Mesmo com tendência de desaceleração, inflação de alimentos ainda é motivo de preocupação em 2023, afirmam especialistas

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

O ano de 2023 tende a ser de alívio no preço dos alimentos. Depois dos sequentes choques observados nos últimos anos - pandemia em 2020, seca em 2021 e efeitos da guerra na Ucrânia em 2022 -, que elevaram a inflação da maioria dos alimentos para a casa dos dois dígitos, espera-se que a alta dos produtos da chamada alimentação no domicílio feche o ano abaixo da inflação média. Nas projeções do FGV IBRE, em 3,9%, para um IPCA de 6,2%. “Teremos uma inflação em nível parecido ao de 2022, quando o IPCA fechou em 5,8%, mas uma inversão de pesos, com o preço dos monitorados (como energia e combustíveis) ganhando relevância”, afirmou André Braz, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor do FGV IBRE  no webinar O impacto da alta dos alimentos.

Essa redução do protagonismo dos alimentos, entretanto, ainda está longe de ser suficiente para compensar o impacto das sequentes altas registradas nos últimos anos, especialmente entre as famílias de mais baixa renda, para quem os alimentos têm peso maior na cesta de consumo. Enquanto no IPCA a alimentação no domicílio representa em torno de 16% do total, para os mais pobres ela pode superar 25% da inflação percebida. “Nos últimos 36 meses, a alimentação chegou a subir 37%. Os itens da cesta básica acumularam inflação superior a 20% - destacando-se exemplos como a cebola, com alta de 130%, e a farinha de trigo, com 74%”, ilustrou Braz. “Uma inflação menor este ano não será suficiente para reduzir o peso desses produtos na cesta de consumo, apenas o estabilizará. A dificuldade das famílias de mais baixa renda ainda vai perdurar por algum tempo”, afirmou o especialista, no evento promovido pelo FGV IBRE em parceria com a Folha de S. Paulo, moderado por Fernando Canzian, repórter especial do jornal.

Esse desequilíbrio entre a inflação média e a da população de mais baixa renda torna-se ainda mais preocupante quando observado pela lente do mercado de trabalho. Para a população que teve seu emprego preservado com a chegada da pandemia, significou um descompasso entre os reajustes salariais e a perda de poder de compra. Mas ainda é preciso lembrar, destacou Braz, que a pandemia castigou mais o emprego das pessoas menos produtivas, em geral de salário mais baixo, comprometendo ainda mais sua capacidade de se manter, levando ao aumento da insegurança alimentar no país (leia mais aqui).

Para Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do FGV IBRE, o resgate das pessoas que ainda sofrem os efeitos da sequência de choques regressivos que afetaram tanto os preços quanto o mercado de trabalho demandará competência para se aplicar com precisão as políticas sociais necessárias de apoio a esse grupo - “lembrando que a população brasileira com renda domiciliar até R$ 2 mil representa 30% do total”, ressaltou - com a tarefa de reequilibrar as contas públicas. Sem esta última, destacou Silvia, as consequências macroeconômicas continuarão penalizando as famílias de mais baixa renda. No evento, Silvia defendeu a elaboração de um índice de preços mais aderente ao consumo dos beneficiários do Bolsa Família, citando estudos que indicam um impacto ainda maior da inflação de alimentos para esse grupo. “Sem essa análise, as discussões sobre aumento do benefício se limitam a uma discussão populista. Seria preciso um índice mais adequado, e ajustes mais frequentes para o orçamento do programa de transferência de renda, no caso de desvios muito além dos esperados" disse. A coordenadora do Boletim Macro IBRE também ressaltou a importância do cuidado com o desenho de políticas sociais para que estas garantam os incentivos corretos para que as pessoas busquem qualificação para retornar ao mercado de trabalho. “Temos observado uma redução na taxa de participação (proporção da população em idade ativa inserida na força de trabalho), o que leva a um aumento da dependência por políticas sociais”, afirmou, indicando um sinal de alerta.

