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A cara da pobreza mudou

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

No momento mais inflamado de seu primeiro discurso como presidente eleito, quando já havia esgotado as páginas previamente escritas – seguro contra qualquer deslize da memória, diante do compromisso de ser assertivo em suas primeiras palavras a um Brasil polarizado –, Lula declarou que combater a miséria é a razão pela qual viverá até o fim da vida. Em 2021, a extrema pobreza no país chegou perto de 10% da população, recuando 14 anos, se aproximando do que foi visto em 2007-2008.

Surpreende este resultado, quando observamos a recuperação da economia, já em meados de 2020. O gráfico abaixo mostra que o processo de aumento da extrema pobreza tem sido consiste desde 2014, menos com a recuperação da atividade econômica da crise de 2014-2016, turbinada pelo aumento dos gastos sociais, especialmente durante a COVID-19.

Evolução do PIB e da porcentagem da população abaixo da linha de extrema pobreza


Fonte: IBGE. Elaboração própria dos pesquisadores do Insper.

Embora existam críticas de alguns economistas com relação aos números da Insegurança Alimentar no Brasil, medidos pelos dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 da Rede Pensann, mostrou que em 2022 só 4 entre 10 famílias conseguem acesso pleno à alimentação, um contingente de cerca de 33 milhões de pessoas. Reduzir esse enorme contingente, em um cenário de aperto fiscal, onde já se fala em um waiver, uma licença para gastar além do previsto, com forma de acomodar as enormes demandas de políticas públicas, será um enorme desafio.

Um dos principais especialistas no estudo de políticas públicas no país, o economista Ricardo Paes de Barros, conhecido como PB, junto com duas outras pesquisadoras do Insper, Laura Muller Machado e Laura Almeida Ramos de Abreu, se debruçaram sobre o tema e mostram em trabalho, recentemente apresentado em um encontro com pesquisadores do FGV IBRE, que a cara da pobreza mudou nos últimos anos.

Pelo estudo de fôlego dos três economistas, olhando as curvas de desigualdade no país, a história recente mostra que, de fato, os dois primeiros mandatos de Lula, e o primeiro de sua sucessora, Dilma Rousseff, deixaram a marca de inegável melhora. O levantamento mostra que a combinação de queda da desigualdade com crescimento econômico observada de 2004 a 2014 no país resultou em uma significativa redução da pobreza. “Todos ganharam, mas os mais pobres ganharam mais”, diz PB. Separada por décimo da população, observa-se que nesse período a expansão da renda per capita dos 10% mais pobres foi de quase 8% ao ano, dobrando em uma década, de R$ 84 para R$ 177. Por outro lado, no topo da pirâmide, o crescimento foi ao redor de 3,5% ao ano, conforme o gráfico abaixo.

Taxa anual de crescimento na renda per capita por décimo entre 2004 e 2014


Fonte: Oppen Social/ Insper, a partir de estimativas produzidas com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e PNAD-C.

Decompondo os fatores que levaram a essa mudança, os pesquisadores do Insper mostram que esse ganho se deveu a uma combinação entre aumento de transferência de renda e de remuneração do trabalho. “Nesse período, até houve uma pequena queda na taxa de participação – que é a porcentagem de pessoas em idade de trabalhar (16 anos ou mais), quer empregadas quer em busca ativa de trabalho, em relação ao número total de pessoas na respectiva faixa etária – o que não significa necessariamente algo ruim, já que pode significar mais jovens nas escolas e idosos aposentados”, diz. Dos cerca de 8% de aumento anual de renda per capita dos 10% mais pobres, 52% vieram da renda não derivada do trabalho, ou seja, basicamente de transferências que cresceu 11% ao ano em termos reais no período. Os outros 46% vieram da remuneração do trabalho, com alta real média anual de 6% no período.

Entre os 20% mais pobres, essa composição passa para 35% de transferências e 63%, renda do trabalho. E, entre os 40% mais pobres, a remuneração do trabalho chega a responder por 67%. Isso, para PB, representa que a política de transferência de renda, apesar de não ser perfeita, garantiu uma boa focalização. “Mas a inserção produtiva e aumento da remuneração do trabalho não chegou tanto aos mais pobres”, ressalta. E esse detalhe pode ser balizador do sucesso ou fracasso do terceiro mandato do presidente para o legado que ele deseja fixar em sua histórica como mandatário.

