Em evento em Brasília, especialistas debatem desafios para a universalização do saneamento básico

Por Solange Monteiro, de Brasília

Há quase uma década, em 2014, a Organização Mundial de Saúde divulgou um estudo em que destacava a importância da cobertura de água e esgoto para a população mundial. Esse documento indicava, por exemplo, que cada dólar gasto em saneamento básico produz um ganho de US$ 4,3, especialmente devido à redução de custos com atenção à saúde e ampliação da produtividade da economia. Mesmo com essa reconhecida vantagem, no Brasil o crescente aumento da presença do saneamento no debate público e o novo marco legal do setor, o caminho da universalização desse serviço ainda traz desafios, que foram destacados em seminário promovido pela Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe) na semana passada, em Brasília. O evento, de três dias, marcou os 39 anos da Associação.

“Sempre falamos do setor como sinônimo de saúde mas, no papel, as políticas e recursos não refletem essa prioridade ao saneamento”, afirmou Neuri Freitas, presidente da Aesbe e da companhia de saneamento do Ceará, Cagece. No evento, ele destacou que para se alcançar as metas de universalização presentes no Marco Legal – até 2033 – ainda falta investimento. “De acordo às estimativas da Abcon/Sindcon (Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto), para cumprir as metas de universalização o setor terá que garantir um volume de investimento em torno de R$ 90 bilhões por ano até 2033. Os recursos previstos no Novo PAC – de R$ 10 bilhões para esgotamento e R$ 4,2 bilhões para água de 2024 a 2026 – ajudarão bastante, mas não são suficientes. Temos que identificar quais novas fontes, modelagens, parcerias garantirão a atração desses investimentos”, disse, o que inclui, defendeu, uma agenda junto aos bancos públicos de adequação de regras para acesso a financiamento pelas companhias estaduais.

No painel que tratou de cenários macroeconômicos e o saneamento, Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do FGV IBRE, destacou que um dos caminhos para se garantir esse impulso ao saneamento é combater a má alocação do orçamento público. “Esse é um problema estrutural brasileiro, nossa fragilidade institucional para lidar com interesses difusos da sociedade. Cada um olha seu pedaço do orçamento, sem analisar onde cada real gasto pode maximizar o retorno para sociedade. Se fosse assim, o saneamento certamente estaria no topo das prioridades”, afirmou. Para Silvia, a falta desse critério – que abre margem, por exemplo, para gastos tributários e creditícios nem sempre meritórios – cria importantes problemas estruturais. “A começar por crises fiscais recorrentes. Quando precisamos de uma política pública – por exemplo, a ampliação do Bolsa Família – mas não prevemos as condições para bancar esse gasto recorrente, o resultado é desequilíbrio fiscal e juros mais altos. Temos que lembrar que um ajuste fiscal adequado não se limita à questão contábil, mas em abrir espaço para promover políticas públicas adequadas”, afirmou. Diante desse desequilíbrio, o país fica refém de se financiar, “algo ruim especialmente diante de um contexto internacional mais complexo como o que estamos vivendo”. Silvia destacou como positivo o fortalecimento da área de avaliação e monitoramento de políticas públicas dentro do Ministério do Planejamento (leia aqui). “Essa é uma boa notícia, pois há muito espaço para se ampliar a eficácia das políticas públicas. Assim como da alocação de outros recursos não menores, como das emendas parlamentares, que para 2024 somam R$ 38 bilhões”, citou.

Freitas, da Aesbe, também destacou a necessidade do saneamento “correr atrás” de outras decisões, como o projeto de reforma tributária, que ao ampliar a alíquota do setor tenderá a impactar a tarifa e/ou reduzir a capacidade de investimento das companhias públicas de saneamento, cujo investimento é majoritariamente (56%) feito com recursos de caixa (leia mais aqui). A defesa da Aesbe foi de que o saneamento recebesse o mesmo tratamento dos serviços de saúde, que poderão ter isenção total de IVA (composto por CBS e IBS). A PEC aprovada no Senado, que tramita na Câmara, colocou o saneamento entre os setores que deverão contar com um regime específico de tributação, a ser definido posteriormente, por lei complementar.  “Ainda que saibamos do potencial do saneamento para melhorar a qualidade de vida da população e a economia, não vemos essa sensibilidade resultar em ações práticas”, reforçou.

