Sustentabilidade da política social é chave, pois aumento da demanda por proteção não será revertido no curto prazo, apontam especialistas em webinar

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Enquanto as negociações para a aprovação da PEC dos Precatórios se estendem, indicando a resistência do Senado em dar carta branca a um aumento de despesas de mais de R$ 90 bilhões em ano eleitoral, o futuro do Auxílio Brasil segue cheio de indefinições, trazendo incerteza à população que depende do benefício e preocupação aos especialistas em políticas sociais. “Em última análise, as escolhas de como financiar esse programa já trouxeram um dano imenso. Ao fragilizar a única âncora fiscal que resta ao país (com a mudança na regra de reajuste do teto de gastos), e alongar o pagamento dos precatórios, o que evidentemente é um calote, a consequência recai sobre os mais pobres que se deseja proteger, com uma aceleração dramática da inflação”, afirma Fernando Veloso, pesquisador associado do FGV IBRE. “E isso, vale lembrar, não acontece apenas para viabilizar o Auxílio. Há intenção de liberar emendas de relator, aumentar fundo eleitoral, dar auxílio caminhoneiro, o presidente já sinalizou o desejo de dar reajuste ao funcionalismo federal… são inúmeros usos”, completa.

No webinar Como enfrentar a desigualdade e a pobreza, Veloso ainda ressaltou que, com as atenções concentradas na definição de como financiar os R$ 400 definidos pelo governo como valor temporário do benefício do Auxílio Brasil, pouco se está discutindo sobre o desenho do programa, frente a um contexto, ressalta, de lenta recuperação do mercado de trabalho, em que o aumento da demanda por proteção social se manterá forte, exigindo um sistema de proteção não apenas sustentável, mas robusto e eficaz. No evento, Veloso destacou cálculos da equipe do Boletim Macro divulgadas na Carta do IBRE de outubro mostrando que, para que o Brasil volte à taxa média de desemprego registrada entre 2015 e 2019, de 9,7%, teria que crescer cerca 3,5% ao ano entre 2023 e 2026. “Para chegar a uma taxa que já era alta, teríamos que crescer algo que está fora do radar (a estimativa mais recente do Boletim Macro IBRE é de PIB de 0,7% em 2022). É importante pensar em um bom desenho para proteger as pessoas, pensar em empregabilidade e na questão social, pois a situação de desemprego elevado não será revertida rapidamente”, declarou.

O pesquisador lembra que a pandemia já havia deixado patente a necessidade de revisão do  sistema proteção social (tema da Conjuntura Econômica de junho), “não só em relação às pessoas em pobreza e extrema pobreza, que é o público do Bolsa Família, mas à população invísivel - que não era exatamente assim, pois já estava identificada na Pnad Contínua - que continua desprotegida do ponto de vista de proteção social”, diz, referindo-se ao grupo de trabalhadores que sofrem de maior volatilidade de renda, especialmente os informais, e que não tiveram como se manter. “O auxílio emergencial se revelou uma forma cara de lidar com esse problema, e no Congresso já havia surgido propostas que variavam desde uma renda universal a uma proposta mais intermediária, que foi a minha com Vinícius Botelho e Marcos Mendes (respectivamente, doutorando e pesquisador do Insper), que acabou sendo base para o projeto de Lei de Responsabilidade Social, do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE)”, cita Veloso. Esse projeto prevê a criação de três benefícios: o Benefício da Renda Mínima, que unifica os quatro benefícios atuais do Bolsa Família; a Poupança Seguro Família, formada por um depósito mensal de 15% do rendimento do trabalho do beneficiário, sujeito a teto, que pode ser sacado em situações específicas de queda de renda; e a Poupança Mais Educação, que se refere a uma poupança de R$ 20 mensais depositada para crianças do ensino fundamental e médio de famílias beneficiárias do programa, e que seria sacada no momento destas concluírem o ensino médio. O próprio governo também já havia apresentado no segundo semestre de 2020 outras duas propostas de substitutos ao Bolsa Família, mas a questão sempre esbarrou no financiamento, que continua sendo um ponto frágil, como aponta Veloso.

