Sistema nacional de saúde: entender para melhorar

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Como direito constitucional de todos e dever do Estado, em um país com mais de 70% da população dependente do serviço público gratuito, a saúde é sempre um tema sensível para a população, e ganhou ainda mais destaque durante a pandemia. Mesmo que as principais bandeiras em torno do sistema nacional de saúde sejam óbvias, como melhorias em acesso, cobertura e qualidade, entender sua complexidade em geral é privilégio de poucos, limitando a discussão de políticas públicas para o setor aos especialistas. “Qualquer alteração regulatória ou proposição de política que pareçam simples têm impactos difíceis de serem antecipados. E se a sociedade brasileira não pautar o debate com qualidade, será pautada, assumindo grandes riscos”, afirma Rudi Rocha, professor da FGV Eaesp.

Rocha é coorganizador de A Saúde do Brasil, junto ao pesquisador-associado do FGV IBRE Fabio Giambiagi, entusiasta formulador de debates em forma de livros, e Miguel Lago, diretor executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps). O objetivo do trio curador é claro: explicar de forma didática e informativa como o sistema brasileiro de saúde é estruturado e, desse ponto de partida, entender sua evolução e quais os desafios se colocam adiante. “Pensamos em uma obra que servisse à opinião pública em geral, mas também a jornalistas, gestores e mesmo médicos que podem se consagrar dentro de uma especialidade, mas ainda assim entender pouco do funcionamento da operação do serviço como um todo”, diz Rocha.

A obra é dividida em três partes. A primeira trata de descrever as diferenças entre sistemas de saúde no Brasil e no mundo, explicar seu financiamento, a organização da oferta e condições de acesso do sistema público nos estados e municípios, e como funciona a saúde suplementar. Já a segunda trata de mapear a demanda do sistema tratando, por exemplo, dos desafios impostos pela dinâmica demográfica; doenças crônicas que ganham participação com o envelhecimento da população, bem como doenças infecciosas e como enfrentar pandemias. “Há também capítulos dedicados a minorias, com análises muito interessantes tratando da população LGBTQI+, a negra, a indígena, e sobre a saúde da mulher, concentrada na mulher negra. Pedaços importantes da população brasileira que ainda são pouco estudados e para os quais há pouca política”, descreve Rocha. Para fechar, o livro conta com uma parte dedicada aos insumos que alimentam o sistema, que vão do desenvolvimento do complexo industrial da saúde e dos recursos humanos às tecnologias de informação e inovações disruptivas que determinarão o futuro do setor.

Para essa cobertura de temas, foram escalados especialistas de primeira linha, entre os quais Ana Maria Malik (FGV Eaesp), a sanitarista Ligia Bahia (UFRJ), o ex-secretário de saúde do Espírito Santo Ricardo Oliveira, o economista especialista em demografia Cassio Turra (Cedeplar/UFMG), o médico parasitologista Luiz Fernando Rosa (Fiocruz) e Federico Bonais, diretor da divisão saúde da OCDE Brasil.

Rocha reforça a importância de se alimentar o conhecimento dos desafios que o país tem à frente, especialmente quanto à agenda relativa ao Sistema Único de Saúde (SUS), que ganhou relevância no enfrentamento do período mais crítico de contágio de Covid-19, assim como para a conquista de importantes índices de vacinação. “Estamos falando de um sistema de gere uma escala incrível. São 12 milhões de internação ao ano, que equivalem a duas Dinamarcas. Meio bilhão de consultas médicas, que é mais que os Estados Unidos inteiro”, ilustra. “Apesar de um gasto per capita baixo, é o SUS que tem que lidar com todo tipo de problema, de diabetes e hipertensão a violência, dengue infecciosa, acidente de trânsito, tudo em escala continental.” Para Rocha, é preciso conscientizar a sociedade que saúde custa, e tende a custar ainda mais, diante do envelhecimento da população. “Por outro lado, ainda há muita margem para ganhos de eficiência, com melhor coordenação do sistema, o que pode nos ajudar a ampliar a qualidade e cobertura do sistema”, diz.

“A pandemia nos trouxe uma série de reflexões importantes, que não podemos desperdiçar”, destaca Mônica Viegas (Cedeplar/UFMG), coautora do capítulo do livro que trata de saúde suplementar e regulação. “Trata-se do segundo maior mercado de planos de saúde do mundo, colocando o Brasil como referência também do ponto de vista do setor privado”, ilustra. Mônica destaca o fato de que, diferentemente de sistemas como o dos Estados Unidos, no qual os planos de saúde trabalham com pouca intervenção, o Brasil se diferencia por ter um modelo regulatório menos independente. “Temos um modelo interessante de regulação tanto tipo de contrato quanto do rol de benefícios, o que reduz um pouco a capacidade da operadora de fazer seleção de riscos, oferecendo uma certa proteção ao consumidor”, descreve. “A agência não regula preço de entrada, mas regula reajuste de preços em planos individuais, com base na sustentabilidade financeira. Já nos planos coletivos, espera-se que a barganha entre empregador-operadora ajuste o mercado.”  Regulação de fiscalização de cumprimento de contrato, monitoramento de indicadores e portabilidade são outros elementos que Mônica cita como de destaque no caso brasileiro. “Isso é importante porque o Brasil o setor privado traz o desafio de concorrer com o sistema público - do ponto de vista de profissionais, da incorporação de tecnologias, da rede de serviços. Não é trivial ter um sistema misto que opera com dois subsistemas fortes, vamos dizer assim”, afirma, lembrando que, diferentemente de outros países e que o sistema privado é restrito a grupos de renda muito elevados, no Brasil ele atende a cerca de 25% da população.

“Aqui, nosso desafio é aprimorar a relação entre saúde pública e privada”, afirma, lembrando que o compartilhamento de redes e tratamentos se dá de maneira diferente, dependendo da região do país. Para ela, o ponto-chave para conciliar ambos os sistemas de forma virtuosa está em mitigar a criação de mecanismos paralelos, visando à integração de sistemas de informação que aprimorem a coordenação e a eficácia em ambos os serviços. “Não é algo trivial, que se resolve com uma lei.  Mas é fundamental para o aprimoramento do sistema de saúde como um todo”, diz. Nesse ponto, Mônica também destaca  a necessidade de o SUS se adaptar às novas ferramentas para aproximação entre médico e paciente, visando fortalecer especialmente a atenção primária. “O SUS tem que estar perto das pessoas para conseguir levar mais atenção. Tal com foi o Conecte SUS para o comprovante de vacina, temos que fazer valer para facilitar o agendamento de um serviço, o contato com um médico”, diz, ressaltando a capacidade comprovada e a oportunidade criada para “uma reviravolta no sistema nacional de saúde”, diz. “Há muito a ser feito, mas acho que já avançamos no sentido de tornar o SUS uma realidade inexorável, algo que definitivamente não tem mais volta”, afirma. E que o livro pode colaborar para entendê-la – e defendê-la – melhor.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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