Os demônios que nos assombram

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

 

“A verdade verdadeira é sempre inverossímil, você sabia? Para tornar a verdade mais verossímil precisamos necessariamente adicionar-lhe a mentira". 

Stiendo Trofímovitch

 

Anjos e demônios sempre estiveram no imaginário de escritores, pintores e pessoas comuns. Em nome de Cristo, de Alá, de ideologias políticas, a humanidade está repleta de exemplos trágicos que levaram à morte milhões de pessoas. É como se a figura angelical se transfigurasse, de uma hora para outra, assumindo a pele do demônio. Mas como os demônios aparecem? Como todo ser das trevas, ele sabe se infiltrar, de forma sorrateira, na pele de qualquer um. Seja um cristão, um islâmico radical, um anarquista, um comunista, um psicopata ou, até mesmo, um ser que até então era visto como uma pessoa normal. Ao encontrar um ambiente fértil, onde o descrédito e o niilismo, cuja principal característica é uma visão cética radical e, sobretudo, pessimista em relação às interpretações da realidade, ele viceja. O descrédito é o ambiente propício para o surgimento dos demônios que nos assombram desde a infância.

A frase colocada no começo deste texto, de Stiendo Trofímovitch, personagem do livro Os Demônios, de Fiódor Dostoiévski, indica uma das artimanhas que o “mestre das trevas” lança mão com frequência para se apossar da mente das pessoas. E o mundo está cada vez mais contaminado pela frase do personagem de Dostoiévski.

Qualquer guerra é inconcebível. Ainda mais no mundo atual. A invasão russa à Ucrânia me remete à difícil, mas primorosa, obra de Dostoiévski que escreveu que “então começará a desordem. O mundo marchará numa confusão jamais atingida. As trevas cobrirão os céus e a Terra chorará seus antigos deuses”. Uma profecia escrita em 1870?

Guardadas as devidas proporções, o romance é um fenomenal retrato da sociedade russa pré-revolucionária, retratando o pensamento político, social, filosófico e religioso daquela época. A obra expõe o mecanismo vital e psicológico das pessoas que querem mudar o mundo pela violência, fanatismo, ignorância, distorção de informações, num quadro de insolvência dos valores humanos e espirituais que norteiam o melhor da civilização ocidental. E esses demônios que assolaram o século XX – Hitler, Stalin, só para citar alguns exemplos –, continuam vivos no mundo atual, sob novos disfarces.

Em um dos trechos do livro, um dos personagens, Piotr Stiepánovitch, diz que um dos instrumentos de controle da sociedade “é rebaixar o nível de educação, das ciências e dos talentos. O nível elevado das ciências e das aptidões só é acessível aos talentos superiores, e os talentos superiores são dispensáveis”.  E o mundo de hoje está cheio de gente que pensa dessa forma.

Mas voltando à guerra. Em artigo publicado no The New York Times, reproduzido no O Estado de S. Paulo, Paul Krugman, Nobel de Economia em 2008, faz uma análise, sob a ótica de um norte-americano, do fascínio que o presidente russo Vladimir Putin exerce sobre boa parte dos Republicanos, a começar pelo ex-presidente Donald Trump. Esse “amor” declarado “refletiu a crença de que Putin era um defensor da antilacração – alguém que não acusaria você de ser racista, crítico da cultura do cancelamento e da ‘propaganda gay’”. No caso da cultura do cancelamento, intensificada com o maciço uso das redes sociais, com disseminação desenfreada de fake news.

Também contribui um sinistro fascínio, como diz Krugman, pela pretensa masculinidade de Putin, “que caçava ursos com as mãos”. E quem navega na direita mais radical gosta da ideia de um governo autoritário, como é o regime na Rússia. A análise do Prêmio Nobel pode ser aplicada a outros governantes que têm mostrado simpatia ao presidente russo, mesmo com a destruição que está ocorrendo na Ucrânia e os efeitos sobre a economia mundial e a vida das pessoas: mais de 3 milhões de refugiados, na maior crise humanitária na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.

Essa guerra era previsível, mesmo com os seguidos pronunciamentos do presidente russo de que isso não ocorreria. Desde o esfacelamento do império soviético, em 26 de dezembro de 1999, Vladimir Putin, que assumiu a presidência em 2000 – antes era primeiro-ministro –, substituindo Bóris Yeltsin, que renunciou, traçou uma estratégia de resgatar o orgulho russo e reconstruir o Império que havia se desintegrado. Anexou a Criméia. Apoiou os separatistas das regiões de Donetsk e Luhansk, anunciando sua independência da Ucrânia. Invadiu a Geórgia e a Chechênia. Apoiou com dinheiro e armas o governo autoritário sírio de Bashar Hafez al-Assad, no poder desde 2000, sucedendo seu pai, Hafez al-Assad, que governou a Síria por 30 anos até sua morte. Trajetória que Bashar quer repetir.