Vinícius Botelho, ex-secretário nos ministérios do Desenvolvimento Social e da Cidadania, lembra que do ponto de vista do combate à pobreza tanto estrutural quanto conjuntural, o desenho do Bolsa Família já era reconhecido como um dos melhores do globo, em avaliações como as realizadas pelo Banco Mundial. O maior desafio de aprimoramento do programa, diz, concentra-se no combate à pobreza intergeracional, que envolve elementos como saúde, educação, entre outras provisões que permitam que, quando adultas, as crianças consigam superar a condição de pobreza de seus pais. “Conseguimos impactar vários indicadores meio, como aumento do  tempo da criança na escola, aumento dos anos de escolaridade. Mas quanto aos elementos que indiquem a superação da pobreza em si, os resultados são mais ambíguos”, afirma. Confrontando essa análise ao desenho do Auxílio Brasil, Botelho indica que houve uma simplificação dos quatro benefícios do Bolsa Família, reduzindo-os para três, o que em sua opinião foi um passo positivo. “A estrutura do cadastro único também foi preservada, com pequenas modificações, o que faz com que as principais vantagens do modelo brasileiro se mantenham”, diz.

Mas se houve maior racionalidade em ordenar a estrutura do benefício básico do programa, quando se trata das medidas mais concentradas no combate à pobreza intergeracional, o Auxílio se multiplica em vários benefícios - entre os quais bolsa de iniciação científica e os auxílios de inclusão produtiva urbana e rural - que concorrerão pelos recursos do programa, e cujos efeitos tendem a ser questionáveis, apontam Botelho.  O ex-secretário cita o caso do Auxílio Inclusão Produtiva Urbana, que prevê uma transferência para quem comprovar vínculo de emprego formal. “É um desenho similar ao do abono salarial, e parece partir da premissa de que com incentivos financeiros famílias de baixa renda conseguirão empregos com carteira assinada. A meu ver, é um diagnóstico controverso, porque o emprego formal já estabelece uma série de incentivos, e o próprio Bolsa Família tinha regras de suavização de saída para famílias que conseguissem um emprego CLT. Tenho dificuldade em ver qual a diferença que um benefício de R$ 200 poderá trazer”, diz. “Por outro lado, a estrutura de benefícios está focando mais nas crianças, e sabemos que a pobreza tem grande concentração etária, sendo maior nas crianças do que entre jovens, que é maior do que em adultos, e que por sua vez é maior do que entre idosos. Então, os efeitos são ambíguos.” Outro alerta feito por Botelho é de que os R$ 400 propostos como benefício em 2022 - que na semana passada os senadores discutiam possibilidades de torná-los um valor permanente - tende a piorar a focalização do programa, cujo desenho até hoje primou por uma estrutura que privilegia transferências crescentes de acordo ao grau de vulnerabilidade do beneficiário.

No webinar, os pesquisadores também foram enfáticos em defender que os arranjos para viabilizar políticas públicas voltadas à proteção social têm de ser sustentáveis para não penalizar ainda mais o equilíbrio macroeconômico e, por ende, a capacidade de crescimento do país, diretamente relacionada à capacidade de geração de mais e melhores empregos. Fernando de Holanda Barbosa Filho, pesquisador do FGV IBRE, lembra que desde 2015 a informalidade tem ditado a dinâmica do mercado de trabalho. “Esse é um problema que está diretamente relacionado com nossa macroeconomia, com uma questão fiscal não solucionada, de déficits primários acumulados”, diz. Recente estudo da equipe de mercado de trabalho do FGV IBRE, destaque da Folha de S. Paulo no último domingo (acesso restrito a assinantes do jornal) demonstra que de 2012 a 2019 as vagas de trabalho que mais cresceram no Brasil foram as que demandam menos estudos e oferecem salários mais baixos, como comerciaintes e vendedores de lojas cabeleireiros e condutores de automóveis. “Nosso desempenho econômico se reflete no mercado de trabalho, que não consegue mais absorver pessoas que vão chegando, e muitas vezes expelem as que entraram em momento de maior aquecimento”, afirma. “Na pandemia, tivemos uma redução do pessoal ocupado em 12 milhões; hoje, ainda são 3 milhões fora do mercado de trabalho. Parte da crise é temporária, é verdade, pois está relacionada ao que o pesquisador do Ipea Marcos Hecksher chama de dominância epidemiológica. Mas há uma parte das atividades, especialmente no setor de serviços, que não voltaram e não sabemos em que medida voltarão ao que eram”, diz. (veja a matéria de capa da Conjuntura Econômica de novembro, sobre perspectivas para o mercado de trabalho) 