Matheus Stivali, do IPEA, lembrou que a conexão saneamento-saúde já foi prevista no uso do mínimo constitucional na saúde. “Em algum momento isso foi vedado, devido ao risco de arbitragem que, levando em conta os grandes montantes que obras de saneamento podem envolver, pode levar a uma situação em que nenhuma cobertura seja feita de forma adequada. Mas a lei complementar 141/12 traz uma exceção, que nunca foi regulamentada, que prevê o uso do mínimo de saúde para gastos em saneamento em pequenos municípios”, lembra.

Em sua exposição, Stivali destacou a importância de um cenário de queda de juros tanto para a atração de investimentos quanto para a tarifa desse serviço, posto que projetos licitados – tanto por empresas públicas quanto privadas – incorporam a tarifa em seu cálculo. “Projetos mais caros também ficarão mais caros para o usuário e podem afetar o subsídio para populações mais pobres”, afirmou, lembrando que investimentos de saneamento incorporam um cálculo de custo de capital de mais longo prazo, de 20 a 30 anos, quando da maturação desses projetos. “Tanto a conjuntura macroeconômica de partida é importante, como também a regulação e a segurança jurídica que o investidor identifica. São aspectos que não se separam. Por isso, a importância também de se garantir um histórico de regras do jogo que se mantêm ao longo da execução de projetos”, afirmou, destacando a atratividade do setor de saneamento para investidores institucionais, como fundos de pensão, focados no longo prazo. Stivali lembrou que o novo marco do saneamento ainda está em começo de implementação, ressaltando a importância do trabalho da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), responsável por elaborar as normas de referência que regulamentarão o setor, uniformizando a atuação das mais de 80 agências reguladoras que cuidam do saneamento no Brasil. “A partir da experiência de outras agências, estou otimista com o trabalho que a ANA vem realizando, de construção gradual dessas regras”, afirmou.

“Diante de um momento em que tratamos de temas tão relevantes no campo ambiental de transição energética, não podemos manter o saneamento esquecido”, defendeu Silvia, reforçando as externalidades dessa atividade para a economia do país, em especial a produtividade – ponto sensível para se ampliar o potencial de crescimento brasileiro. “ A evolução da produtividade pode ser observada sob dois aspectos. O primeiro é o valor adicionado por cada trabalhador – na média, a produtividade do trabalhador brasileiro é ¼ da do americano –, refletindo problemas de eficiência. O segundo e o número de pessoas que trabalham dentro do total da população. Quando há muitos jovens entrando no mercado de trabalho em comparação ao total, chamamos de bônus demográfico. O Censo recentemente divulgado pelo IBGE mostra que nossa população está envelhecendo, o que significa que desperdiçamos essa janela do bônus demográfico, em que deveríamos ter crescido mais”, descreveu, citando estudos do Observatório da Produtividade Regis Bonelli. Silvia indicou que, além da capacitação os trabalhadores, com investimento em educação e formação continuada, outro elemento importante para garantir mais crescimento para o Brasil será o investimento. “Comparando com outras economias, vemos que estamos mal. No Chile, o investimento é próximo de 24% do PIB; no México e na Colômbia, também supera 20% do PIB. Recentemente, conseguimos melhorar um pouco esse nível, mais ainda estamos atrás, com cerca de 18% do PIB, sendo que em infraestrutura mal chega a 2% do PIB – aquém do necessário inclusive para cobrir a depreciação”, diz. “E aí se enquadra o saneamento, de alto impacto social, assim coo a mobilidade urbana. No Chile, quando separamos o que é investimento público do privado em saneamento e mobilidade urbana, vemos que o setor público tem parcela relevante desse investimento. A questão é ter uma alocação eficiente de recursos, que combine com parcerias público-privadas quando necessário”, defendeu, destacando as perdas de bem estar da população e de PIB que o atraso nesses investimentos implica.

 

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