Para entender o porquê, é preciso observar o que os pesquisadores do Insper identificaram de 2014 a 2021, quando esse quadro de prosperidade virou de ponta cabeça, e os mais pobres, que na última década foram os que mais ganharam, agora são os que mais perderam. “Nesses 7 anos, a perda dos 10% mais pobres é de 7,5% per capita por ano, como mostra o gráfico abaixo. Andamos para trás violentamente”, diz PB. Nesse período, a expansão econômica tem sido acompanhada de aumento da pobreza, em um sinal claro de que o país não está conseguindo compartilhar a prosperidade auferida com os mais pobres. E a resposta disso, indicam os especialistas do Insper, não está nas transferências de renda – que representam apenas 27% da queda de 7,5% do PIB per capita dos 10% mais pobres –, mas no mercado de trabalho. E não exatamente pela redução de salário, mas pela taxa de ocupação entre esse grupo, que despencou de 36% para 18%. Segundo PB, “entre os 10% mais pobres, só 18% dos adultos em idade de trabalhar estavam ocupados em 2021, caracterizando uma grave crise de trabalho entre os mais pobres”. Se olharmos o nível de ocupação no país como um todo nesse período de 2014 a 2021, o recuo foi de 59% para 53%.

Se ampliarmos esse intervalo, de 2001 a 2021, a queda no nível de ocupação dos mais pobres foi ainda mais dramática: despencou de 48% para 18% na camada dos 10% mais pobres. “E é esse grupo que temos que focar nossa atenção, já que são os mais vulneráveis”, salienta PB.

Taxa anual de crescimento na renda per capita por décimo entre 2014 e 2021


Fonte: Oppen Social/ Insper, a partir de estimativas produzidas com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e PNAD-C.

Um ponto importante é a dificuldade de inserção dessas pessoas no mercado de trabalho. Levantamentos do Núcleo de Produtividade, Mercado de Trabalho e Renda do FGV IBRE mostram que, embora a taxa de desemprego venha caindo – foi de 8,7% no trimestre móvel encerrado em setembro último-, ainda há fragilidades no mercado do trabalho de trabalho, como o elevado o número de pessoas que estão desempregadas a dois anos ou mais.

Veja: A estrela da recuperação

Essa situação é diferente inclusive da observada entre 1992-2003, antes da virada pró-pobre. “Nesse período, uma pessoa pobre trabalhava 50 horas por semana, e ainda assim não conseguia reverter sua situação. A solução era melhorar a qualidade do posto de trabalho que ela ocupava, e não aumentar o número de horas, porque já estava trabalhando muito”, explica PB.

“Agora, quando a renda cai, não é porque passam a ganhar menos – os que se mantêm empregados não ganham comparativamente tão mal –, mas porque deixam de trabalhar. Falta de flexibilidade, e a correção chega pelo trabalho”, acrescenta.

Ao agrupar os dados de 2001 a 2021, tem-se que a renda mais pobres aumentou 4% ao ano, com as transferências crescendo 15% ao ano, e o salário, 6%. A taxa de ocupação, entretanto, saiu de 41% e foi para 18%, uma queda de 176%. PB diz que ainda estuda as determinantes dessa mudança. “Pode ser que hoje não se consiga baixar salário porque a oferta não acompanhará, dado que as transferências de renda lhe podem ajudar. Também pode no mundo pós-pandemia tenhamos aprendido a viver sem os serviços oferecidos por esse grupo, e as estratégias com as quais até agora conseguiram sobreviver já não façam mais efeito, e aí a renda é zero”, cita. “A economia se modernizou e pode ter expulsado muita gente do trabalho.”

Indicadores de Inserção Produtiva: Brasil 2021


Fonte: Insper.

O fato, ressaltam os pesquisadores, é que quando se calcula o percentual da população brasileira em idade ativa nessa faixa de renda, há 4,2 milhões de pessoas que querem trabalhar, dos quais menos de 1 milhão estão trabalhando. “Desses, 38% afirmam que trabalham menos horas do que gostariam – quando na média brasileira geral esse percentual é de 8%. Se somamos desempregados, desencorajados e subocupados – que é a taxa composta de subutilização da força de trabalho –, são 90% do total, contra 28% no Brasil”, compara.

Além dessa mudança no perfil dos mais pobres, outro ponto que merece muita preocupação é o crescente endividamento dessas famílias. Segundo dados do Banco Central, o endividamento das famílias com o sistema financeiro atingiu 52,9% em agosto último, com um aumento de 11 pontos entre fevereiro de 2020 e agosto deste ano. É a maior parcela dos endividados são as famílias de mais baixa renda.

Dados da Confederação Nacional do Comércio, Bens, Serviços e Turismo (CNC), mostrou que o endividamentos das famílias chegou perto dos 80% em setembro, puxado pelos consumidores de rendas médias e baixa. Está nos planos do atual governo, renegociar essa dívidas, embora ainda não tenha ficado claro como isso será feito.

Na matéria de capa da Conjuntura Econômica de agosto (leia aqui) PB defende que para combater a pobreza será preciso “uma política que acredite na capacidade dos brasileiros”, diante da real dificuldade de reinserção de muitos na economia, como apontam os dados de desemprego de longa duração, e os desafios educacionais de jovens durante a pandemia, para que não sejam limitantes de seu horizonte laboral, legando-os a empregos informais de baixa produtividade, ou dependentes de proteção social.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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