“Perdemos por nossa política habitacional não mais olhar para a baixa renda. Os efeitos de uma casa digna compensaram o subsídio do MCMV”

Laisa Rachter, pesquisadora do FGV IBRE 

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Estudo recente de doutorado da economista Laisa Rachter trata de efeitos do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) em aspectos pouco tratados até agora na literatura acadêmica. Nesta entrevista, Laisa explica com detalhes os resultados de sua pesquisa, e avalia o substituto do programa, o Minha Casa Verde Amarela, sancionado pelo presidente em janeiro que, em certa medida, muda o foco do programa, deixando de olhar para a faixa de mais baixa renda.  

Quais as principais conclusões que sua tese de doutorado trouxe sobre o Minha Casa Minha Vida?

Minha motivação em estudar o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) foi uma questão negativa que muitos arquitetos e urbanistas pontuam, de que, como em outros programas habitacionais de países de renda média, o MCMV levou as pessoas para a periferia das cidades. Fundamentalmente, pelo fato de as construtoras definirem onde essas casas são construídas e, por uma lógica financeira, escolherem terras mais baratas. Existiam muitas evidências anedóticas desse movimento em direção à periferia, muito estudo de caso, e o primeiro que busquei fazer foi uma análise de dados sistemática, para avaliar quanto efetivamente esse isolamento reduziu o acesso dos moradores a oportunidades, especialmente de trabalho. Para essa parte do estudo, foquei-me no município do Rio de Janeiro, e na Faixa 1 do MCMV, voltada a famílias com renda entre zero e R$ 1,8 mil, que é onde o programa atende como uma política social. Aliás, o que dissocia o MCMV das demais políticas habitacionais é o fato de olhar para a população de baixa renda. O programa previu subsídio de 90% para esse grupo, e prestações sem juros, o que foi praticamente dar uma casa.  As outras políticas, sendo a do BNH a clássica, reduziu taxa de juros para pessoas de renda média, mas não atendeu os mais pobres dessa mesma forma.

No Rio, pude aproveitar a característica de os beneficiários serem selecionados por sorteio para analisar os efeitos do programa comparando sorteados e não sorteados. Busquei olhar para uma dimensão da qual ninguém fala, que é qualidade das casas, e aí encontrei o primeiro benefício. Dados do Censo do IBGE indicam que famílias com renda de até R$ 1,8 mil vivem em casas muito ruins: 43% não contam com serviços de saneamento, e no Rio de Janeiro, a média de cômodos das casas onde esse grupo vive é de 3,8 cômodos, enquanto as casas do MCMV têm 5 cômodos. Então, o programa essas famílias para casas melhores em várias dimensões, como melhor piso, esgotamento, rua pavimentada, e pela formalização do território – para a qual uma definição comum é ter casa com medidor de consumo de energia.

Logo, fiz outros levantamentos que apontaram que o isolamento não implicou adverso sobre sua participação no mercado de trabalho – é preciso levar em conta que pessoas de baixa renda na cidade do Rio normalmente já levam ao menos uma hora para chegar ao seu local de trabalho. Esse resultado foi corroborado por outras pesquisas de mercado formal, que apontam um efeito negativo no início, mas um posterior ajuste das pessoas. E que houve um efeito positivo com uma redução substancial do custo para as famílias – levando em conta, nessa comparação, valores de aluguel, transporte, água e luz. Então, olhando para a experiência do município do Rio de Janeiro, pode-se constatar que de fato as famílias se mudaram para mais longe, mas que não houve efeito adverso. Ao contrário, pois seu custo caiu.

Sua pesquisa também envolveu impactos sobre a saúde?

Sim, quando busquei entender as possíveis externalidades. Nesse caso, ampliei a pesquisa para municípios médios, comparando cidades um pouco acima de 50 mil com outras um pouco abaixo de 50 mil habitantes, que são muito parecidas, mas devido às regras do programa acabaram recebendo menos casas. Entre 2011 e 2017, as cidades com população um pouco acima de 50 mil habitantes receberam em torno de 300 unidades habitacionais a mais do que cidades com população logo abaixo. Os resultados sobre saúde são muito surpreendentes, acho que pouco documentados não só para o Brasil como para outras políticas habitacionais, como dos Estados Unidos e outros países em desenvolvimento. Um deles é o de que nos municípios que registraram mais contratos assinados do MCMV, os bebês nasceram com maior peso. Esse é o primeiro indicador de qualidade de nascimento, e está muito associado a outros indicadores como qualidade gestacional e redução de prematuridade extrema, que contam a mesma história. Outro indicador que observei foi o de mortalidade perinatal – causada por doenças associadas às três primeiras semanas de vida –, que apontou uma redução de 1 por mil nascimentos para cidades que receberam mais investimentos do programa. Só no período analisado, isso significou que ocorreram 5,6 mortes a menos de crianças nesses municípios. Se fizermos um cálculo do custo/benefício – multiplicando esse número de vidas salvas pelo valor estatístico de uma vida, internacionalmente estimado em R$ 3 milhões – só isso geraria um ganho econômico em mais de R$ 16 milhões. Esse ganho, sozinho, é maior que o subsídio adicional dado ao Faixa 1 nos municípios logo acima de 50 mil habitantes – de R$ 15 milhões, levando em conta um subsídio médio por casa de R$ 50 mil. Note que isso desconsidera potenciais efeitos de longo prazo sobre saúde e renda – as casas construídas continuam existindo e pessoas que nascem mais saudáveis tem renda maior na vida adulta. Ou seja, os ganhos podem ser ainda maiores.

