Recessão da pandemia atinge mais as mulheres e é um retrocesso para a inserção no mercado de trabalho, apontam especialistas em webinar

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Com um impacto econômico concentrado no setor de serviços, a pandemia de Covid-19 atingiu de forma desigual o emprego de homens e mulheres. Não só por esse setor da atividade econômica concentrar a maior proporção de profissionais mulheres, como também pelos efeitos indiretos das medidas de distanciamento social sobre sua rotina. Com o comprometimento do funcionamento de escolas e a ruptura da rede de apoio familiar e/ou profissional para os cuidados e afazeres de casa – por exemplo, com o impedimento do convívio de crianças com avós e a suspensão de empregados domésticos –, as mulheres também viram sua carga de trabalho ampliada, tornando mais comuns os casos de afastamento ou redução de horas de trabalho entre elas, comparativamente com os homens.

Cecília Machado, professora da FGV EPGE, ressalta que parte dos efeitos dessa “she-cession”, como ficou conhecida, é reflexo de normas sociais arraigadas que as sociedades em geral, especialmente a brasileira, ainda não conseguiram transformar. Ela explica que, devido à falta de convergência salarial entre homens e mulheres que ocupam uma mesma função, as decisões familiares para que um membro da família abdique total ou parcialmente de sua atividade remunerada para atender demandas domésticas ainda recaem sobre elas. “Esta crise reforça tudo o que tentamos desfazer ao longo de décadas, em busca de dissociar a figura da mulher como principal responsável pelo cuidado com as crianças e as tarefas de uma casa”, afirma. Com a extensão da pandemia, Cecilia indica que o risco é de se ampliar um círculo vicioso – a dedicação de mais tempo ao trabalho doméstico devido à menor remuneração no trabalho leva à redução do acúmulo de experiência e capacitação, que por sua vez implicará em menos chances de progressão e aumento de salário futuras –, numa bola de neve que intensifique as disparidades de gênero.

Esse cenário foi a base das discussões promovidas pelo FGV IBRE e a Folha de S. Paulo no webinar “A inserção das mulheres no mercado de trabalho”, moderado pela editora da coluna Painel S.A. da Folha Joana Cunha.

No evento, Ana Luiza Neves de Holanda Barbosa, pesquisadora do Ipea, reforçou esse diagnóstico apresentado por Cecilia ao apontar que a participação de mulheres no mercado de trabalho no terceiro trimestre de 2020 foi 7,5% pontos percentuais menor do que no mesmo período de 2019. “Chegou a 45,8%, a menor taxa em 30 anos”, afirma. Essa queda foi 1,4 ponto percentual maior que a dos homens, na mesma comparação. “No caso destes, a taxa de participação no terceiro trimestre de 2020 ficou em 65,7%”, diz.

Trabalho na pandemia: queda para homens, retrocesso para mulheres
Taxa de participação das pessoas de 14 anos ou mais (%)


Fonte: PNAD/IBGE; elaborado por pesquisadores do IPEA.

Laísa Rachter, pesquisadora do FGV IBRE, reforça que, até esta crise, o movimento das mulheres no mercado de trabalho era de convergência. “O aumento da participação das mulheres na força de trabalho nas últimas cinco décadas é visto como uma das maiores revoluções que ocorreram na economia de inúmeros países”, afirma. No evento, Laísa destacou o avanço da participação das mulheres em diversas atividades, especialmente entre as de maior remuneração, tal como antecipado em conversa para o Blog da Conjuntura Econômica. No Brasil, por exemplo, entre 1970 e 2020 a proporção de mulheres entre as pessoas ocupadas cresceu de 19,8% para 41,7%. Entre as cinco ocupações com maior salário da economia, essa participação saiu de 8,36% para 53,6%. “Esse aumento reflete o enfraquecimento de diferentes barreiras de entrada, como dificuldade de acesso à educação, normas sociais que mudam a escolha de uma profissão, ou discriminação na hora da contratação”, enumera. “Na prática, o que nós como sociedade estamos fazendo ao eliminar obstáculos é acabar com uma fonte de desperdício de talentos. Sem eles, mulheres podem escolher a profissão que desejam, são produtivas e geram ganhos tanto para elas do ponto de vista individual como para a sociedade como um todo. É uma questão de eficiência”, diz.

Uma das frentes em que o atraso ainda é grande, aponta Laísa, é a da diferença salarial. Esse fenômeno, conhecido como teto de vidro, é associado a vários fatores, diz, como a cultura organizacional de empresas, que majoritariamente é baseada em normas e critérios de avaliação masculinos. Em cargos de maior qualificação, exemplifica, a redução da diferença de salários relativos das mulheres em relação aos homens é pequena: de 56% da remuneração do homem a 67% entre 1970 e 2020. No fim de março, o Senado aprovou o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 130, que determina que empresas que discriminem uma profissional com salário mais baixo que o pago a um homem empregado que exerça a mesma função devam arcar com uma multa em favor da empregada correspondente a cinco vezes a diferença verificada em todo o período da contratação. Até a semana passada, o presidente Bolsonaro não havia sancionado o texto, realizando uma enquete sobre o mesmo entre seus seguidores, apontando que tal medida poderá reduzir a oferta de trabalho para as mulheres.

