Reforma tributária: especialistas esperam controle das exceções e arranjo que garanta boa governança do Conselho Federativo

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Há um congestionamento de pautas relevantes no Legislativo que demandará excelente capacidade de coordenação do governo federal para emplacar duas frentes: a aprovação de medidas que contribuam para ampliar a arrecadação em R$ 168 bilhões, valor estimado pelo Ministério da Fazenda para cumprir a meta de zerar o déficit primário em 2024; e a reforma tributária dos impostos sobre o consumo, considerada a de maior impacto macroeconômico desde a implantação do Plano Real, devido a seu potencial de redução de custo de conformidade e operação e ampliação da produtividade.

O VII Simpósio de Pesquisa da FGV, promovido na semana passada no Rio de Janeiro, dedicou um painel exclusivamente ao tema. Nele, os ex-secretários estaduais de fazenda Bruno Funchal (ES) e Cristiane Schmidt (GO) defenderam atenção no debate da reforma no Senado. Em especial, destacaram a necessidade de se conter a expansão da lista de exceções, e a importância de se chegar a um bom acordo para a operação do Conselho Federativo, órgão responsável pelo repasse da arrecadação do IBS – que substituirá o ICMS e o ISS – a contribuintes, estados e municípios, para que este garanta boa representatividade regional e governança.

Brunho Funchal, que também foi secretário do Tesouro e hoje é CEO na Bradesco Asset Management, reforçou a relevância da reforma para o avanço da produtividade da economia brasileira, citando estudos de coautoria de Fernando Veloso, coordenador do Observatório da Produtividade Regis Bonelli. “Alguns números consagrados pelo Banco Mundial são ilustrativos do que vivemos na prática nos estados, com empresas gastando 1,5 mil horas por ano para pagar impostos – o pior resultado, seguida da Bolívia, com 1 mil horas –, além da insegurança. Ainda que gastem muito tempo visando à conformidade, muitas vezes ainda pagam errado, gerando um grande contencioso. Afinal, todas as regulações de ICMS do Brasil, somadas, superam 30 mil páginas, além de uma média de 200 mudanças tributárias por ano do ICMS. É um tempo que será muito mais produtivo quando as empresas o alocarem em sua atividade-fim”, destacou. Funchal ainda citou o benefício da nova lógica de créditos tributários em relação ao atual modelo. “Há estudos que mostram que cerca de 30% dos créditos de exportação, por exemplo, não são pagos, gerando perdas para as empresas exportadoras. Isso também ilustra o grande espaço que temos para ganhos de produtividade e competitividade.”

Para se aproveitar ao máximo as virtudes da reforma, Funchal defendeu a necessidade de que no Senado se contenha a ampliação de setores com alíquotas reduzidas ou zeradas, lembrando que a alíquota referencial é diretamente dependente da quantidade de exceções aprovadas no sistema. “No fundo, é uma discussão política. Para ser aprovada na Câmara, foram necessárias as exceções já colocadas. O ideal é que se reduzam ou ao menos sejam mantidas, para que o ganho projetado com a eficiência arrecadatória não se perda, e a alíquota aumente muito”, afirmou.

Aloisio Araújo, da FGV EPGE e do Impa, avaliou que, até o momento, a tramitação do texto tem sido bem-sucedida. “Quando penso em reforma tributária, sempre considerei a necessidade de um aporte da União no processo, para tirar o medo que os agentes e os entes federativos teriam da mudança”, disse. “Já tinha no meu cálculo setores com alíquota reduzida ou zerada – caso contrário, não se aprovaria a reforma”, disse. Araújo destacou conclusões do estudo de sua coautoria Should Governments Tax Commodities Uniformly? Theory and Evidence from Brazil, em que destaca que a construção do sistema tributário não pode ficar amarrada na ideia de um IVA único, devendo levar em conta a heterogeneidade entre setores produtivos, incluindo diferentes níveis de propensão à evasão fiscal. Tendência que, de acordo a levantamentos, é maior em segmentos como agropecuária e transporte, contemplados entre as alíquotas diferenciadas. “Trabalha-se no fio da navalha, – e acho que até aqui não está ruim. Mas não é preciso incluir mais exceções”, defendeu.

Para Araújo, uma das formas de se equilibrar a arrecadação sem penalizar demais a alíquota referencial é ampliando a incidência do imposto seletivo. Araújo destacou no evento estudo do Banco Mundial que indica que o Brasil tem registrado uma perda de arrecadação nessa rubrica, na contramão do observado na América Latina e no mundo. A presença do imposto seletivo foi aprovada na reforma, para ser definida posteriormente. Araújo destaca que voltar ao padrão de arrecadação de 1990 com esse imposto representaria um ganho de 2% do PIB, “o que já permitiria uma redução da alíquota do IBS.”