No caso do Rio de Janeiro, além de uma geografia complexa, a cidade sofre com a ação do tráfico e de milícias. Como avalia que esses fatores interferem no resultado de seu estudo?

Mesmo com o balanço de os efeitos adversos – isolamento, distância do trabalho – não serem suficientes para compensar a melhoria de ter uma casa, e os efeitos positivos no campo da saúde que identifiquei para o Rio e outros municípios, ainda não tinha esgotado minha análise de benefícios, e um dos fatores para isso é a criminalidade. E, sobre isso, só terei uma opinião formada depois de ter evidências sistemáticas.

Como mencionam, o município do Rio de Janeiro tem uma dinâmica territorial particular que não reflete a de outros municípios. Talvez a gente só aprenda que para lugares como o Rio, e algumas áreas em São Paulo, seja preciso olhar para um programa de forma diferente. E quanto à criminalidade, as reportagens que tratam do tema, sobre condomínios do MCMV invadidos, por exemplo, são suficientemente anedóticas para não nos levar a uma conclusão, pois também há evidências anedóticas apontando o contrário. Conheço caso de pessoas que foram para áreas dominadas pela milícia, mas onde esse domínio era menor do que na região em que moravam antes, pois lá não chegava correio, a contratação de TV a cabo era dominada, etc. Como o território do MCMV é um pouco mais formalizado, onde o poder institucional tinha algum acesso, essas pessoas sentiam-se menos invadidas. Isso não tira a gravidade do tema, mas para se tirar uma conclusão a partir desses casos é necessária uma análise mais sistemática para inferir que o caso do Rio acerta a maior parte das pessoas.

Outra crítica comum ao MCMV é de que ele não resolveu o déficit habitacional entre os grupos contemplados no programa. Concorda com essa avaliação?

Não acho que essa questão esteja bem resolvida, especialmente quanto a que medida de déficit usar. A Fundação João Pinheiro, por exemplo, tem como base a PNAD do IBGE, mas essa sofreu uma mudança metodológica, e um problema claro é saber se houve quebra na série devido a essa mudança. A pesquisadora Ana Maria Castelo, do FGV IBRE, também tem estudado essa questão e proposto outras medidas.

Além da questão metodológica, pelo MCMV ter entregue tanta casa, é mecânico pensar que o déficit tenderia a reduzir. Mas minha opinião é que isso envolve uma questão de demanda também. O déficit habitacional é composto por coabitação, precariedade na habitação, e por um componente relevante que é o do ônus excessivo de aluguel, pessoas pagando uma proporção muito alta de sua renda em aluguel, acima de 30%. E há muitas questões que podem mudar a demanda das famílias, como a estrutura demográfica da população, a taxa de fecundidade, mudanças culturais como a disposição de morar em domicílios compartilhados com outros parentes. Além de choques de renda, que podem mudar a capacidade de pagamento das pessoas. São tantos elementos que podem afetar a demanda e mexer no déficit, que não acho que uma série histórica sozinha é suficiente para lidar com uma pergunta sobre déficit habitacional.

Não é simples atribuir somente ao programa a evolução do déficit, porque tampouco sabemos como a demanda das famílias se comportaria sem ele. Acho que, sem a Faixa 1, não seriam construídas casas para esse público. O mesmo aconteceria com as Faixas 2 e 3? Não sabemos. Quando o programa foi criado, também havia uma preocupação de apoiar a atividade das construtoras após a crise subprime que pode ter influenciado a configuração do programa para essas faixas. Mas, para a Faixa 1, sobre a qual eu estudei, estamos falando de política social. Pode não ser uma política ótima, mas acho que trouxe a grande lição de que casa digna, com padrões mínimos, importa muito.

A partir de agora, entretanto, com o Minha Casa Verde Amarela sancionado, a Faixa 1 deixa de existir. Como avalia essa mudança, bem como inclusão de ações como reforma de moradias e regularização fundiária?

Sem o Faixa 1, acaba a política social de habitação, pois o programa se volta à renda média, não mais à baixíssima renda. E em um momento em que a falta de moradia ainda é um tema em aberto, que incomoda muita gente. Em 2018 a habitação figurou em pesquisa do Ibope como uma das principais preocupações da população; isso se repetiu em 2019, em pesquisa da Confederação Nacional das Indústrias. Perdemos por nossa política habitacional não mais olhar para a baixa renda, não mais olhar para o Faixa, 1, especialmente à luz dos efeitos que encontrei, que mostram que a questão da habitação transcende a discussão do déficit habitacional, ou do isolamento em si. Casa digna importa muito, e seus efeitos – como os encontrados na saúde – pagam um programa caro como o MCMV.

Considero interessantes esses novos aspectos do Minha Casa Verde Amarela. Os conceitos são fortes, mas até onde eu li o programa atingirá pouca gente, pois a regularização será focada em lugares que não demandam tantos investimentos, em áreas passíveis de regularização. No desenho do programa, por exemplo, as favelas do Rio de Janeiro não serão alcançadas. Então, parece que vai alcançar menos gente do que precisamos. E ainda temos que levar em conta que processos de regularização fundiária são complexos. A Constituição prevê a desapropriação de propriedades que não estejam cumprindo sua função social, mas ainda assim é difícil. Um estudo de pesquisadoras das universidades federais do ABC e do Ceará de 2017 indicou que entre capitais e municípios com mais de 100 mil habitantes, apenas 25 tinham conseguido regulamentar essa questão de propriedade que não cumpre seu papel social, e apenas 8 usaram a ferramenta prevista na Constituição. Ou seja, ainda não temos experiência consolidada de aplicação das ferramentas constitucionais na prática.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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