É bom lembrar que, com o fim da União Soviética, muitas repúblicas armazenavam grandes quantidades de armamentos e ogivas nucleares. Em 1994, foi assinado o Memorando de Budapeste, em que a Ucrânia e outras ex-repúblicas soviéticas, como Belarus e Cazaquistão, se comprometiam em devolver seus arsenais nucleares à Rússia. Ao assinarem o documento, os russos, os Estados Unidos e o Reino Unido se comprometeram a se “abster da ameaça ou uso da força contra a Ucrânia”.

Ontem, 17, o Kremlin endureceu, ainda mais, seu discurso, ao afirmar que o país precisa passar por uma “autopurificação para distinguir patriotas verdadeiros da escória e dos traidores”, contrários à guerra. A declaração lembra os tempos mais sombrios e brutais da antiga União Soviética quando Josef Stálin, que ficou no poder por 26 anos, implantou os Gulag – campos de concentração -, onde morreram milhões de russos. Para evitar comparações com esse tenebroso período, o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, usou de um eufemismo, ao dizer que esse processo já está em curso de forma natural: “as pessoas desparecem sozinhas de nossas vidas. Algumas pessoas estão deixando seus postos, outros o trabalho, outros om país. É assim que a purificação acontece”.

No livro O fim do homem soviético, Svetlana Aleksiévitch, filha de pai bielorrusso e mãe ucraniana, afirma que “no geral, somos um povo bélico. Ou guerreávamos, os nos preparávamos para a guerra. Nunca vivemos de outra maneira. Daí vem uma psicologia bélica. Mesmo durante a paz, tudo na vida era próprio da guerra”. Em sua obra, Svetlana, Prêmio Nobel de Literatura em 2015, entrevista centenas de pessoas que viveram na época da antiga União Soviética, mostrando suas opiniões sobre o fim do império russo. Muitos enaltecendo a figura de Stalin, que matou milhões de russos.

Em regimes opressores, a liberdade é questionável. Em A lenda do Grande Inquisidor, de Dostoiévski, há um debate sobre a liberdade. Como diz Svetlana em seu livro, o debate é “sobre o fato de que o caminho da liberdade é difícil, penoso, trágico. Para que conhecer esse maldito bem e mal, quando isso custa tão caro?”, diz o escritor russo. “O tempo todo o ser humano deve escolher: a liberdade ou o bem-estar e a ordem na vida: a liberdade com sofrimento ou a felicidade sem liberdade. E a maioria das pessoas escolhe o segundo caminho”, ressalta Svetlana.

No que, acredito, que a escritora russa esteja equivocada. Do contrário, caminhamos para o abismo.

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Quando tinha uns 13 anos, comecei a descobrir os escritores russos. O primeiro que comecei a ler foi Dostoiévski. No início penei um pouco, mas fui sendo envolvido pelas entranhas das histórias que traziam à tona temas que, para um menino, eram um pouco complexos: a culpa, a violência, o racionalismo, o cristianismo, a pobreza, o altruísmo. E os transtornos mentais do ser humano ligados à humilhação, ao isolamento, ao sadismo, masoquismo, suicídio.

Com o tempo, devorei Crime e Castigo, Irmãos Karamazov, Os Demônios, Recordação da Casa dos Mortos, O Idiota, O Jogador, e muitos outros. E avancei nas obras de Leon Tolstói, Nicolai Gogol, Anton Tchekhov, Mikhail Bulgákov, Ivan Turgenev, Varlam Shalamov, Maksim Górki, para não me alongar em demasia. Acabei ficando fascinado pela literatura e cultura russa e tudo que descobria sobre esse país. Estudei toda a história dos Romanov, que ficaram no poder por cerca de 300 anos. Li as biografias de Trotsky, Stálin, Rasputin, Béria (Lavrenti), Molotov (Viacheslav).

Em 2017, eu e Silvia, fomos à Rússia. O que me instigou, ainda mais, a conhecer mais dessa cultura tão complexa, extremamente religiosa, rica e desigual. Agora em julho, voltaríamos para São Petersburgo e Moscou, levando a tiracolo três adolescentes.

A guerra ceifou nossos planos.

 

Agradeço a Silvia Matos, pesquisadora do FGV IBRE, indicações que tornaram este texto mais rico.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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