No evento, especialistas reforçaram que a maternidade continua sendo o principal desafio para a progressão de carreira das mulheres, devido à interrupção que esta provoca em sua trajetória profissional. “É um dos fatores mais bem estabelecidos na literatura para desigualdade salarial e de gênero”, diz Ana Luiza. E, na pandemia, essa tendência não foi diferente. A pesquisadora do Ipea aponta que a queda na taxa de participação de homens com crianças até 10 anos verificada no terceiro trimestre de 2020 comparado ao mesmo período de 2019 foi de 4,2%, enquanto entre mulheres com crianças chegou a 7,8%. Ou seja, 3,6 pontos percentuais maior.

Taxa de participação no mercado de trabalho entre pais e mães


Fonte: PNAD/IBGE; elaborado por pesquisadores do IPEA.

Para Cecilia, faltou pensar em medidas que mitigassem esse resultado. Ela considera que o valor maior do auxílio emergencial dado a mulheres chefes de família não pode ser considerado uma política para combater esses efeitos. “O auxílio emergencial de certa forma reconheceu uma transferência um pouco maior para mulheres solo com filhos, mas isso dá conta principalmente do mercado de trabalho informal. E, levando em conta o tamanho das famílias, colaborou para combater a insegurança alimentar, mais do que uma política de compensação”, diz. Cecilia aponta que uma medida que poderia ter sido adotada é a de estender a licença maternidade, reduzindo o impacto do fechamento de creches e escolas. “Esse sim, seria um olhar específico para a progressão das mulheres com emprego formal. ” A professora da FGV EPGE ressalta que os dados de saída da força de trabalho são sinais evidentes da necessidade de se pensar no apoio a esse grupo, especialmente levando em conta a extensão da pandemia e seus impactos na atividade econômica. “Até o fim do ano passado, ainda se estimava uma recuperação em V, com a volta do emprego. Mas não é assim que estamos vendo, e quanto maior o tempo de afastamento do trabalho, menor a chance de recolocação”, diz, lembrando ainda o cenário de dúvidas quanto à retomada das aulas, que deverão acontecer inicialmente no modelo híbrido. “Estar fora da força de trabalho por muito tempo implica depreciação de capital humano, do investimento em capacitação, o que aponta à importância de medidas de requalificação”, diz.

Laísa reforça a mensagem lembrando que, mesmo antes da pandemia, o cenário de desigualdade observado, por exemplo, através do nível de desocupação de mulheres chefes de família e divisão de tarefas domésticas já era significativo. “Se comparamos o tempo dedicado a afazeres domésticos por homens e mulheres em 2019, as mulheres registraram 68 dias a mais de trabalho, considerando uma jornada de oito horas”, diz.

Cenário pré-pandemia


Fonte: PNAD Contínua; elaboração FGV IBRE.

Para Cecilia, uma das frentes ainda não abertas no Brasil é a de mudar o conceito de licença maternidade para o de licença parental, que contempla a divisão de cuidados com a criança entre pai e mãe. “Em geral, as famílias sabem quem é melhor para qual serviço, em qual momento da carreira cada um está, e mereceria decidir sua divisão de tarefas e de tempo”, diz, citando que em alguns países da Europa as licenças são ampliadas quando os pais optam por compartilhá-las. Outra frente necessária, diz, é o aumento da disposição das empresas em buscar arranjos que incluam mais mulheres. “Empresas têm entendido que representatividade é positivo como um todo, porque diversidade aumenta inovação e produtividade”, diz, defendendo a ampliação desse movimento. Para Ana Luiza, o sistema de cotas em determinadas ocupações, como para cargos diretivos, é uma iniciativa válida. “Estudos que analisam ações afirmativas e políticas de neutralidade de gênero demonstram que as primeiras têm sido mais eficientes no propósito de reduzir a desigualdade”, diz.

As pesquisadoras alertam que mudar esse cenário de desequilíbrio depende não apenas de uma, mas uma série de políticas voltadas a normas sociais, culturas organizacionais, entre outras frentes, cujos resultados em geral são graduais e lentos. O que torna ainda mais importante lutar para que esse processo não seja interrompido, com risco de retrocesso. Mas elas também destacam que, se o choque da pandemia trouxe um cenário inicial pessimista para as mulheres, as mudanças tecnológicas aceleradas pelo imperativo do isolamento social abrem novas janelas de oportunidade. “Mudanças nas formas de trabalho que trazem mais flexibilidade e reduzem tempo de deslocamento – importante especialmente nas grandes cidades – pode ser positivo para as mulheres. Relações de trabalho mais flexíveis são ocupações em que as mulheres progridem mais, onde a diferença salarial é menor. E essa mudança tecnológica que verificamos colaborou para trazer mais flexibilidades e ocupações que antes eram mais rígidas”, diz Cecilia.

Essa possibilidade de convergência, entretanto, ainda estará restrita às profissionais de maior qualificação, mais escolarizadas, que em geral estão no trabalho formal. “Ainda será preciso pensar, no pós-pandemia, como viabilizar a reinserção produtiva das mulheres que não puderam optar pelo teletrabalho, e cujos postos de trabalho podem ser permanentemente eliminados, já que o aumento da tecnologia muda nossa demanda por provisão de serviços”, diz Cecilia, indicando preocupação especialmente com a parcela de mulheres inseridas no mercado de trabalho informal. “Nesse campo, será importante trabalhar com políticas que levem em conta intersecções de gênero e raça, que incluam medidas não só focadas na maternidade, mas também nas mulheres negras, para as quais a vulnerabilidade de reinserção acaba sendo maior”, conclui.

Reveja o webinar A Inserção das Mulheres no Mercado de Trabalho

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Subir