Falha da cesta básica em promover um regime mais progressivo deve ser considerada no debate sobre alíquota única, defendem especialistas

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

A ideia de que tratamentos diferenciados dentro do sistema tributário, como a desoneração da cesta básica, são efetivos em ampliar a progressividade do modelo é um pressuposto que não se confirma na prática, e isso deve ser considerado no debate da reforma dos impostos sobre o consumo. Esse é o alerta que um grupo de pesquisadores faz em seu projeto de pesquisa debatido na semana passada em webinar da FGV. Nele, os autores mostram que as críticas à adoção de uma alíquota única e uniforme como propõe a PEC 45 – de que ao se eliminar o sistema de alíquotas diferenciadas se estaria prejudicando os mais pobres –, não se comprova na vida real, já que esse modelo não tem trazido os benefícios a que se propõe.

Um dos argumentos desmistificados no estudo é o de que as reduções de alíquotas de produtos da cesta básica são repassadas integralmente ao preço final pago pelos consumidores. O resultado dessa parte da pesquisa, coordenada pelo economista Mauricio Canêdo Pinheiro, professor da Uerj, ex-pesquisador do FGV IBRE, mostra, ao contrário, que estão longe de chegar aos 100%. “Observamos que, de cada ponto percentual de variação na alíquota do ICMS, são repassados em média 13%. E que essa diferença leva em torno de quatro meses para se materializar completamente”, afirma Canêdo. Para o estudo, foram consideradas as mudanças de alíquotas de 79 produtos em 16 categorias, no período de julho de 1994 a julho de 2021, nas regiões metropolitanas de Salvador (BA), Belo Horizonte (MG), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP).  O levantamento inclui não apenas alterações de alíquotas como mudanças na base de cálculo e concessão de créditos presumidos, que também são formas de se mexer na tributação dos produtos.

Do total das categorias analisadas, dez apresentaram variação de preços próxima de zero. Entre elas, os alimentos do grupo de cereais, carnes frescas, panificados e leite e derivados. Entre os que apresentaram alguma variação estão produtos na categoria das hortaliças e verduras, frutas, e frangos e ovos. Uma das características observadas no estudo, diz Canêdo, é a de que segmentos de produtos industrializados em que a concentração de mercado tende a ser maior são os que apresentam repasses menores. Outra evidência identificada na pesquisa, que Canêdo pretende estudar agora, é a de repasse assimétrico. Ou seja, de que aumentos de impostos são mais repassados aos preços do que as reduções. “Também está em nossa agenda investigar se os repasses dependem do modo como a tributação é alterada”, diz.

Leonel Cesarino Pessoa, da FGV Direito SP, também coordenador do projeto, afirma que o levantamento da literatura internacional sobre o tema aponta outras boas razões para se contestar o caráter distributivo do uso de alíquotas diferenciadas. O primeiro é o fato de que o ganho, em termos fiannceiros, com alíquotas menores é maior para para os mais ricos do que para os mais pobres, já que estes tendem a consumir mais, em termos absolutos. “Além disso, a complexidade gerada em um sistema com alíquotas diferenciadas tende a aumentar o custo de conformidade para os contribuintes, bem como os encargos da administração pública para fiscalizar”, diz. Outro elemento citado por Pessoa é o fato de o modelo de alíquotas diferenciadas favorecer a atuação de grupos de pressão. “Há constatação empírica de que o tratamento preferencial, uma vez garantido, tende a se ampliar, tornando mais difícil evitar que novas exceções sejam criadas”, diz.

Para a economista Rozane Bezerra de Siqueira, professora da UFPE especialista no campo tributário, o estudo reforça a constatação de que a seletividade deu errado no Brasil. “Não conseguimos produzir o mínimo de progressividade. Tentamos com custo altíssimo em termos de complexidade relacionada a essa diferenciação de alíquotas e ineficiência alocativa. Geramos custo de eficiência sem o benefício da equidade distributiva, ao ter um sistema que falha nos três princípios básicos da tributação: equidade, eficiência e simplicidade”, diz.

