportunidade de coordenar o trabalho juntamente com o senador José Serra, que liderou os debates para criação da IFI no Brasil. O economista Felipe Salto, (diretor-executivo da IF desde a sua criação, em 2016) tem feito um trabalho brilhante à frente da instituição, com um time de técnicos de primeira.

Voltando para o Spending Review e a sua pergunta, o que tenho para dizer é que a captura política é facilitada quando quatro obstáculos não são superados. A desconsideração dos resultados das avaliações de políticas públicas pelos tomadores de decisão. A incompletude dessas avaliações, que podem apresentar visões tendenciosas. A assimetria de informações entre o time que coordena o processo e os órgãos executores das políticas públicas, que tendem a mostrar dados incorretos quando não lhe são assegurados incentivos para uma atuação eficiente. E a própria falta de coordenação do processo, que geralmente ocorre devido à falta de uma liderança assertiva e qualificada.  Não pode ter preguiça e incompetência na liderança do processo. Além desses obstáculos, é preciso dizer que a transparência é o coração da Spending Review, o que torna necessária a criação de canais de comunicação com representantes da sociedade civil e da mídia.

Para superar esses desafios, a experiência internacional nos ensina algumas ações essenciais para blindar o Spending Review da captura dos interesses corporativos. Deve haver o patrocínio das lideranças políticas, a capacitação dos profissionais envolvidos, mecanismos de incentivos e sanções para os gestores públicos e a compatibilização do sistema de revisão dos gastos com a agenda legislativa e o processo orçamentário. Por último, quero destacar participação das instituições fiscais independentes. No Reino Unido, o Office Budget Responsability – a IFI britânica – participa de todo o processo de revisão de gastos. Nos Estados Unidos, o Congretional Budget Office, considerada uma das principais instituições fiscais independentes do mundo, faz análises impecáveis sobre as opções de políticas públicas (policy options) que podem ser adotadas para tornar as políticas públicas mais eficientes. O processo como um todo deve ser o mais transparente possível.

No caso do Brasil, de que demandaria a adoção do Spending Review? Como essa prática “conversaria” com nossas regras fiscais?

O processo de instituição do Spending Review no Brasil deve começar pela aprovação de uma lei complementar prevendo a obrigatoriedade das revisões periódicas do gasto público, com balizas e princípios baseados nas boas práticas internacionais. As regras do jogo só valem de verdade no Brasil se a lei complementar ou a Constituição – que não normas permanentes –  entrarem em cena. Quer um exemplo? O Senado aprovou, por unanimidade, o projeto de lei complementar nº 428/2017 para instituir o Plano de Revisão Periódica do Gasto Púbico – nada mais nada menos do que o Spending Review. A proposta se encontra na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público (CTASP) da Câmara dos Deputados, mas não vem sendo apoiada pelo governo, que ironicamente enviou para o presidente Rodrigo Maia uma lista de prioridades contendo o PLP 504/2018 (número do PLS 428 na Câmara). 

Diante dessa falta de apoio, conseguimos introduzir na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) do ano passado um dispositivo para obrigar o Governo a enviar ao Congresso um plano de revisão dos gastos. Simplesmente o plano não foi enviado, tendo em vista a precariedade da LDO, que só vigora por um ano. Ou seja, o Spending Review no Brasil só vai emplacar se for introduzido na lei complementar que estabelece as normas gerais do direito financeiro ou na própria Lei de Responsabilidade Fiscal. Prefiro a primeira opção.

Sem dúvida, a adoção no Brasil de um processo sistemático e transparente de revisão de gasto, como adotado nos países da OCDE, conversaria muito bem com o teto de gastos e com as regras da LRF. De mais a mais, as regras fiscais por si só não são suficientes para conter o viés deficitário dos orçamentos e para assegurar uma melhor alocação dos recursos públicos, especialmente em um palco político fragmentado como o nosso. Para um barco à deriva chegar em um porto seguro, é necessário não somente uma âncora firme e forte, mas também instrumentos de navegação que levem a tripulação para o rumo certo. Uma regra fiscal para controlar o crescimento da despesa pública, como o teto de gastos, pode funcionar como a âncora da política fiscal. Mas sem um processo metodológico de revisão dos gastos públicos, ficaremos presos pela âncora no meio da tempestade até ela se romper. É uma estratégia relativamente suicida. 

O debate em torno do programa Renda Brasil evidencia que nossa gestão fiscal está sendo conduzida dessa forma, no improviso e na descoordenação. As propostas do Governo estão sendo enviadas para o Congresso sem transparência dos números e das avaliações, o que mostra que estamos à deriva e presos por um âncora fiscal que está prestes a se romper. Nesse sentido, vejo o Spending Review como um acerto de contas com o futuro. Temos que olhar para a terra à vista que está no fim do horizonte. É para lá que temos que seguir.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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