Transparência e eficiência

Eurico Marcos Diniz, coordenador do FGV NEF, diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), ressaltou no painel a importância da transparência do sistema proposto e dos dois períodos de transição previstos no projeto, “para que, nesse período, a aplicação do sistema será observada pelo TCU para que não haja aumento de alíquota, e para que a transição federativa ocorra sem perda para nenhum ente”, afirmou. De Santi é um dos coordenadores do livro Imposto sobre Bens e Serviços, cuja segunda edição revisada e ampliada foi lançada em agosto, detalhando toda a proposta de reforma.

Cristiane Schmidt, atualmente consultora sênior para o Banco Mundial, destacou que um dos períodos de transição, de dez anos, é voltado aos contribuintes. “É nesse período que iremos observar quanto o novo sistema vai reduzir exatamente de elisão, sonegação, inadimplência, e judicialização, para ir calibrando a alíquota. A outra transição, de 50 anos, é para equacionar a situação dos estados impactados pela reforma – a princípio, os mais prejudicados serão Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Espírito Santo, especialmente por terem população pequena. É um prazo muito longo? Talvez, se houver estudos que mostrem que se pode fazer esse reequilíbrio em menos tempo, discute-se. O importante é que não se pode deixar ninguém para trás”, afirmou.

Cristiane também ressaltou a importância de se garantir a governança e representatividade do Conselho Federativo. “Ele funcionará como um banco, que recolhe e distribui o IVA para os dois agentes distintos: os tesouros estaduais e os contribuintes”, diz. Entre as vantagens de ter o Conselho na dianteira desse sistema, indicou Cristiane, está o fato da dificuldade de operacionalização por entes menos preparados, como municípios menores. “Além disso, o melhor é garantir a operação a uma autarquia que tem governança coordenada, que poderá garantir ao empresário/ contribuinte que será creditado. Sei que muitas vezes os estados seguram esses créditos, porque o fisco não tem como pagar. Isso não acontecerá com o Conselho, por este independe da saúde fiscal do estado A ou B”, descreveu. “Ele garantirá eficiência, simplificação e transparência.”

Cristiane lembrou os questionamentos, durante a tramitação na Câmara, em torno da representação das regiões na composição do Conselho, contrapondo lideranças do Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste.  “Uma solução interessante, que já tinha sido apresentada pelo governador do Rio Grande do Sul Eduardo Leite, é seguir a Lei Complementar 160, que prevê aprovação com 2/3 dos votos totais, desde que se garanta representatividade de pelo menos 1/3 de cada região. Particularmente, considero um arranjo positivo, que deve ser considerado quanto o tema voltar à tona no Senado.”

O desafio político

Claudio Couto, da FGV Eaesp, destacou no Simpósio que essa reforma emblemática se dá em um contexto diferente do presidencialismo de coalizão, caracterizado por um aumento do poder do Congresso – em especial, do presidente da Câmara. “Esse fortalecimento vem desde 2015, com mudanças institucionais fundamentais: as emendas orçamentárias individuais impositivas (2015), estimulada pela pouca afinidade da presidente Dilma Rousseff em lidar com o Legislativo; problema que foi ampliado com as emendas orçamentárias de bancada impositivas (2019), resultado da abdicação do presidente Bolsonaro em coordenar a coalizão de governo. Aí começa a se popularizar a expressão parlamentarismo branco, que prefiro chamar de governo congressual”, descreveu. Na sequência, esse domínio evoluiu para as emendas de relator, ou orçamento secreto (2021) e, este ano, o que Couto classificou de orçamento secreto reciclado. “Ele acontece por meio da ação do Executivo na definição da alocação de recursos, informalmente negociando com parlamentares, mas continua a ter determinação de recursos por via legislativa e não ação discricionária do Executivo”, afirmou.

Couto reforçou que a reforma tributária sempre foi uma agenda difícil “pela multiplicidade de atores sociais e estatais com capacidade de veto”, que produz um cenário pouco propenso a mudanças. A favor da reforma, entretanto, há um contexto de mudança observado desde 2018, disse, “da percepção de que o problema tributário ficou proibitivamente caro para uma série de atores”, o que levou a proposta da PEC 45 ser acampada pela maioria dos candidatos à Presidência naquele momento.   Outro ponto a favor da reforma, disse Couto, é a adoção dessa agenda pelo presidente da Câmara, “que identifica na reforma uma bandeira que pode firmar sua imagem como estadista.”

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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