Para Rozane, os problemas do sistema brasileiro em combater a regressividade – algo que outros países ainda conseguem, mesmo com resultados tímidos, diz – parte das dificuldades técnicas e outras fomentadas por grupos de interesse na seleção dos bens e serviços que terão alíquotas reduzidas. “Por exemplo, energia elétrica é um bem essencial na cesta dos mais pobres, mas tem alíquota muito maior que a padrão, enquanto há outros produtos sem peso significativo para as famílias de baixa renda que têm alíquota reduzida”, compara. A economista também ressalta que, devido à cumulatividade gerada pelo sistema, a redução de alíquotas de alimentos da cesta básica, por exemplo, é comprometida pelo peso da tributação dos insumos para fabricá-los. “A cumulatividade reduz não só a eficiência do sistema como um todo na produção, como a eficácia da diferenciação de alíquotas”, diz. Suas estimativas são de que a alíquota efetiva sobre alimentação está acima de 20%, equiparando-se à alíquota média. “Pensávamos que era menor, já que a cesta básica representa 40% do item alimentação, mas não é assim.”

Outro elemento apontado por Rozane que tende a minar as chances de sucesso de uma política redistributiva por meio da seletividade é a mudança do perfil de consumo dos mais pobres. “Comparando as duas últimas edições da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), observamos que a cesta de consumo das famílias de baixa renda está ficando mais parecida com as da classe de renda mais alta. A participação dos produtos que pertencem à cesta básica caiu quase pela metade, e há aumento de itens como energia elétrica e combustível doméstico”, cita. “Além de um aumento do gasto com comunicação que está acima da alíquota padrão.”

Rozane reforça que, até agora, a experiência brasileira mostra que insistir na diferenciação de alíquotas não resultará em redistribuição. “Basta observar que hoje os pobres pagam um imposto alto, no caso indireto. Estimamos que a carga de imposto sobre os mais pobres é de cerca de 15%. Ou seja, de R$ 600 reais que se recebe, há devolução de R$ 90 para o governo em impostos. O sistema tributário como um todo, e o fiscal, falha em redistribuir de forma significativa”, diz, recomendando a adoção do sistema de devolução direta conhecido como cash back.

Rodrigo Orair, diretor da Secretaria Extraordinária de Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, destaca outro tema abordado no estudo, que é a diferenciação da cesta básica conforme o estado, gerando práticas ainda mais complexas de gerir. “Temos um monstrengo jurídico inadministrável. Precisamos de um freio de arrumação, uniformizar alíquota, e gerar outros mecanismos de compensação”, afirma, citando também o cash back como alternativa.

Melina Rocha, diretora de cursos da York University, também membro do grupo de pesquisa sobre alíquota única, defende que essa mudança de concepção do sistema tributário em busca de maior progressividade depende também de maior conexão da área econômica com a jurídica. “Está claro que os pressupostos que foram tomados como base do nosso modelo estão desconectados, e é necessário esse reconhecimento”, diz. “Já está sedimentado na literatura econômica que alíquotas diferenciadas beneficiam os mais ricos, porque consomem mais em termos nominais que os mais pobres; que há problemas de caracterização, gerando litígios administrativos e custo de compliance; e, como mostra o estudo, reduções de impostos não são passadas ao preço final. Não há por que juristas continuarem insistindo no princípio da essencialidade e seletividade com base no pressuposto distributivo, já que ele não se comprova na realidade”, resume. Enlinson Mattos, professor da FGV EESP, diz que em seus estudos de 2011 já apontava à importância dessa conexão entre economistas e juristas. “Hoje, na literatura internacional, vemos que o debate tributário para países em desenvolvimento aborda focar em ótimos sistemas tributários, mais do que em impostos ótimos. Acho que as discussões em torno da alíquota única caminham nessa direção”, conclui.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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