Inflação (%) em 12 meses


Fonte: FGV IBRE.

No evento, Silvia referiu-se a estudos do economista Ricardo Paes de Barros (leia mais aqui) que mostram que a superação da condição de pobreza e o combate à desigualdade de forma sustentável só acontecem com uma economia dinâmica geradora de emprego. Para movimentar essa engrenagem, entretanto, ele defendeu que a primeira tarefa é concluir o combate à inflação. A pesquisadora afirmou que, além de uma questão de composição - um maior peso do setor de serviços para a alta dos preços significa uma inflação mais difícil de combater -, os questionamentos do governo quanto aos rumos da política monetária e as incertezas ainda presentes quanto ao novo arcabouço fiscal (tema da Conjuntura Econômica de março) têm alimentado expectativas inflacionárias que agravam o quadro. “Esperaríamos uma queda de preços maior com a desaceleração da atividade, mas hoje sofremos os efeitos da política monetária sem colher todos os seus frutos. Ou seja, produziu-se uma tensão que aumenta o custo da desinflação”, diz.

A economista do IBRE também ressaltou o papel do câmbio na evolução dos preços, que também tem parte de seu comportamento condicionado às tensões domésticas. “Quando observamos o índice de commodities agrícolas divulgado pelo Banco Central, vemos que o aumento de 80% registrado de 2019 até agora é metade explicado pelo câmbio, e metade pelo preço internacional dos produtos agrícolas -, entre commodities relevantes da cesta do consumidor”, diz, lembrando que o período de grande incerteza fiscal, especialmente a partir de meados de 2021, fez com que a trajetória do câmbio fosse na contramão da observada em momentos de alta das commodities exportadas pelo Brasil, quando se espera valorização do real. “Mais recentemente, entretanto, parece que o efeito câmbio não está jogando contra”, lembrando entretanto, que nessa equação sempre haverá ganhadores e perdedores: uma alta de preços de exportação de commodities pode beneficiar a arrecadação do governo, mas também pressiona preços.

Composições diferentes 
inflação (%) 2022 x projeção 2023


FONTE: FGV IBRE.

A cientista política Daniela Campello, da FGV Ebape, destacou entretanto que o Brasil - assim como outras economias sul-americanas exportadoras de commodities - vive hoje uma situação delicada que não permite repetir a fórmula operada nos anos 2000 para reduzir a pobreza e desigualdade, então financiada pelo boom de commodities. “Viemos de um momento excepcional, com um choque de preços fora da curva, com um déficit fiscal e social a operar. Hoje o cobertor é curto, e ainda não vejo solução para a esquerda latino-americana para lidar com a questão da redistribuição sem ser em períodos de bonança. Que tipo de imposto se pode operar para tirar de quem pode dar e dar a quem precisa da forma mais adequada?”, questionou, ilustrando a série de questões que estão postas ao governo Lula.

Daniela também destacou o difícil momento para o governo para atender às expectativas do eleitorado quanto à melhora de seu bem estar diante do desafio de conter a inflação. Ela apontou que mesmo em países como os Estados Unidos em que a independência do Banco Central é uma condição estabelecida há tempos, “a população é menos racional do que gostaríamos de acreditar. Em sistemas presidencialistas, a população em geral culpa diretamente o presidente por sua perda de bem-estar. Por isso a preocupação do governo Lula, especialmente diante da expectativa dos eleitores por redistribuição de renda. Nesse sentido, a pressão por crescimento e o efeito da política de juros é natural”, afirma. Um agravante dentro desse quadro, ressaltou, é a necessidade de Lula ganhar o apoio de parte da população de baixa renda que apoiou o ex-presidente Bolsonaro, incentivada pela política de estímulos econômicos operada pelo governo em ano eleitoral. “É preciso consolidar o apoio desse eleitor que se move pela economia, por isso a urgência do governo”, afirmou.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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