Reforma tributária e saneamento: entrave para a universalização?

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Em post recente do Blog, mostramos que uma das preocupações de especialistas quanto à tramitação do projeto de reforma dos tributos sobre o consumo no Senado é o número de tratamentos diferenciados que ainda poderão ser incluídos até a aprovação do novo sistema, o que afeta diretamente a alíquota padrão do IVA. Diante da sensibilidade de diferentes setores e incertezas inerentes ao processo de construção do novo sistema, entretanto, a perspectiva é de que ainda muitos debates acontecerão em torno das três alíquotas previstas: um IVA cheio, outro com 60% de desconto, e isenção total.

Um deles, já contratado, é o do saneamento básico. No início desta semana, representantes das companhias estaduais do setor estiveram no Ministério da Fazenda e no Senado - respectivamente, com o secretário extraordinário da Reforma Tributária Bernard Appy, na segunda, e em audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça na terça - para apresentar sua demanda por inclusão da atividade de saneamento no mesmo grupo dos serviços de saúde, que pela proposta pagarão 40% da alíquota cheia. “Somos a favor da reforma tributária, mas temos compromisso com um serviço essencial para toda a população. É preciso cuidado para que essa reforma não tenha rebatimento negativo, culminando em aumento tarifário”, afirma Sérgio Gonçalves, secretário-executivo da Aesbe.

O aumento de carga tributária projetado pela Associação em estudo recente (leia a íntegra aqui) poderia representar uma queda potencial de até 46,9% na capacidade de investimento médio anual das companhias estaduais. Esse impacto começaria ainda no período em que essas empresas deveriam ampliar sua capacidade de investimento para atender aos objetivos de universalização do Marco Legal do Saneamento, cujo prazo é 2033. A reforma tributária prevê um período de transição de dez anos, a partir de uma etapa de teste de dois anos com redução da Cofins (sem impacto para estados e municípios) e cobrança de IBS de 1%. Depois desse período, a cada ano as alíquotasdos cinco impostos (PIS/Cofins, IPI, ICMS, ISS) sofreriam redução em 1/8 por ano até sua extinção, e a do IBS seja aumentada para repor a arrecadação anterior.

Tributos totais: situação atual e simulações com alíquota do IVA de 27%
(em R$ milhões de dezembro de 2022)


FONTE: Aesbe, com dados do SNIS. *Média 2017-2021. **Média de demonstração de valor agregado (DVA) de companhias listadas na B3 entre 2007 e 2021. ***DVA aplicada como proxy para companhias do SNIS. ****Comparação DVA com Pesquisa Nacional de Serviços do IBGE.

Os cálculos que levaram a essa projeção foram apresentados na semana passada em webinar da Aesbe por Rudinei Toneto Júnior, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEARP), da USP, coautor do estudo em parceria com três economistas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

As premissas usadas pelos economistas foram uma carga tributária atual de 9,25% e uma alíquota padrão do IVA  - composto pelo IBS, que substitui ICMS e ISS, e o CBS, que aglutina os impostos federais PIS, Cofins e IPI - de 27%. Considerando que o novo imposto difere do atual por incidir apenas sobre o valor adicionado (VA), foi preciso calcular o VA do setor. Para isso, os economistas apresentaram três cenários. O primeiro, a partir de uma média de VA demonstrada por cinco companhias de capital aberto listadas na B3 entre 2007 e 2021; o segundo tomou esse resultado como proxy de cálculo para todas as companhias a partir do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS); e o terceiro foi calculado a partir de uma comparação desse VA demonstrado com a Pesquisa Nacional de Serviços do IBGE. “Neste último caso, como não existe especificamente saneamento na pesquisa do IBGE, calculamos por aproximação de atividades, retirando os componentes de despesa do cálculo, a partir da média 2016-29, com valores corrigidos a dezembro de 2022”, descreve.

Potencial variação nos investimentos totais das companhias estaduais de saneamento, em %


Fonte: Aesbe, com dados do SNIS.

O resultado apontou a um valor agregado médio que variou entre 63,81% e 68,4% da receita das companhias estaduais de saneamento. Aplicando a alíquota de 27% sobre esses VAs, chegou-se a arrecadações anuais entre R$ 10,35 bilhões e R$ 11,09 bilhões, contra uma média de R$ 5,55 bilhões observada entre 2017 e 2021, sob o atual sistema tributário. Rudinei afirma que a reforma, sem um tratamento diferenciado para o saneamento, representaria um aumento da alíquota efetiva sobre o faturamento dessas companhias dos atuais 9,25% para entre 17,2% e 18,5%.

O estudo não se estende a projeções de ganhos relacionados à redução de custos de conformidade e produtividade geral do setor e da cadeia, ainda considerados de difícil previsão. Diante dos resultados observados, a Aesbe aponta que a geração de excedente de caixa das companhias cai praticamente pela metade, o que poderia representar uma redução potencial do investimento de até 46,9%. Em outro estudo produzido pela Aesbe (veja aqui), a Associação destaca a importância da participação dos recursos próprios no investimento total das companhias estaduais, representando 56,2% entre 2002 e 2021, contra 43,9% nas operações privadas do setor. O estudo mostra que, de 2002 a 2021 foram investidos R$ 338,7 bilhões no setor, somando prestadores públicos e privados. Como destacou Neuri Freitas, presidente da Aesbe, em entrevista à Conjuntura Econômica de julho (veja aqui), para garantir a universalização prevista no Marco do Saneamento - 99% de cobertura de água potável e 90% de coleta e tratamento de esgoto - são necessários investimentos da ordem de R$ 900 bilhões até 2033. 

Distribuição (%) dos investimentos por origem dos recursos, 2002-2021


Fonte: Série Universalizar - estudo 2 - Aesbe

Para que a reforma tributária seja neutra em termos de impacto na receita dessas companhias, o estudo aponta que a alíquota do IVA deveria ficar na casa dos 14%. Do contrário, de acordo com o estudo, para manter a receita líquida no atual nível com a mudança do sistema tributário seria necessário um reajuste tarifário entre 8,9% e 10,4%. “É preciso lembrar que o impacto tende a ser mais acentuado nas companhias com menor capacidade de geração de excedente, que em geral atuam em regiões com população de mais baixa renda”, lembra Toneto, o que torna o cenário ainda mais desafiador, completa.

De acordo a Sergio Gonçalves, o secretário Bernard Appy “acatou as preocupações sobre possíveis impactos de aumento da tarifa e repactuação de contratos, solicitando planilhas e memórias de cálculos para que sua equipe possa estudar com mais profundidade”. Gonçalves reforça a preocupação em equacionar a situação do setor para se avançar em soluções para a universalização do acesso a serviços de água e esgoto. “A falta dessa cobertura recai principalmente na população de menor renda, o que reforça a necessidade de se pensar mecanismos para atender essa população de baixa capacidade de pagamento”, conclui.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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