Pandemia reforça necessidade de reformulação do sistema de transporte público, defendem especialistas

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

O transporte público coletivo é reconhecido como um dos grandes estruturadores do funcionamento das cidades, especialmente das grandes. É, também, o principal meio de acesso da população às oportunidades que definem seu bem-estar, sejam elas de estudo, trabalho, saúde ou lazer, além de ser chave no planejamento de um sistema de mobilidade urbana ambientalmente sustentável. Durante a pandemia, a queda na demanda por esse transporte gerou prejuízos às operadoras, agravando o desequilíbrio financeiro que muitas já registravam, reforçando a necessidade de reformulação do sistema para garantir uma prestação de serviço de qualidade. “Não se trata de garantir a sobrevivência de um modelo que já registrava piora na oferta, mas pensar em como renovar e prosperar, garantindo acesso a toda a população, dentro de uma operação sustentável”, disse Cristina Albuquerque, gerente de Mobilidade Urbana da WRI Brasil em webinar sobre transporte público e pandemia promovido pelo FGV Ceri.

Somente na operação de ônibus urbanos, a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) aponta que entre março de 2020 e fevereiro deste ano as empresas do setor registraram um prejuízo de R$ 11,57 bilhões, e que no ano passado 18 empresas e 3 consórcios encerraram as atividades. Já a Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos) estima uma perda de R$ 8 bilhões em receita tarifária entre março e dezembro de 2020. Em relatório sobre o setor, o FGV Ceri aponta que, diferentemente de outros países – citando casos como Estados Unidos (Nova York), Holanda (Amsterdã, Haia e Roterdã) e Chile (Santiago) –, em que os governos ofereceram compensações a operadoras de transporte público, no Brasil essa ajuda não ocorreu. O repasse emergencial de R$ 4 bilhões pedido no PL 3364 foi aprovado no Congresso, mas vetado pelo Executivo. No relatório, o Ceri ressalta o entendimento adicional desses países de que a garantia da manutenção da frequência desse transporte e do investimento em medidas sanitárias adequadas é estratégico para a contenção da pandemia. Também aponta o risco de que esse impacto comprometa a qualidade e sustentabilidade do transporte público no longo prazo.

Covid e transporte público: impacto na oferta e na demanda
ônibus urbanos, Brasil


Fonte: NTU, elaborado por FGV Ceri.

No webinar, Cristina defendeu a janela de oportunidade trazida pelo choque da Covid-19 para se priorizar a revisão do desenho do transporte público, lembrando que antes da pandemia o sistema já registrava perda de passageiros. Em entrevista concedida ao Blog da Conjuntura Econômica em janeiro, Otávio Vieira da Cunha Filho, presidente executivo da NTU, afirmou que de 1994 a 2013 o transporte coletivo urbano registrou uma queda de 25% no número de usuários; e, de 2013 a 2019, outros 26%. “A queda até 2013 foi menos sentida porque foi de certa forma compensada pelo aumento das cidades, um crescimento vegetativo da população. Mas a de 2013 para cá foi mais abrupta, e sem condições de ser equilibrada via tarifa”, afirmou, à época. Para a gerente do WRI, uma das medidas pelas quais se poderia iniciar uma mudança é a integração metropolitana do transporte de ônibus. “Hoje temos uma sobreposição de sistemas que é ineficiente. Um planejamento integrado operacional e fisicamente teria potencial de reduzir custos e melhorar a qualidade dos serviços”, disse. Marcio D’Agosto, professor associado da Coppe/UFRJ, reforçou o diagnóstico de Cristina. “É preciso pensar no papel complementar dos modos de transporte, dentro de um sistema maior, em que as cidades também ofereçam que não concorra entre si. Isso colaboraria para harmonizar oferta e demanda de viagens”, afirmou. Na conversa com o Blog, Cunha apresentou uma proposta de marco legal para o setor de transporte coletivo defendida pela NUT e pela ANP Trilhos que inclui proposta de mudança do modelo de contratação – para um tipo em que o setor passe a ser remunerado pela produção do serviço, e não mais por passageiro transportado; de financiamento do sistema – com custeio de gratuidades bancada pela criação de um fundo com fontes extra tarifárias como uma sobretaxa no licenciamento de automóveis –; e medidas de eficiência e qualidade.

No evento do Ceri, outro ponto defendido por Cristina foi uma mudança da visão sobre os subsídios referentes ao sistema de transporte urbano. “Quando falamos sobre a necessidade de subsídio para o transporte coletivo, em geral somos questionados”, disse, ressaltando que em sua maioria os argumentos críticos não levam em conta os custos que o transporte individual acarreta para o sistema de mobilidade urbana como um todo. Para ilustrar, Cristina citou um estudo canadense que compara o subsídio implícito no provimento de vias, estacionamentos, entre outras infraestruturas relacionadas com a mobilidade, conforme cada meio usado. “Eles calcularam que cada dólar gasto por um cidadão em seu trajeto caminhando gera um custo de 10 centavos de dólar para manutenção da infraestrutura que garante esse deslocamento. No caso do transporte em bicicleta, a relação é de 8 centavos de dólar para cada dólar gasto pelo indivíduo. Para ônibus, essa relação é de 1,50 dólares por dólar. E, no deslocamento em carro, cada dólar gasto pelo indivíduo implica um gasto de 9,20 dólares bancado pela sociedade”, descreveu. “Para equilibrar custos, é importante uma avaliação mais macro, que não leve em conta somente o custo operacional, mas outros custos associados que envolvem escolhas de mobilidade: congestionamento, perda produtividade, poluição, saúde”, completou, defendendo a criação de fundos de mobilidade para prover qualidade na operação. “Temos que alinhar políticas públicas para produzir os incentivos corretos.”

Joisa Dutra, diretor do FGV Ceri, ressaltou no webinar a importância de, na discussão desse novo desenho, considerar as implicações da introdução de novas tecnologias, como a de ônibus elétricos, e o imperativo cada vez mais cobrado da sustentabilidade ambiental. D’Agosto lembrou que a eletrificação dos ônibus – que requer um investimento mais alto no curto prazo, com perspectiva de redução de custo operacional no longo – demandará novos arranjos de financiamento. Algo que, ressaltou Cristina, já tem sido testado em países latino-americanos como Chile e Colômbia. “São modelos que separam provisão da frota e a operação em si”, descreve. Um arranjo que, afirma a executiva do WRI, abre a oportunidade a processos licitatórios mais competitivos, com maior cobrança de produtividade do operador, que não tem mais a gestão dos ônibus como parte do contrato. “Enquanto o negócio da provisão de frota abre o leque de negócios para empresas de energia, fabricantes, elimina-se a garantia de capital como barreira de entrada das operadoras, já que os investidores são os que entrarão com esse recurso”, descreveu. No Brasil, as iniciativas nesse campo ainda são tímidas, descreve Cristina, citando o caso de São José dos Campos, em São Paulo, em que a prefeitura decidiu bancar a aquisição dos ônibus elétricos que serão operados pela concessionária. “Fomos pioneiros em soluções de transporte coletivo, como o BRT, mas no campo da eletromobilidade estamos perdendo terreno”, comparou, ressaltando a importância desse planejamento também para a sustentabilidade ambiental das metrópoles. “Mobilidade pode ser indutora de redução de emissões”, concluiu, ressaltando a importância de se investir na adoção de tecnologias mais limpas.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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