Barbosa aponta a necessidade de se ampliar o foco dos programas voltados à reinserção de pessoas no mercado de trabalho. “Mudança nas ocupações sempre existiram. O desafio é dar as ferramentas necessárias para o trabalhador se reposicionar nessa nova realidade”, afirma. No evento online, Barbosa reforçou as recomendações dadas em entrevista, de se fugir do caminho dos subídios, que afirma ser pouco efetivo, e se concentrar em duas frentes: a do desenho de políticas de requalificação adequadas ao atual contexto, e na redução de assimetrias de informações, seja para o desempregado na hora de reorganizar sua trajetória laboral, seja na comunicação entre oferta e demanda de trabalho. “É preciso dar informação para o trabalhador fazer as decisões corretas no tempo certo, e ter informação de onde há emprego, o que um Sistema Nacional de Emprego bem ajustado pode fazer”, diz. “Outro ponto é a perfilização, para não se tratar pessoas com competências diferentes da mesma forma, pois cada uma precisa de um programa de requalificação diferente”, diz. Para Barbosa, o desenho mais bem-sucedido entre os programas de requalificação já promovidos foi o do Pronatec Mdic, fruto de um cuidadoso mapeamento de demanda, “que teve menos de 1% dos recursos totais e registrou um aumento de empregabilidade entre 8% e 16%, dependendo do seu público. Esse é um resultado muito bom e deveria ser nossa meta, pois é um percentual que já conseguimos alcançar”, afirma.

Para Barbosa, um futuro bem-sucedido dos programas de requalificação depende de se buscar o aprimoramento de ideias já testadas de forma bem-sucedida. “Temos o mau hábito de criar novas políticas a cada governo, ignorando o aprendizado que as precede. E temos massa crítica para fazer programas mais efetivos do que no passado, em várias áreas, seja na educação, seja na capacitação”, diz.

Botelho, por sua vez, recomenda que o desenvolvimento das políticas de proteção social do país seja feito explorando as potencialidades do cadastramento. “Discutimos muito valor de transferências e pouco o Cadastro Único, base de políticas que transferem ao ano R$ 90 bilhões (Bolsa Família e BPC), e cuja operação custa, ao governo federal, em torno de R$ 15 milhões”, diz. “Poderíamos destinar mais recursos a essa base, por exemplo, para busca ativa para incorporar pessoas em situação de rua no Cadastro,  simplificar o cadastramento dos menos vulneráveis, usar esses dados na criação de trajetórias de superação de pobreza com base nos programas existentes”, cita.

Veloso, por sua vez, reforça que combater a pobreza de forma estrutural também depende de ajustes macroeconômicos que colaborem para a retomada do crescimento - o que, diz, hoje se vê afetado pelo cenário político. “Conseguimos avanços importantes nos últimos anos, como a aprovação da reforma da Previdência, a trabalhista, o cadastro positivo, mostrando que o Congresso tem papel crucial, para o bem ou para o mal”, diz, ressaltando a dinâmica disfuncional que dominou a relação Executivo Legislativo no período mais recente, com o aumento das emendas de relator, de pouca transparência. “Na nossa atual situação de PIB per capita baixo e possibilidade de recessão em 2022, caímos em um cenário em que é muito mais difícil para um programa de transferência tirar famílias da pobreza, pois a pobreza conjuntural acaba virando estrutural”, completa Botelho, reforçando que, sem crescimento, não há política social que dê conta.

Reveja o webinar Como enfrentar a desigualdade e a pobreza

 


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